Era início de novembro de 2017. Muita gente em Belém se preparava para viajar aproveitando o feriado de finados, que por recair numa quinta-feira, deixava “imprensada” a sexta, fazendo a delícia de quem demanda os balneários esticando até o domingo, quando todos voltam para novo período de espera, até outro favorecimento do calendário.
Dominando o desejo de curtir esses dias na ensolarada Salinas decidi ficar, pois tinha que resolver uma pendência sobre passagens aéreas em uma agência de viagem. E lá estava eu no dia 2 fazendo isso, quando o aparelho celular tocou.
Do outro lado era Ivaneide, a secretária de uma das associações profissionais que faço parte, dizendo que havia em sua sala um cidadão procurando por mim. Em princípio estranhei, pois as pessoas interessadas em meus serviços como advogado costumam ir ao escritório, depois de combinar dia e hora para serem atendidas.
Coisa incomum mesmo. Fui informado que o sujeito insistia em saber meu endereço residencial, afirmando que já estivera no meu local de trabalho e não havia me encontrado. Intrigado, pedi que ela passasse o telefone para ele. Eu queria averiguar de quem se tratava. Um tom de voz rouco e profundo, permeado de um resfolegar de alguém muito cansado, sem maiores rodeios me saudou:
– Como vai o senhor? Lembra de mim? É o seu amigo Joel!
- Perdoe, mas não me lembro...
- É que já faz muito tempo. Eu era o vigia da rua, quando o senhor morava no Jardim Independência, no bairro de Nazaré.
E a partir daí começou a descrever com detalhes, o número da minha antiga casa, a marca do meu carro, o nome dos meus vizinhos, o alagamento que houve por lá durante uma monumental chuva de inverno, dando-me a plena certeza que realmente tinha laborado por lá, tão minucioso era seu discurso sobre aquela época, afirmando que de mim recebera muita ajuda para suprir suas necessidades pessoais e familiares. Eu simplesmente nada recordava, nem de sua fisionomia, nem dos favores que supostamente lhe fiz.
Prosseguindo na conversa, disse que não mais residia em Belém e sim no interior do Estado, para onde se mudara definitivamente há dois anos. E que de lá me trouxera um presente, pois sabendo da minha predileção pelos peixes dos nossos rios amazônicos, estava de posse de uma caixa térmica (isopor) com pescado especialmente preparado para me entregar.
Quem me conhece mais de perto sabe da minha inclinação culinária por peixes. Meus olhos devem ter brilhado. Mesmo desconfiado, ditei-lhe ao telefone o meu atual endereço, que ele foi anotando com a ajuda da Ivaneide, pois sua baixa escolaridade não lhe permitia fazê-lo sozinho. Feito o registro, esclareceu:
- Voltei pra Belém para acompanhar minha filha que mora aqui. O senhor lembra da Ana Maria? Era aquela garotinha que ia lá no meu serviço levar o lanche, quando eu fazia as “viradas” de fim de semana. Agora é uma mulher feita, mas sofre de um grave problema de saúde. Ela vai fazer uma cirurgia muito difícil e está precisando de ajuda. O senhor poderia ajudá-la?
Achando a conversa ainda mais inusitada, registrei de memória o nome do hospital onde a moça estava internada e o número do apartamento, prontificando-me a visitá-la assim que eu pudesse. Antes de se despedir, disse-me com um ar de indisfarçado júbilo:
- O senhor não sabe, mas agora eu sou espírita!
- Pôxa, que bom! Foi o que eu achei de melhor para responder.
- E como espírita, vivo em contato com os seres de luz. Quero lhe dizer que o senhor está perto de receber uma graça muito especial!...
- Amigo, muito obrigado, respondi. Deus lhe pague e lhe proteja...
Depois desta última frase dita por mim, o telefone passou a emitir fortes estalidos até que foi desligado, não me possibilitando mais falar com ele ou com a Ivaneide. Instintivamente atribuí o fato ao péssimo serviço de telefonia fixa ou móvel que dispomos. Por excesso de cautela, liguei para a portaria do prédio onde moro e seu Mundoca, veterano porteiro, atendeu. Disse-lhe que um amigo ia entregar um isopor com peixe e por se tratar de perecível, que avisasse imediatamente nossa empregada, que se incumbiria de apanhá-lo. Recomendei porém, que não permitisse a subida de ninguém ao apartamento pelo motivo óbvio: Infelizmente Belém, antes tranquila, tornou-se uma cidade perigosa e violenta, exigindo todos os cuidados no quesito segurança.
Nesse dia regressei no fim da tarde e ao indagar na portaria, informaram-me que ninguém deixara ali nenhum isopor com peixe. No outro dia a mesma coisa. Quer ver que seu Joel esqueceu o assunto ou não encontrou meu local de moradia, pensei. Daí me veio à mente o compromisso que com ele assumi de fazer uma visita à filha doente, de quem eu esquecera depois de tantos anos.
Moleque, ainda, ocupei a vaga deixada por um tio, que fixou residência no Rio de Janeiro, na Sociedade São Vicente de Paulo na minha cidade, dedicada a obras de caridade. Mais tarde, ginasiano, fiz parte da Sociedade Estudantil de Assistência Social (SEAS) que arrecadava donativos para famílias pobres; e até hoje eu e minha esposa, prestamos alguma ajuda aos carentes, na medida das nossas possibilidades. Assim, movido pelo dever de solidariedade, parti para o hospital.
Lá chegando, informei à recepcionista a finalidade da minha presença. Ela, após o protocolo de identificação, indicou-me o apartamento, que fui procurando com cuidado para não incomodar os pacientes, alguns deles atendidos nos próprios corredores. Ao postar-me em frente ao número que eu havia memorizado, bati levemente e uma voz frágil, como se estivesse a quilômetros, lá dos sumidouros do aposento ordenou:
- Pode entrar!
O que aconteceu lá dentro me deixaria perplexo! Soubesse disso eu nem teria entrado. Sou cético para certas situações, no entanto há coisas para as quais é difícil encontrar explicação. Empurrei devagar a porta, ao tempo em que um cheiro forte e adocicado de éter invadiu meus pulmões, quase me fazendo retroceder.
No cômodo, de dimensões reduzidas, não havia ninguém além dela: uma moça franzina, cabelos pretos em desalinho, sob um lençol que lhe chegava ao busto, tendo uma agulha de soro fisiológico espetada no braço esquerdo. Sua palidez intensa e o aspecto enfermiço eram reveladores de seu precário estado de saúde. Fiquei intrigado pois quem devia de estar ali, tomando conta da filha doente não estava, justamente o pai - seu Joel. Com muito tato, iniciei a conversa:
- ...Ana Maria?
- Sim? Quem é o senhor?
- Você era pequena e não se lembra de mim. Sou amigo do seu pai. Pelo telefone, ele me disse que você estava doente, informou o local de sua internação, a cirurgia que você vai fazer e da ajuda que está precisando. Pena que ainda não recebi o isopor com peixe que ele trouxe de presente pra mim...
- Isopor com peixe?
- Sim, ainda estou esperando. Ele sabe que eu gosto muito de peixe.
Notei que a lividez de sua pele se acentuou até transformar-se numa máscara mortuária esculpida em sua tez, porém achei que era da própria doença. Como ela quedou-se muda, voltei a falar tentando humanizar as reações da jovem:
- O que posso fazer por você? Como faço para ajudá-la?
- Eu não estou precisando de nada – respondeu com expressão fechada.
- De nada? Mas foi seu pai que me pediu para vir aqui verificar o que você está necessitando, pois vocês se mudaram para o interior e...
- Quero lhe dizer que nós nunca nos mudamos para o interior - cortou ela interrompendo-me com certa aspereza. E mal disfarçando o incômodo causado pela minha presença, prosseguiu:
- Sempre vivemos em Belém, no bairro do Parque Verde. E quanto ao papai, acho impossível ele ter-lhe trazido qualquer presente.
- Mas foi o que ele me disse quando conversamos...
Desabando numa crise de pranto, com expressão de dor estampada no rosto lívido vincado pela unha do sofrimento, Ana Maria fitou-me com olhos girovagos balbuciando com dificuldade:
- Só pode ser engano. Papai morreu de infarto no Dia de Finados. Anteontem fez dois anos. Ele está enterrado aqui em Belém no Cemitério São Jorge. O senhor não pode ter conversado com ele...
Fonte:
Crônica enviada pelo autor, integrante do livro
Célio Simões de Souza. Recados da Memória. Editora Smith, 2017.
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