quarta-feira, 8 de abril de 2020

Luís da Câmara Cascudo (O Filho da Burra)


Um casal teve um filho tão grande que era uma coisa por demais. Meses depois o homem e a mulher morriam e a criança foi criada por uma burra. O menino formou, botou corpo, e só o chamavam Filho da Burra.

Já grande, Filho da Burra foi ganhar a vida e empregou-se num reinado onde mandou fazer uma bengala de ferro. O ferreiro fez uma bengala da grossura de um braço e Filho da Burra quando experimentou dobrou o ferro como se fosse um fio de arame. Mandou fazer outra, mais grossa, que ficou do seu gosto.

Como o seu patrão não o podia sustentar, porque ele comia dois bois por dia e quatro sacas de farinha, o rapaz largou o emprego e saiu pelo mundo. Encontrou um homem arrancando pé de pau com raízes e tudo e rolando para um lado.

— Como você se chama?

— Me chamo Rola-Pau!

— Vamos ganhar a  vida juntos?

— Vamos!

Saíram os dois e lá adiante viram outro camarada que empurrava as pedras como se fosse brinquedo, tirando todas do lugar.

— Como se chama você?

— Me chamo Rola-Pedra.

— Vamos ganhar a vida juntos?

— Vamos!

Foram os três andando até que pararam numa campina bonita e aí ficaram. Fizeram uma casinha de palha e todo dia, dois iam caçar e um ficava para fazer a comida num tacho bem grande. Ficou Rola-Pau e os companheiros foram para os matos.

Quando o almoço ia ficando pronto apareceu um bicho enorme roncando e pedindo tudo de comer.

— Ou como o almoço ou como você!

Rola-Pau trepou-se na alto da casinha, com um medo doido e o bichão devorou o almoço todo. Quando Filho da Burra e Rola-Pedra voltaram e não viram a comida, ficaram para morrer de raiva. Ficou então Rola-Pedra e, nas horas costumeiras, o bicho chegou e Rola-Pedra botou-se a ele brigando. Brigaram muito tempo e Rola-Pedra vendo que morria, largou e deu uma carreira de levantar poeira. Filho da Burra, quando chegou e não teve almoço, teve uma raiva danada.

No terceiro dia ficou ele preparando a comida. O bicho apareceu com a mesma conversa. Filho da Burra largou-lhe uma bengalada com a bengala de ferro que pegou bem no focinho do bicho e este não quis mais peleja. Ganhou os matos e Filho da Burra foi atrás, pega aqui, pega acolá, até que o bicho pulou num buraco e sumiu-se de terra a dentro. Filho da Burra marcou bem o canto e voltou para a casinha.

No outro dia veio com os dois companheiros e trouxeram o tacho amarrado numas cordas compridas. Filho da Burra meteu-se no tacho e os dois arriaram até embaixo. Lá no fundo da terra era espaçoso e tinha casas. Na primeira casa que Filho da Burra bateu apareceu uma moça bonita e disse que, pelo amor de Deus, ele fosse embora porque ali vivia uma serpente que matava toda a gente. O rapaz respondeu que viera para lutar com a serpente e matá-la. A moça explicou:

— Não pode ser. Quando ela cansa de brigar e cai para uma banda, pede pão e vinho. Come e bebe e fica de novo forte, vencendo todo o mundo.

— Pois a senhora, se quiser ficar livre, em vez de dar o vinho e o pão à serpente, dê a mim!

A moça prometeu. A serpente foi chegando, quebrando árvores e fazendo um barulho de ventania. O rapaz escondeu-se detrás da porta. A serpente foi entrando e fungando:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

A moça dizia que não havia ninguém, mas a serpente tanto procurou que viu Filho da Burra e voou em cima dele para matá-lo. Filho da Burra passou-lhe a bengala de ferro que saía fumaça. Foi uma briga que não tinha fim, até que caíram, um para cada lado, sem forças. A moça, mais que depressa, trouxe pão e vinho que a serpente estava pedindo, e deu ao rapaz que comeu e bebeu, tornando a ficar forte. Levantou-se e sentou a bengala na cabeça da serpente esbandalhando-a. A moça ficou satisfeita e disse que tinha mais duas irmãs encantadas, morando em duas casas adiante.

Filho da Burra foi para a segunda e lá a moça contou a mesma coisa. O rapaz fez a mesma proposta de comer o pão e beber o vinho e a moça aceitou. Escondeu-se e esperou o bicho-feroz que chegou como um pé-de-vento, derrubando tudo:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

A moça negou, negou, mas o bicho caçou o rapaz e o encontrou, botando-se a ele e brigando com vontade. O bicho era terrível, mas a bengala de ferro não fazia graça e os dois inimigos terminaram sem força para acabar o combate, caindo no chão os dois. O bicho pediu o vinho e o pão, e a moça foi buscar mas entregou ao rapaz que esmagou a cabeça do monstro.

Passou para a terceira casa e lá era um macacão que morava com a pobre moça. Aconteceu o mesmo. O macacão quando chegou farejando:

— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

Foi procurando e achou o rapaz, partindo para cima dele. Filho da Burra fincou-lhe a bengala com vontade. Briga lá e briga cá, até que uma bengalada raspou a cabeça do macacão e uma orelha caiu no chão. Filho da Burra agarrou a orelha e meteu-a no bolso porque o macacão sumiu-se, correndo como um condenado.

O rapaz juntou as três moças e os tesouros que elas tinham e foi para onde estava o tacho. Balançou na corda e o tacho foi puxado por Rola-Pau e Rola-Pedra, cheio de dinheiro. Depois subiram as três moças e o tacho desceu. Imaginando que os dois camaradas tivessem tramando a morte dele para ficar com as moças e o tesouro, Filho da Burra botou uma pedra bem grande no tacho e balançou a corda. Subiram o tacho até quase em cima e depois cortaram as cordas, despencando tudo para baixo.

Rola-Pau e Rola-Pedra já tinham escolhido as duas moças para noivas e acharam que deviam deixar Filho da Burra no buraco para gozarem a riqueza que tinham ganho. Foram para o reinado do pai das três moças.

Ficando lá embaixo, Filho da Burra estava meio triste quando apareceu o diabo, que era o macacão, gritando e saltando:

— Filho da Burra, me dá minha orelha!

— Não dou.

— Filho da Burra, me dá minha orelha que eu te tiro daqui!

— Tire primeiro.

O diabo virou-se numa árvore e o rapaz subiu por ela até fora do buraco. Quando ficou livre, voltou o diabo pedindo a orelha.

— Só dou a orelha se você me levar para o reinado!

— Levo. Vou me virar num cavalo e você monte, feche os olhos e só abra quando eu parar!

Virou-se num cavalo, selado, e Filho da Burra montou, fechou os olhos. Quando o cavalo parou, ele abriu e estava no reinado do pai das moças.

Rola-Pau e Rola-Pedra, numa carruagem, tinham ido casar na igreja. No palácio só ficara o rei e a princesa mais moça. Filho da Burra, quando o diabo tornou a pedir a orelha, disse que queria se encontrar dentro do palácio real:

— Feche os olhos!

Ele fechou e quando abriu, estava no salão do rei.

Chamou o rei e contou toda a sua história. O rei não queria acreditar na malvadeza dos futuros genros. O rapaz tirou do bolso um lenço e mostrou a ponta da língua da serpente que vivia com a princesa mais velha, a orelha da fera que estava com a do meio e a orelha do macacão que prendera a caçula. O rei chamou a princesa e esta confirmou tudo. Mandaram buscar Rola-Pau e Rola-Pedra que voltaram com os convidados. Quando foram vendo Filho da Burra no salão, correram para a janela e saltaram do sobrado abaixo, quebrando a cabeça nas pedras do calçamento, morrendo imediatamente. Filho da Burra casou com a princesa mais moça e viveu muito feliz. E a orelha do macacão? O diabo recebeu e voltou para os infernos.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1986.

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