sábado, 18 de abril de 2020

Ruth Guimarães (O Padre e o Menino Esperto)


Um padre viajava, certa vez, pelas aldeias, escarranchado* numa velha besta ruça. À margem de um rio largo, encontrou um moleque brincando.

– Menino! – Perguntou ele, querendo passar para o outro lado. – Esse rio é fundo?

– Que esperança! – respondeu o menino com uma carinha de anjo. - O gado do meu pai atravessa aí, com a água pelo peito.

O padre, em vista dessa informação, tocou a besta para a água, mas o rio era de uma fundura sem fim, e a besta perdeu o pé. Ela e o padre desapareceram rio adentro, rodaram arrastados pela correnteza, e somente a muito custo conseguiram se salvar. Quando o padre atingiu a margem onde estava o menino, perguntou:

- Onde você mora?

- Perto daqui.

– Quero ir lá.

Foram, mas não encontraram ninguém em casa.

– Onde está seu pai, menino?
   
- Papai foi plantar o que não nasce.

– E sua mãe?

- Foi trabalhar para comer ontem.

– Esperarei que eles cheguem – declarou o padre, fechando a carranca.

Os pais do menino se demoraram muito, porém quando apareceram, lá estava o padre sentado, esperando, e aí não mais de carranca fechada, e sim todo sorridente.

– Que menino esperto esse seu filho! – disse ele ao casal. – É muito inteligente. Quando eu vinha para cá, ele me disse que o gado do seu pai atravessava o rio com água pelo peito.

– É verdade, – falou o pai - nós criamos patos, eles não afundam.

O padre disfarçou uma careta.

– Pois é – disse ele, sorrindo amarelo. – Ele disse que a senhora tinha ido trabalhar para a família comer ontem.

– Está certo – disse a mãe. – Fui fazer pães para pagar uns que tomei de empréstimo.

– Ele disse também que o senhor foi plantar o que não nasce.

– É isso mesmo – disse o pai. – Fui ao enterro de um dos meus amigos.

"Esse moleque me fez tomar um banho no rio, e quase morrer afogado, mas ele me paga" – pensou o padre. E continuou em voz alta:

- Se os senhores não se incomodassem, eu levaria o menino comigo. Ele é tão inteligente, que é pena deixá-lo na roça, onde o mais que poderá aprender é carpir, cuidar de plantações de milho e feijão miúdo. Se for comigo, será diferente. Frequentará escolas, e poderá vir a ser um grande homem…

Tanto falou, tanto insistiu, que conseguiu o consentimento dos pais do menino e o levou para a cidade. Mal chegaram, o padre perguntou:

- O que é isto onde moro?

- Casa – respondeu o garoto, prontamente, um pouco admirado da pergunta.

– Não é casa, é traficância. Você vai apanhar, para não falar mais bobagem.

Pegou um chicote e deu-lhe umas lambadas na perna.

- O que é que eu sou?

- Padre.

- Não está certo. Sou papa-cristo.

- O que é minha empregada?

- Mulher.

– Não é mulher, é folgazona.

E dava-lhe de chicote.

– O que é isso, menino? – dizia, abrindo a torneira.

– Água.

– Não é água, é abundância.

– Que é isto?

- É um gato – dizia o menino amedrontado.

– Não é gato, é papa-rato.

– E isto?

- Fogo.

– Não é fogo, é esquenta-mundo.

E batia de chicote no garoto. Quando se cansou, guardou o rabo-de-gato e foi dormir a sesta.

Então, o menino pegou o gato, amarrou-lhe um feixe de sapé no rabo e pôs fogo. O bichano, sentindo o rabo queimar, correu pela casa, espantado, e foi parar no telhado, miando desesperadamente. Em pouco tempo, ateou fogo à casa. O menino, vendo o estrago feito, trancou a porta do quarto onde dormia o padre, amontoou os móveis diante dela, e começou a gritar, com toda a força dos pulmões:

        "Acorda seu papa-cristo,
        que lá vai o papa-rato
        com o esquenta–mundo no rabo!
        Acorde com a abundância,
        Que leva o diabo à traficância!"

O padre acordou e começou a berrar:

- Menino, destranque a porta! – gritava quase asfixiado pela fumaça.

E o menino, sem piedade:

- Não é porta, é batedeira.

– Menino, põe a chave por baixo da porta!

- Não é chave, é giradeira.

– Menino, traga água.

– Não é agua, é abundância.

– Apague o fogo, menino!

- Não é fogo, é esquenta-mundo.

O menino, então, pegou a trouxinha de roupas, e saiu correndo para a sua casa, sem nem olhar para trás.
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* Escarranchado – Montado ou sentado com as pernas abertas.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

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