quinta-feira, 30 de abril de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Romantismo Corrompido)


DONA ADRIANA DE FIGUEIREDO, setenta e dois anos, era do tipo romântica. Sonhadora. Aliás, sempre fora sonhadora. Tudo levava a sua imaginação a viajar além do alcance das vistas. Uma palavra dita aqui, outra ali, uma frase que alguém dissesse, um bichinho que pousasse na sua roupa, uma lufada de vento mais ameno que tocasse seu rosto, um raio de sol quente que a fizesse suar, uma lua bonita que surgisse resplandescente no infinito da noite, o mar, o mar, então, uau!, exercia uma onda forte em sua cabeça e a fazia navegar por terras nunca antes pisadas.

Enfim, qualquer pequena coisinha insignificante para as outras pessoas fazia dona Adriana de Figueiredo viajar  por  espaços cada vez mais espetaculosos. Seu Gabriel Figueiredo, o marido, mais velho que ela cinco anos, ao contrário da devotada esposa, nada tinha de romântico. Se mostrava vazio, longe dessas blandícias* que encantam os que vivem de pequenas melifluidades*. No geral, a criatura não se limitava a teorias, encarava sempre as coisas pelo lado positivo. Em resumo, seu Gabriel Figueiredo, na acepção da palavra, sem tirar nem "destirar", um prático de carteirinha e sindicato.

Certa manhã, ao não ver o marido sair cedo de casa, para uma viagem de um mês, três dias depois, já em clima de saudade, decidiu lhe mandar uma mensagem. Escreveu: “Amor da minha vida. Se estiver rindo, me mande um sorriso.  Se estiver chorando, me mande lágrimas. Se estiver com saudades, me mande um recadinho. Se estiver dormindo, me mande seu sonho. Quero sonha-los junto com você, e tentar fazer dele a sua melhor realidade”.

Não parou aí. Seguiu adiante: “Saiba que amo você, demais e onde quer que esteja, a distância nunca se fará pesada e densa”. Mandou. Uma hora depois o celular deu sinais de vida e dona Adriana de Figueiredo, pressurosa pela resposta, apressada para saber do companheiro de tantos anos de vida em comum, sobretudo, agitada e impaciente, com a sua ausência, leu o que a sua cara metade escrevera de volta: “Adri, estou no banheiro! O que faço?”.
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* Vocabulário (Dicionário Aurélio)
Blandícias – carícias.
Melifluidades – maneiras doces.


Fonte:
Texto enviado pelo escritor.

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