quarta-feira, 1 de abril de 2020

Rachel de Queiroz (Manhã na Casa de João Alípio)

    

Antes que o sol dê sinal, dão sinal os passarinhos. Os golas, os cabeças-vermelhas; depois os canários; depois, quase pedindo silêncio, o trocado da graúna.

A cantoria dos passarinhos é que ajuda a despertar. João Alípio se vira na rede, tosse, abre os olhos. A primeira claridade aparece entre a telha-vã. O olhar de João Alípio vai direto ao buraco da telha quebrada, perto do rincão. Pela trigésima vez lembra-se de que precisa trocar aquela telha. Aliás a telha da casa toda não ficou lá grande coisa, muito fraca e areenta. O barro fraco, que ele mesmo ajudou a bater na caieira da represa do açude. Ganhando a diária do homem, claro.

O homem faz questão de que na terra tudo seja dele: — assim, quando o morador vai embora, não tem questão. Pagou pra levantar a casa e barrear a taipa. Podia pagar também as cercas do roçado. Mas isso ele não paga, cada um que se vire. Em terra onde se trabalha de meia, o dono ajuda o morador com as cercas. É a vantagem que a meia tem; mas só o diabo sabe como dói na hora de repartir. Também meeiro não tem sujeição, aquela penitência de três dias por semana trabalhar para a fazenda, ganhando só meio jornal ou pouco mais. A seco. O desconto no jornal é o aluguel da terra, diz o dono, Pelo roçado, pela casa, pelo açude, pela lenha, para criar uns bichinhos. Estará certo? Vai ver não, mas o pobre sempre é quem leva o prejuízo.

Sabe que mais? Quem quiser que conserte o telhado. Deixa o diabo da casa cair. O homem que faça outra, não é o direito dele?

Nessa altura João Alípio já está caqueando o chão com o pé, em procura da “apragata”. Na rede vizinha a mulher se vira, pergunta meio adormecida:

— É você, João? — depois se emborca e volta a dormir, de rosto contra o pano.

João Alípio não tem que mudar de roupa, dormiu com as calças de todo o dia. Já de pé, dá uma espiada no menino menor que ronca, nuzinho, na sua rede do canto, junto à porta; o pai sente um cheiro — safado, molhou de novo!

João Alípio abre a porta da cozinha, tira um caneco d'água no pote e vai para o quintal lavar a cara e a boca. O cachorro magro o acompanha e dá uma corridinha de brincadeira nas galinhas que já estão ciscando. O galo protesta, danado.

Lá fora está frio. Uns esgarçados de névoa sobem do baixio do açude. A barra do dia acabou de clarear, os passarinhos já se dispersaram.

João Alípio pega o facão e uma acha de marmeleiro e repica um facho bem fininho para acender o fogo. Chega ao fogão de barro (que ele mesmo fez e já está selado, pedindo reforma), tira o bocal da lamparina, pinga umas gotas de gás no facho, risca um fósforo, arruma a lenha por cima do facho, vê se levantar estalando a primeira labareda. Aí ele bate na porta da camarinha das meninas e chama Neném, a mais velha, para vir fazer o café. Nessa altura o menino do meio, que dorme no corredor, já está de caneco na mão pedindo garapa. Neném sai do quarto com o cabelo levantado que é um arapuá, dá um croque no menino, toma a bênção ao pai, bota no fogo a lata com a água do café, e sai para o quintal. Logo em seguida aparece Côquinha, a segunda, arrastando o lençol. Côquinha também diz bença pai, pega na lata grande, se enrola no lençol feito uma visagem (já disse que lá fora faz frio) e desce em procura do açude. É ela que enche os potes, toda de manhã. A mulher será a derradeira a se levantar: está no mês de descansar, pesada e cheia de dores, Nossa Senhora do Parto lhe dê uma boa hora.

João Alípio recebe a tigela do café, bebe dum gole, põe-se a picar fumo na mão, enche o cachimbo. Apanha no torno a blusa remendada de ir pro roçado. Sacode os punhos da rede do filho maior, que dorme na sala. O frangote se levanta dum salto, estremunhado, com a cara espantada. Esse não pede bênção a ninguém, é moderno e entusiasmado.

João Alípio pega a enxada no canto, sai ao terreiro, se senta no banco debaixo do pé de jucá. Fica um pouco fumando, espiando Neném que entrou no chiqueiro e se prepara para tirar o leite da cabra.

Afinal ele se levanta, se espreguiça e se põe a caminho do roçado. Vinte passos atrás dele vem o rapaz, calado, emburrado, quase arrastando a enxada. Depois  do rapaz o cachorro.

João Alípio olha o sol, já descoberto. Pensa que é tarde, vai apertando o passo, mas ai se lembra que hoje não é dia de sujeição. Diminui o passo, espera o filho. Hoje vai de seu, que o dia é dele.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Nenhum comentário: