sábado, 14 de outubro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 59

 

Mensagem na Garrafa – 9 -

Paulo Mendes Campos

Belo Horizonte/MG, 1922–1991, Rio de Janeiro/RJ

MENINA NO JARDIM

Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.

Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama.

Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem. Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.

Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.

– Desce da grama, garotinha – disse a Lei.

– Blá blé bli bá – protestou a garotinha.

– É proibido pisar na grama – explicou o guarda.

– Bá bá bá – retrucou a garotinha com veemência.

– Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.

– Buh buh – afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais agradável do que a sombra.

A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex” (a lei é dura, mas é a lei).

– Onde está sua mamãe?

A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.

A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.

– Aberto o precedente os outros fariam o mesmo – disse o guarda com imponência.

– Que fizessem, deveriam fazê-lo – disse o pai.

– Como? – perguntou o guarda confuso e vexado.

– A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.

– Mas isso estraga a grama, cavalheiro!

– E daí? Que tem isso?

– Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela – raciocinou a Lei.

– E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?

O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:

– É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.

– Buh bah – concordou a menina, correndo em disparada para a grama.

– O senhor entende o que ela diz? – perguntou o guarda.

– Claro – respondeu o pai.

– Que foi que ela disse agora?

– Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.

Fonte: Sales, Herberto (org.).Antologia Escolar de Crônicas. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1971. 
p. 213-16.

Contos do Paraná ("Ao pé das letras", de Wilson Silva)

Dezembro de 1953. A greve na aviação comercial forçava os pilotos de táxi-aéreo a um sobre-esforço para suprir as faltas dos Douglas, Convair e Scandia das companhias. Voavamos desde o nascer até o por-do-sol. A maioria das viagens era de Londrina para Curitiba e vice-versa.

Eu já estava pilotando no limite da resistência. Quase me transformara, como os outros companheiros, num piloto-automático, decolando, ganhando altura, nivelando, baixando, aproximando, pousando... e repetindo tudo logo em seguida.

Naquela tarde eu taxiei o Bonanza PT-AHO até a cabeceira 17 do Bacacheri, com três passageiros. Dos que estavam no assento traseiro não me lembro. Mas à minha direita, na frente, ia o Michel Dib, chefe do Serviço de Trânsito de Cornélio Procópio, devidamente fardado (brim cáqui) e com seu quepe branco. Já conhecia Dib de outros voos. Magro, traços bem marcados de árabe, fala mansa, jeito tranquilo. Decolei e aproei Londrina, ganhando altura.

Fazia um calor sufocante, o sol parecia querer nos fritar dentro do avião. No ar quente e pesado, o Bonanza se arrastava como num pote de geleia, pesado e com má vontade aerodinâmica.

De súbito eu - que pilotava librado em pensamentos extra-aeronave - ouço o rechinar (ranger) das engrenagens do trem-de-pouso baixando. Levo um susto, corto a manete (acelerador do motor) de aceleração, puxo o manche para trás, "matando" a velocidade e procuro, num átimo, localizar a "pane".

Um trem-de-pouso jamais pode ser baixado em linha-de-voo, em velocidade de cruzeiro. Checo o painel e vejo a chave de comando do trem na posição de "down" (baixo). Não entendi, eu não havia comandado trem baixo!

Dib, encostado na porta, braços cruzados e quepe com a pala sobre os olhos, estava quieto, como um anjinho:

- Dib, ô Dib! Você mexeu aqui? - Perguntei quase gritando.

- Eu? Ué! - pensou alguns segundos - Mexi sim!

- Mas, como? Essa é a chave de trem-de-pouso, tem uma trava de segurança por baixo! Por que fez isso?

A inocência da resposta do Dib me fez rir:

- Wilson, é que estava muito quente aqui dentro. Aí, comecei a olhar, olhar e vi escrito "Landing Gear". Gear, pensei, é frio. Aí, empurrei essa chavinha pra baixo, ué!...
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Wilson Silva, ex-aviador no Norte do Paraná, jornalista.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Márcia Wayna Kambeba (Poemas “Tana Tuiuca*”)

(Tana Tuiuca = “Nossa Terra”, no idioma Kambeba)


Márcia Wayna Kambeba é indígena, do povo Omágua/Kambeba do Alto Solimões (AM). Nasceu na aldeia Belém do Solimões, do povo Tikuna. Mora hoje em Belém (PA) e é mestra em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, está cursando doutorado em Linguística na UFPA. Escritora, poeta, compositora, fotógrafa e ativista. Em sua luta na literatura e na música, aborda, sobretudo, a identidade dos povos indígenas, territorialidade e a questão da mulher nas aldeias. Em 2013, lançou o seu primeiro livro "Ay Kakyri Tama", que reúne textos poéticos e fotografias da vivência do seu povo dentro das cidades.

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ÁRVORE DA VIDA

Vem água, banha nossa alma Kambeba!

No despertar da aurora,
No mito de criação,
Na gota que traz a vida,
De um povo, de uma nação.

Batendo na samaumeira
Caindo feito algodão,
Pro colo do grande rio
Que num sopro de criação,
Dá vida ao “índio” guerreiro,
E a mulher, sua paixão.

Assim para o povo Omágua
A samaumeira tem a função,
De mãe das grandes árvores,
De cura e proteção,
E pelo indígena é cultuada,
Essa gigante, mãe amada,
Na dança nativa, dos povos irmãos.
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AY KAKUYRI TAMA
(Eu Moro na Cidade)


Eu moro na cidade
Esta cidade também é nossa aldeia,
Não apagamos nossa cultura ancestral,
Vem homem branco, vamos dançar nosso ritual.

Nasci na Uka* sagrada,
Na mata por tempos vivi,
Na terra dos povos indígenas,
Sou Wayna, filha da mãe Aracy.

Minha casa era feita de palha,
Simples, na aldeia cresci
Na lembrança que trago agora,
De um lugar que eu nunca esqueci.

Meu canto era bem diferente,
Cantava na língua Tupi,
Hoje, meu canto guerreiro,
Se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani.

Hoje, no mundo em que vivo,
Minha selva, em pedra se tornou,
Não tenho a calma de outrora,
Minha rotina também já mudou.

Em convívio com a sociedade,
Minha cara de “índia” não se transformou,
Posso ser quem tu és,
Sem perder a essência que sou,

Mantenho meu ser indígena,
Na minha identidade,
Falando da importância do meu povo,
Mesmo vivendo na cidade.
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CABOCLO RIBEIRINHO

Ao som do banzeiro do rio
As canoas vem, as canoas vão.

É o caboclo ribeirinho,
Que luta pelo seu sustento, pelo seu pão
Ele rema, joga a sua malhadeira
Esperando pegar um bom pirarucu
Ou um grande pirabutão.

Ao som da melodia dos pássaros,
Que voam em sua direção,
Ele segue o seu caminho,
Observando o horizonte,
que está além do alcance de sua mão.
Ao som do banzeiro do rio

As canoas vem, as canoas vão.

É o caboclo ribeirinho,
Que vive a vida com emoção,
Em meio ao verde e à margem do rio,
Cultiva a vida, sem muita preocupação.

Seu convívio em meio a natureza,
Fez dele um grande conhecedor,
Sabe os segredos da fauna e da flora,
Dom de Deus, o nosso criador,
Que se revela no entardecer da aurora.

Ao som do banzeiro do rio
As canoas vem, as canoas vão!
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NATUREZA EM CHAMA

Na terra sagrada
Que Tupã criou,
Do seio materno
Se ouve o clamor,
Da mãe natureza
Sofrendo de dor.

O fogo ardente,
Ao longe se vê,
Queimando a mata
Sem quê, nem porquê,
As folhas se torcem
Querendo viver.

No solo desnudo,
Os restos mortais,
Do verde da vida
E dos animais,
Queimados, sofridos
Em cinzas reais.

Dos gritos agudos
Se ouve o clamor,
Do fruto ardendo
Na chama, no calor,
Ceifado, perdido,
O fogo o calou.

Dos olhos tristes,
Uma lágrima cai,
O lamento de dor
Com o vento se vai,
Varrendo o chão,
Varrendo o chão!
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SER INDÍGENA – SER OMÁGUA

Sou filha da selva, minha fala é Tupi.
Trago em meu peito,
as dores e as alegrias do povo Kambeba
e na alma, a força de reafirmar a
nossa identidade
que há tempo fico esquecida,
diluída na história
Mas hoje, revivo e resgato a chama
ancestral de nossa memória.

Sou Kambeba e existo sim:
No toque de todos os tambores,
na força de todos os arcos,
no sangue derramado que ainda colore
essa terra que é nossa.
Nossa dança guerreira tem começo,
mas não tem fim!
Foi a partir de uma gota d’água
que o sopro da vida
gerou o povo Omágua.
E na dança dos tempos
pajés e curacas*
mantêm a palavra
dos espíritos da mata,
refúgio e morada
do povo cabeça-chata.

Que o nosso canto ecoe pelos ares
como um grito de clamor a Tupã,
em ritos sagrados,
em templos erguidos,
em todas as manhãs!
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TANA KANATA AYETU
(Nossa Luz Radiante)


Tuyuca com sua magia,
Um canto se faz ecoar,
Com a orquestra dos passarinhos
A música paira no ar,
Mas, é preciso sensibilidade,
Para a melodia escutar.

Nas escala musical
O rouxinol vem nos mostrar,
Sua voz graciosa,
Que unida ao sabiá,
Formam uma dupla harmoniosa,
E com suavidade, nossa vida vem alegrar.

E diante de tanta beleza,
Deste solo verde e marrom,
Convivem os povos indígenas
Dividindo os bens em comum,
E com a força da natureza,
Deus mostra sua realeza,
Na presença de Tana Kanata Ayetu.
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UNIÃO DOS POVOS

Nós, povos indígenas,
Habitantes do solo sagrado,
Mesmo sem nossa aldeia,
Somos herdeiros de um passado.

Buscamos manter a cultura,
Vivendo com dignidade,
Exigimos nosso respeito,
Mesmo vivendo na cidade.

Somos parte de uma história,
Temos uma missão a cumprir,
De garantir aos tanu muariry*,
Sua memória, seu porvir.

Vivendo na rytama* do branco,
Minha uka* se modificou,
Mas, a nossa luta pelo respeito,
Essa ainda não terminou.

Pela defesa do que é nosso,
Todos os povos devem se unir,
Relembrando a bravura,
Dos Kambeba, dos Macuxi,
Dos Tembé e dos Kocama,
Dos valentes Tupi Guarani

Assim, os povos da Amazônia,
Em uma grande celebração,
Dançam o orgulho de serem,
Representantes de uma nação,
Com seu canto vem dizer:
Formamos uma aldeia de irmãos.
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* Vocabulário:
Curacas = caciques;
Rytama = aldeia;
Tanu muariry = nossos netos;
Uka = casa.


Fonte: Márcia Kambeba. "Ay kakyri Tama - Eu moro na cidade". Manaus/AM: Grafisa Gráfica e Editora, 2013

Contos e Lendas do Mundo (Nicarágua: O barco negro)

Nota: Existem algumas versões em várias regiões da Nicarágua sobre barcos que navegam sem nunca encontrar o porto. Narrado por uma mulher do povoado de Zapatera, em 1930, este relato pertence a Pablo Antonio Cuadra, um dos escritores nicaraguenses mais conhecidos da atualidade. Tem uma vasta obra em verso, dirigiu várias publicações, como a revista El Pez y la Serpiente. Este conto foi publicado pela primeira vez em seu livro Esos Rostros Que Asoman en la Multitud (Esses rostos que aparecem na multidão).
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Contam que muito, mas muito tempo atrás, uma lancha estava cruzando de Granada a São Carlos e, quando contornava a Ilha Redonda, recebeu sinais de socorro feitos com um lençol.

Então dirigiu-se para lá.

Ao desembarcar, os tripulantes ouviram apenas lamentos de dor. As duas famílias que viviam na ilha, desde os idosos até as crianças, estavam morrendo envenenadas. Haviam comido uma rês que morrera picada por uma cobra venenosa.

– Levem-nos para Granada, pelo amor de Deus! – suplicaram.

– E quem paga a viagem? – perguntou o capitão.

– Não temos nem um centavo – responderam os envenenados –, mas pagamos com lenha, com bananas.

– E quem vai cortar a lenha? Quem vai colher as bananas? – indagaram os marinheiros.

– Estou levando uma vara de porcos a Los Chiles e, se não ficar atento, os animais morrerão sufocados – lembrou o capitão.

– Mas nós somos gente! – argumentaram os moribundos.

– Nós também! – replicaram os barqueiros – E ganhamos a vida com isso.

– Mas, meu Deus! – gritou então o mais antigo morador da ilha. – Não veem que, se nos deixarem aqui, nos entregarão à morte?

– Lamento, mas temos compromissos. – ponderou o capitão.

E voltou ao barco com os marinheiros, sem sentir a menor pena daquela gente, nem mesmo vendo como os coitados se contorciam.

E lá ficaram eles. Mas uma velhinha levantou-se imediatamente do catre e, gritando o mais que pôde, lançou-lhes uma maldição:

– Que se feche o lago para eles, assim como nos fecharam o seu coração!

A lancha partiu, afastou-se pelas altas águas do lago a caminho de São Carlos e se perdeu.

Assim contam. Nunca mais avistaram terra. Não podem ver as montanhas nem as estrelas. Há anos, dizem, séculos que estão perdidos. O barco já está negro, as velas podres, e o cordame arrebentado.

Muita gente do lago os tem visto. Topam nas altas águas com o barco negro, e os marinheiros, barbudos e esfarrapados, gritam:

– Onde fica São Carlos?

– Onde fica Granada?

...Mas o vento os leva e não conseguem avistar terra. Foram amaldiçoados.

Fonte:
Ruth Guimarães e outros. Mitos, contos e lendas da América Latina e do Caribe. Ed. Melhoramentos.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 17

 

Mensagem na Garrafa – 8 -


Fernando Pessoa

Lisboa/Portugal,1888–1935

PALCO DA VIDA

Você pode ter defeitos,
viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não se esqueça de que sua vida é a maior riqueza do mundo.
E somente você pode evitar que ela vá a falência.
Há muitas pessoas que precisam, admiram e torcem por você.
Gostaria que você sempre se lembrasse de que ser feliz não é ter um céu sem tempestade, caminhos sem acidentes, trabalhos sem fadigas, relacionamentos sem desilusões.
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros.
Ser feliz não é apenas valorizar o sorriso, mas refletir sobre a tristeza.
Não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos.
Não é apenas ter júbilo nos aplausos, mas encontrar alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um não.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós.
É ter maturidade para falar eu errei.
É ter ousadia para dizer me perdoe.
É ter sensibilidade para expressar eu preciso de você.
É ter capacidade de dizer eu te amo.
É ter humildade da receptividade.
Desejo que a vida se torne um canteiro de oportunidades para você ser feliz . . .
E, quando você errar o caminho, recomece.
Pois assim você descobrirá que ser feliz não é ter uma vida perfeita.
Mas usar as lágrimas para irrigar a tolerância.
Usar as perdas para refinar a paciência.
Usar as falhas para lapidar o prazer.
Usar os obstáculos para abrir as janelas da inteligência.
Jamais desista de si mesmo.
Jamais desista das pessoas que você ama.
Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um obstáculo imperdível ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.

Pedras no caminho?
Guarde todas,
um dia vai construir um castelo . . .

Carolina Ramos (Mudança...)

Tini morreu bem velhinho, mas sempre bonito, passeando a majestade da sua bela cauda arrastada solenemente pelo piso do sobradão da Ponta da Praia. Isto porque, quando cheguei à idade mágica dos dezoito anos, meu pai, que vendera os dois bangalôs da Alexandre Herculano, comprara o tal lindo sobrado, com seu torreão lateral, estilo mourisco, lá para os lados da Ponta da Praia - Rua Januário dos Santos, com amplo quintal arborizado a atrair pássaros, borboletas e crianças, que aos poucos chegariam.

O novo endereço tornou-se palco de um casamento, de início desajustado e sofrido, e que, embora se estendesse por vinte e um anos, chegou à inapelável separação, com saldo positivo de três filhos muito e muito queridos.

Lá, moramos por largo tempo, até que, naquele decisivo 1970, meu pai, ante o casamento desfeito da filha, adquiriu o apartamento, frente ao mar, palco de nossas novas vidas, onde ele e minha mãe residiram até o final de seus dias. Neste espaçoso apartamento, foram criados meus filhos até quando, cada um a seu tempo bateu asas, deixando o ninho, ao traçar os próprios rumos.

Nesse ninho ainda estou. E dele também partirei, num dia que só Deus conhece.

O condomínio "Núncio Malzoni", onde se localiza o apartamento em pauta, logo depois de construído, passou a apresentar os mesmos problemas de inclinação comuns aos demais da região, passando, com o tempo, a ser conhecido como - Torre de Pizza santista.

Durante muito tempo fez jus a esta citação, acabando por ser o primeiro a ser posto novamente a prumo. E isto, é preciso que se diga, aconteceu com tecnologia nacional, o que atraiu o interesse de engenheiros da Itália e Alemanha. Hoje, o nosso ex-Torto é referência das mais honrosas à tecnologia brasileira, sendo considerado um dos prédios mais sólidos da orla santista.

A narrativa aos poucos desvirtuou-se ao assumir, quase que de modo inevitável, um leve tom autobiográfico, absolutamente não pretendido. É hora do retorno ao enfoque inicial, fiel ao que pede o título: - "Bichos... bichinhos... e bichanos" - queridos amiguinhos que, em tempos distantes, deixaram suas pegadas ao lado dos meus passos.

Para retomar o fio das ideias, faz-se necessário, entretanto, outro retrocesso. Assim, retornemos àquele elegante sobrado da Rua Januário dos Santos que acabou por fazer com que a população felina crescesse, a partir das ninhadas abusivamente despejadas em seu amplo jardim, na certeza de que não seriam descartadas por quem provava ter coração mole, capaz de acolher cães, gatos e outros animaizinhos, desde que abandonados à sua porta.

Acredito que até mesmo São Francisco, sempre amigo dos animais, (a ponto de ser eleito Protetor deles), tenha dado a muitos dos seus protegidos o endereço daquela casa acolhedora, que tão bem os recebia, embora nem sempre de boa vontade por parte de minha mãe.

Contudo, é preciso que se diga - minha santa mãezinha, quase sempre acabava por integrar-se às tarefas assumidas pela filha. Mas... O dedinho solidário de São Francisco, indicador daquele endereço, deixa evidenciado que, pelo menos daquela vez, ele não estaria de todo ausente às circunstâncias.

E isto explica o telefonema recebido, numa tarde qualquer, de uma vizinha moradora na casa fronteira à nossa. Alertava-me ela que havia um cavalo, há muito tempo, com a cabeça enfiada por sobre o portão da nossa garagem... como a querer entrar.

Voei para o portão. Fato confirmado.

Lá estava o tal cavalo - longo pescoço a ultrapassar o portão da garagem, enquanto o dono daquele pescoço, impassível e sem demonstrar qualquer receio, parecia ciente, de sobejo, ser aquele o endereço absolutamente certo, que procurava.

Aproximei-me... Acarinhei-o, sem que me repelisse ou demonstrasse qualquer receio.

Foi quando, com desgosto, pude ver uma enorme chaga no dorso daquele pobre cavalo, provocada pelo roçar dos arreios... por algum excesso de carga, ou... sabe-se lá pelo que!

Imediatamente, fui à busca de medicamentos e, após limpeza do ferimento, cuidei da feia ferida sem que aquele pobre animal demonstrasse rebeldia ou a mínima vontade de afastar-se dali. E, também, sem esquivar-se à minha intervenção, que embora cuidadosa e bem intencionada, não deixaria de ser, inevitavelmente, dolorosa.

Quando terminei, acariciei-o em despedida. E ele, mesmo, sem que ninguém o mandasse embora, afastou-se lentamente, sem que jamais eu o tornasse a ver.

Naquele sobrado da Rua Januário, outros bichinhos se fizeram presentes, tais como dois jabutis, que tomaram para si o canteiro do lado esquerdo do casarão, nunca saindo dali - como se aquele território estivesse demarcado apenas para desfrute daquele pacato casal cascudo.

E, por lá, apareceu também o Barão - um cão com veleidades à raça policial, embora de menor porte. Meu pai o recolhera, após ser ele atropelado na praia por um dos bondes que, naquele tempo, por lá circulavam. Fora salvo por uma dessas plataformas embutidas e que eram baixadas em casos de emergência, para proteção da vítima, isolando-a das rodas e amenizando traumas do atropelamento. Barão safara-se, com a graça de Deus, embora com uma das pernas comprometida.

Cão pacato, dócil, embora estigmatizado pela aparência. Seu terror à pirotecnia era cada vez mais notório! Num festivo mês junino, tivemos que o ir buscar na casa de um vizinho, coronel do exército, que nos avisara estar o Barão, trêmulo e apavorado por conta do foguetório, escondido no andar superior, sob a cama do casal. Seus dentes agressivos não permitiam que ninguém o tirasse de lá. Pobre Barão! Bravo apenas na aparência. Pão casca dura, mas só por fora... Por dentro... apenas miolo dos mais macios!

Lembrou-me, recentemente, uma de minhas filhas, a Márcia, que chegamos a ter, ainda que só por alguns dias, um cão da raça Guaió. Muito vagamente lembro-me dele e sequer ouvi falar sobre a existência da tal raça que, segundo minha informante, foi iniciada aqui em Santos e que teria conotações com a raça fila (?) - única raça brasileira catalogada. Se assim for, o tal cãozinho de pelagem negra encaracolada, que passou conosco apenas alguns dias, teria relevante pedigree. Mesmo assim, sua vaga passagem não permite lembrar como chegou até nós e nem, quando se foi. Que fique o registro.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Daniel Maurício (Alma Lírica) – 2


No parque
Já é primavera.
Mas dentro de mim,
O outono insiste
A desfolhar
Lembranças.
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O amor é flor
Que não
Escolhe
A cor pra
Desabrochar.
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O sorriso virou saudades
No lugar vazio
Cheiro de lavanda
Com o tempo
Os olhos já não regam
As pálpebras entristecidas
Mas o coração,
Ah!
Este continua navegando
Encharcado de lembranças.
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Me fiz lua
Só pra
Ser tua
Todas
As noites.
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Esqueci de combinar com o coração
Quando disse
Que não iria mais me apaixonar.
Ps.:
E a paixão ganhou nome, o teu.
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Quando
penso
em você
Balança
em mim
Uma árvore
de saudades
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Derrubando poesia
Tomara que um dia
Alguém encontre
E guarde alguma pra si.
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A saudade
Brincou de fazer colar de pérolas
No meu rosto
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Suavemente
Cai uma frutinha no rio.
Sem ondas,
Na calmaria das águas,
Encho o meu bolso de silêncio.
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Pensando
O
Futuro
Quando ela percebeu
Que a soma dos ontens
Era maior do que a soma
Dos amanhãs
Ela entendeu
A urgência do hoje
Dado como um pão sagrado
E começou a viver.
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ÍNDIO

Ao som dos gritos dos guerreiros
A natureza dança de corpo inteiro.
E nas asas dos pássaros ligeiros
Suas almas cantam livres e sem medos.
Mas nos olhos faiscantes
Escorrem os sonhos dos antepassados.
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Seu beijo
É a chave
Que abre meu apetite.
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No
Corpo
Da
índia
Destemida
A natureza sem ser reprimida
Brinca, pintando sonhos...
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Em meus lábios
Ficaram os desenhos
Dos teus beijos.
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Aquecida voarei.
Sou Fênix.
Teu fogo
Só alimenta as minhas cinzas.
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Quando passas por mim
Viro outono:
Me desapego
E caio aos teus pés.
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Na delicadeza
Dos teus traços
Pinto
No imaginário
Com as cores
Que eu
Te quero.
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Ah,
Essas mãos
Que me cuidam!
Cicatrizam
As minhas dores
E sem
Pedir favores
Massageiam
A minha alma.
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Hoje
A minha
saudade
criou asas
Partiu
da minha
janela
E foi até
a tua
Para
te procurar

Fonte: Daniel Maurício. Alma Lírica. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Alcântara Machado [Corinthians (2) vs. Palestra (1)]


Prrrrii!

- Aí, Heitor!

A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela.

A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração. Suspirou:

- Aaaah!

Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mi1 pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.

Delírio futebolístico no Parque Antártica.

Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava.

- Neco! Neco!

Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou.

- Gooool! Gooool!

Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um desaforo, um absurdo.

Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians!

Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:

- Go-o-o-o-o-o-ol!

Miquelina fechou os olhos de ódio.

- Corinthians! Corinthians!

Tapou os ouvidos.

- Já me estou deixando ficar com raiva!

A exaltação decresceu como um trovão.

- O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí, Rocco! Quebra eles sem dó!

A Iolanda achou graça. Deu risada.

- Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta paixão!

Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio (o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do S. C. Corinthians Paulista, campeão do Centenário) só por causa dele.

- Juiz ladrão, indecente! Larga o apito, gatuno!

Na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga toda a gente sabia de sua história com o Biagio. Só porque ele era frequentador dos bailes dominicais da Sociedade não pôs mais os pés lá. E passou a torcer para o Palestra. E começou a namorar o Rocco.

- O Palestra não dá pro pulo!

- Fecha essa latrina, seu burro!

Miquelina ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços. Ergueu a voz:

- Centra, Matias! Centra, Matias!

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.

- Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra Aleguá! Aleguá!

O italianinho sem dentes com um soco furou a palheta Ramenzoni de contentamento. Miquelina nem podia falar. E o menino de ligas saiu de seu lugar. todo ofegante, todo vermelho, todo triunfante, e foi dizer para os primos corinthianos na última fileira da arquibancada:

- Conheceram, seus canjas?

O campo ficou vazio.

- Ó... lh'a gasosa!

Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos automóveis. A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de vestidos azuis ganham beliscões. E riam. Torcedores discutiam com gestos.

- Ó... lh'a gasosa!

Um aeroplano passeou sobre o campo.

Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.

- Diga pra ele quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.

Filipino mergulhou na multidão.

Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.

Prrrrii!

- O Rocco disse pra você ficar sossegada.

Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que saiu correndo com ela. E a linha toda avançou.

- Costura, macacada.

Mas o juiz marcou um impedimento.

- Vendido! Bandido! Assassino!

Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada.

- Não pode! Põe pra fora! Não pode!

Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.

Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina protestou baixinho:

- Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi!

- Quantos minutos ainda?

- Oito.

Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.

- CA-VA-LO!

Prrrrii!

- Pênalti!

Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou os olhos. Depois perguntou:

- Quem é que vai bater, Iolanda?

- O Biagio mesmo.

- Desgraçado.

O medo fez silêncio.

Prrrrii!

Pan!

- Go-o-o-o-ol! Corinthians!

- Quantos minutos ainda?

Pri-pri-pri!

- Acabou, Nossa Senhora!

Acabou.

As árvores da geral derrubaram gente.

- Abr'a porteira! Rá! Fech'a porteira! Prá!

O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços.

- Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CORINTHIANS!

O ruído dos automóveis festejava a vitória. O campo foi-se esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza.

- Que é - que é? É jacaré? Não é!

Miquelina nem sentia os empurrões.

- Que é - que é? É tubarão? Não é!

Miquelina não sentia nada.

- Então que é? CORINTHIANS!

Miquelina não vivia.

Na Avenida Água Branca os bondes formando cordão esperavam campainhando o zé-pereira.

- Aqui, Miquelina.

Os três espremeram-se no banco onde já havia três. E gente no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da entrevia.

A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando. O mulato com a mão no guindaste é quem puxava a ladainha:

- O Palestra levou na testa!

E o pessoal entoava:

- Ora pro nobis!

Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço desabafou:

- Tudo culpa daquela besta do Rocco!

Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?

- Não liga pra esses trouxas, Miquelina.

Como não liga?

- O Palestra levou na testa!

Cretinos.

- Ora pro nobis!

Só a tiro.

- Diga uma coisa, Iolanda. Você vai hoje na Sociedade?

- Vou com o meu irmão.

- Então passa por casa que eu também vou.

- Não!

- Que bruta admiração! Por que não?

- E o Biagio?

- Não é de sua conta.

Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas calçadas.

Fonte: Alcântara Machado. Laranja-da-China. Publicado em 1928. Disponível em Domínio Público 

Jaqueline Machado (Devaneios Gauchescos)


SOU ARTE


Arte é magia que invadiu meu ser
desde o amanhecer dos meus primeiros dias...
Mas será ela, a dona arte, pura fantasia?

Sim! E não.
Sim, porque ela não depende de lógica para se expressar.
E não, porque ela é a realidade mais oculta do nosso ser...

Então, canto e me espanto com o cantar dos pássaros.
Por isso pinto, e me sinto borrar nas tintas vivas da existência.
Por isso danço, e não me canso de sorrir a bailar.
Por isso também escrevo.
E me transformo em uma poesia apaixonada!

Sou arte ilógica.
Não quero me explicar.
Sou abstrata em minha fé.
E Arte faço na luta constante de transformar
toda treva em luz!
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EU SOU GAÚCHA, TCHÊ!

Sou gaúcha!
E gosto de pertencer a este pago querido.
Onde a tradição ainda tem o seu valor
e os campos são mais floridos...

Sou gaúcha!
E a força que me puxa,
vem do sangue bravio
dos heróis farroupilhas...

Eu sou gaúcha, tchê!
E gosto de ouvir as histórias
contadas por peões
da estância,
enquanto saboreio
o bom chimarrão.

Sou gaúcha!
E não nego a raça.
Sou uma flor de candura,
mas se vier
com injustiça,
o corpo esquenta,
falo umas boas verdades
e assim acabo com qualquer frescura!

Sou gaúcha!
Sou brava, sou forte,
mas também sou faceira.
Gosto de música fandangueira.
E de poetizar este belo lugar
onde o céu é mais azul...
"Onde tudo o que
se planta cresce
e o que mais floresce é o amor..." 
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Jaqueline Machado é de Cachoeira do Sul/RS

Fonte:
Enviado pela poetisa.

Rubem Penz (Crônica ululante)

Nunca vou esquecer a tarde em que, no distante 1987, tive a insatisfação de ler uma resenha crítica de Coração Satânico (Angel Heart) na Revista Veja antes de ver o filme. Eu estava uns quinze anos distante de escrever minhas primeiras crônicas, e alguns anos antes de aventurar na leitura de Freud, mas já guardava alguma perspicácia em notar aquilo que, mesmo não escrito, pode ser captado por bons leitores. E maldisse toda a geração anterior e futura do articulista por ter estragado o encanto do filme ao sugerir um spoiler desnecessário. Não que tenha me arrependido de ver depois, adorei. O problema foi a fruição de um thriller de suspense quando se sabe o final.

Por isso que escrever sobre uma obra cinematográfica, ou a partir dela, demanda jeito, prudência, respeito com quem virá a ler. Finda a tarefa, é necessário voltar ao texto e, frase por frase, se perguntar: revelo aqui algo que me surpreendeu? Entrego aqui uma conexão capaz de estragar uma cena seguinte? Nesta altura, quem assiste tem consciência desta faceta da personagem? Vale a pena antecipar este detalhe, ou ele é relevante demais? E não adianta tentar esconder numa fumaça retórica! Ao bom leitor, meia frase basta.

Assim, por mais sedutor que seja, evito ler sobre um filme sem antes assisti-lo. Não confio nessa turma dos cadernos e blogues e sites de cinema. Ou, pior: creio que alguns têm um desejo sádico de colocar minúsculas armadilhas dentro de frases inocentes, só para colocar água no chope dos outros. E, se reclamarem, ainda dirão coisas como “mas isso estava na cara!” Ótimo, que seja! Ainda assim, deixe-me descobrir sem seu brilho. Isso: quem dá spoiler, quer brilhar ofuscando a experiência dos outros.

Ah, por que lembrei de Coração Satânico? Porque assisti O Poço evitando ler artigos e comentários sobre o filme, e vi que fiz bem. Teria amaldiçoado a geração anterior e futura de pessoas a quem nada devo ou me devem. Poupei-me de dissabores, e isso é maravilhoso nestes tempos de ódios fáceis. Li depois, concordei com umas coisas, discordei de outras, numa boa. Apenas lamentei por quem não tenha meu hábito! identifiquei imprudências as quais, fosse eu, evitaria. Óbvio.

Fonte:
Escrita Criativa
https://www.escritacriativa.com.br/?cid=5596&wd=Resenhas

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 15

 

Mensagem na Garrafa – 7 -


Elisa Alderani

Ribeirão Preto/SP

As Quatro Estações


PRIMAVERA

Escutando a música de Vivaldi me situo no caminho inverso da vida. Volto ao tempo da primavera, quando tudo em minha volta estava florido, perfumado e belo. Vejo-me sentada na grama perto dum canteiro de gerânios vermelhos, construindo sonhos de criança. Poucos brinquedos, mas muita liberdade para brincar ao ar puro da montanha. Não havia ambições de ter, bastavam poucas coisas para ser feliz. Ouvia pássaros, me encantava olhando as cores das asas das borboletas; agradava-me o perfume da grama recém-cortada. A primavera de minha vida é inesquecível. Tantas lembranças preenchem de infinita harmonia o coração, como esta música, penetrando docemente meu ser de outrora.
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VERÃO

O tempo do dever chega repentinamente, o sol está alto no céu. Tudo arde, chegou o verão! Estudo e trabalho, juventude ativa, sem muitas diversões. O olhar fica atento às mudanças, os sonhos da juventude se multiplicam. A música muda o ritmo. Amores platônicos, lindos! Olhos que se encantam, sem saber o porquê. O coração explode a procura de algo, sem saber que é o amor. Arde o verão da vida. As tempestades, de repente, chegam. A chuva de verão passa rápida. Tudo se renova depois do temporal. A realidade pede uma escolha. O verão parece avançar lento, o ar mais quente, a fruta está madura. O encontro com o amor muda o ritmo da música, doa alegrias e lágrimas. A responsabilidade preenche o cesto das frutas para serem saboreadas, nem sempre doces, às vezes amargas. A vida parece parada nesta estação por mais tempo...
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OUTONO

Os dias encurtam o passo, e o outono chega sem pressa. Ocorrem mudanças.

Também as cores da natureza mudam. O bosque fica silencioso, devagar se despe das lindas cores outonais. O vento é culpado por isso, ele derruba as folhas uma a uma, cobrindo o chão árido; soprando uma música diferente. Tudo parece mudar. As flores murcharam, perderam o viço, como o amor, por falta de cuidados. Outono da vida! Somente quem sabe admirar com interesse um lindo por do sol, terá nos olhos o brilho do último raio, que esquentará o seu coração. Eu procurei fazer isso, mas as madrugadas frias já me anunciavam a chegada do inverno...

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INVERNO

Sim, o inverno chegou implacável e gelado com o toque de música, mudando o ritmo. Lentamente parece gelar o que restou, com seu branco manto. Tudo fica encoberto. Preciso me preparar com muito cuidado para esta estação. Decorar a alma e o coração com um amor diferente para cuidar de mim, sem desmaiar pelo frio que já está às portas. Ficar ao reparo das intempéries que surgem assim, do nada. A natureza não perdoa, ela tem que completar seu ciclo.

Uma vida bem equilibrada, promete um inverno tranquilo…

As sementes da primavera das lembranças germinarão novamente, perfumadas como flores de outrora, em meu coração.

Os frutos dos afetos do verão estarão presentes para preencher o vazio e colocar em meus lábios, apesar das marcas do tempo, o sorriso; os dias tristes do outono serão esquecidos com o calor do último raio de sol.

O inverno achará o abrigo quente do meu coração, escutando novamente a música que fala das estações de minha vida.

Monsenhor Orivaldo Robles (Canção para meu pai)

Esclareço que não sou compositor. Para isso não tenho talento. Se tivesse, eu lhe escreveria a mais caprichada canção. Sempre que aparece oportunidade, comento sobre quanto nos marcou a figura do homem franzino e calmo – calmo demais para um espanhol – a quem chamávamos pai. Para as pessoas de fora sou o filho que mais fala sobre ele. O amor e o respeito, no entanto, que merece um verdadeiro pai, os cinco nunca deixamos de consagrar ao nosso velho. A rigor, nem tão velho: morreu mais jovem do que eu sou hoje.

Não me preocupa nem um pouco que percebam como sou sensível. Ou “manteiga derretida”, conforme o povo diz. De vez em quando, sinto vontade de escutar “Mi viejo”, composição de Piero y José. Em português existe como “Meu velho”, versão de Nazareno de Brito, conhecida na interpretação de Altemar Dutra. Prefiro a original, aquela que no 3° Festival da Canção de Buenos Aires, em 1969, apresentou um Piero ainda seminarista, de batina e colarinho romano. Dependendo da hora, quando a ouço, me acaba vindo aos olhos alguma lágrima intrusa, que não dei conta de segurar.

Por esses dias, em consulta à Internet sobre “Mocedades”, um dos mais carismáticos grupos vocais da Espanha no século passado (desde Marialva, dele guardo um LP duplo, a mim trazido de Madri por Irmã Margarita Sastre), descobri a canção “Mi padre” (Meu pai), que descreve coisas assim: “Meu pai sonhava todo dia/ em vender nossa casa e mudarmos para longe./ Pobre sonhador! Queria tornar-se rico e se fez velho./ Dizia que nos levaria/ A conhecer o farol de Alexandria./ Pobre aventureiro! Quis ser marujo e foi mineiro./ […] Iríamos todos a Paris/ Onde ele seria duque; eu, bailarina./ Quem ia dizer-lhe/ Que, em vez de ir a um palácio, ia à mina?”.

A composição de Rafael Perez Botija (em 1976, calculem!) é interpretada por “Mocedades”. As partes de solo refletem a doçura de Amaya Urango com sua voz privilegiada. Quem se interessar acesse YouTube + Mocedades + Mipadre. Mas não espere algo como funk, rap ou sertanejo dito universitário. A canção foi composta para homenagear os pais no seu dia. Uma jovem relata, compadecida, a saga de seu pai, humilde trabalhador nas minas. Ela compreende e desculpa os devaneios com que ele procura disfarçar a pobreza da família.

Conheço o drama referido pela moça. Entre as dores da vida uma existe pouco analisada e, apesar de tudo, muito amarga. Falo da sensação de fracasso do homem honesto, que trabalhou à exaustão por toda a vida, e vê chegar o fim sem poder legar aos filhos um mínimo de bens materiais.

Contemplamos a cena ao vivo, lá em casa. Sem ilusões nem sonhos, porém. O pai sempre foi realista. E bastante sereno também. Cansado da doença, falava-nos, às vezes: “Para vocês eu valho mais morto que vivo”. Queria dizer que, enfermo, só dava trabalhos e despesas. Sentia a vida, como em conta-gotas, escapando-lhe pouco a pouco. A morte, a seu ver, daria fim às nossas preocupações. De lambuja, os tostões da mísera pensão que ele ia deixar seriam gastos no supermercado, não na farmácia.

Ah, “viejo, mi querido viejo”, dando lição de vida até na hora de morrer, hein! E nós, julgando-nos sábios por termos, como na canção, “os anos novos, e o homem, os anos velhos”.

Pai, dê motivo para seus filhos se orgulharem de você. Há presente maior?

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 4 -


A lua, em noite escampada,
na orquestra que Deus conduz,
seguindo a pauta da estrada,
é uma sonata de luz.
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A luz do dia esmorece...
O amarelo perde a cor...
A Deus se eleva uma prece
dos lábios de cada flor.
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A noite lança uma seta,
pois, caçadora, é o seu fado.
E a tarde cai, rubra e quieta,
qual pássaro ensanguentado.
= = = = = = = = =

A Noite - mulher mistério -
enfeita-se com desvelos,
e as joias do seu império
prende aos compridos cabelos.
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A noite serena e pura,
no seu eterno fadário,
recolhida na clausura,
faz de estrelas seu rosário.
= = = = = = = = =

As árvores, num abraço,
temendo cair ao chão,
juntam as copas no espaço,
pedindo ao céu proteção.
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Cabeça revolta, inquieta,
que se volta para o céu...
Esse coqueiro é um poeta,
fazendo versos ao léu!
= = = = = = = = =

Celulose renascida,
o livro vem da floresta;
como árvore da vida,
vibra, reclama, protesta!
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Com o crescer das queimadas,
não é muito o que nos resta:
braços hirtos, mãos crispadas...
- são os galhos na floresta!
= = = = = = = = =

Deus, que fez a noite e o dia
a um toque de Sua mão,
pôs também poesia,
o sopro da inspiração.
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Inquieto, pairando apenas,
o colibri em seu afã
é uma linda flor de penas
junto ao seio da manhã!
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Lentamente a tarde desce,
envolta num céu lilás.
Da terra sobe uma prece
para no mundo haver paz.
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O carro de bois dolente
canta e geme em seu labor...
Assim o peito da gente
quando faz versos de amor!
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O céu, à noite, nos campos,
é um tablado original,
onde bailam pirilampos
e estrelas, num festival!
= = = = = = = = =

O livro é um amigo mudo,
que nos pode compreender.
Revela em silêncio tudo
que precisamos saber.
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O luar, lascivo e amante,
abre o vestido da mata,
e em seu corpo exuberante
passeia os dedos de prata...
= = = = = = = = =

O outono, em seus esplendores,
troca, da mata, a roupagem:
desfaz o manto de flores
e põe frutos na paisagem.
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Passarinhos, em sonata,
fazem festa no arrebol,
quando despertam a mata
para os afagos do sol!
= = = = = = = = =

Plantem árvores, crianças!
Cresçam com elas, felizes,
cheias de vida e esperanças,
porém firmes nas raízes!
= = = = = = = = =

Pode o livro ser tesouro
que alguém garimpou por nós;
é o amigo imorredouro,
que não fala, mas tem voz!
= = = = = = = = =

Por mais que o destino rude
ponha alguém a dura prova.
quando se tem juventude
sempre a vida se renova!
= = = = = = = = =

Quando a lua abre seu cofre
de moedas pelo chão,
o sonhador que ama e sofre,
quer todas em sua mão.
= = = = = = = = =

Quando a noite se faz dia
e os sonhos fogem velozes,
há uma luz que se irradia
no eco de muitas vozes.
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Quando o sono se faz nada
nos olhos brancos da noite,
os dedos da madrugada
empunham seu velho açoite.
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Sem vitória nem torcida,
na grande quadra do céu,
a lua é bola perdida
que ficou jogada ao léu.
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Último alento... o céu arde
e queima o ar transparente.
Morre, exangue, a débil tarde,
nos braços do sol poente...
= = = = = = = = =
Fonte:
Enviado pela Trovadora.
CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009.

Esopo (O vaqueiro que combate por seu senhor)

Conta o doutor este exemplo e diz que um cavaleiro, familiar dum rei, conhecia um homem velho que não tinha filhos e era já muito velho e sem títulos, mas era muito rico, estava sempre fora e era oficial de Del-Rey, que havia curado seus cavaleiros.

Este cavaleiro lhe tinha grande inveja, porque era rico, e buscava cada dia maneira em como lhe tomar o que tinha; e foi-se a El-Rey e acusou-o dizendo que quanto ele tinha, tudo furtara a El-Rey, e que do furto era assim rico, dizendo do muito mal, e que era ladrão e homem de má fé: e que este lhe queria provar em um campo com a espada na mão.

El-Rey fez chamar o velho, e mandou-lhe que esse escusasse ou entrasse em campo com ele; e se com ele não se atrevesse de combater, que buscasse outrem que esse com ele combatesse em seu nome.

O cavaleiro era muito valente em armas, e o velho receava de se combater com ele, como o cavaleiro era muito mancebo, e ele era muito velho e sem títulos: e andava rogando parentes e amigos a quem ele já fizera muitas boas obras, e não podia achar quem quisesse tomar a aventura por ele, pois temiam o cavaleiro. Este velho meditava e dizia:

— Muitos ajudei no tempo de suas necessidades, a parentes como amigos, e agora não acho parente, nem amigo! Quando a fortuna é contra o homem, todo os parentes fogem dele, como agora fazem comigo!

E este velho tinha um pastor que lhe guardava seu gado. E o pastor vendo seu senhor andar tão triste, ficou com piedade dele, e perguntou-lhe[5] porque andava com tanta tristeza. O velho lhe contou todo o ocorrido. O pastor, que fica-lhe com dó, lhe disse:

— Meu senhor, eu quero tomar esta aventura em vosso nome.

O velho lhe deu muitos agradecimentos.

No outro dia, do combate, mandou este pastor bem armado ao campo a combater-se com este cavaleiro. Quando o cavaleiro viu este vaqueiro, disse que a ele seria grande vergonha se muito andasse combatendo com este vaqueiro, mas que logo o haveria de vencer: e começou dar com sua espada grandes golpes no vaqueiro. O vaqueiro cobria-se e deixava-o cansar, e algumas vezes esquivava dos golpes do cavaleiro: isto fazia ele bem cansado. O cavaleiro imaginava que o vaqueiro não podia defender-se, e cada vez o desprezava mais. O cavaleiro tomou um lenço, e enxugou o rosto, porque suava. O vaqueiro se achegou a ele, e deu-lhe um golpe no cotovelo do braço direito, que o cavaleiro perdeu a força do braço, e arredou-se para trás; e o vaqueiro outrossim se destacou no campo. O vaqueiro disse ao cavaleiro que se levantasse; o cavaleiro disse que não queria. O vaqueiro, vendo que o cavaleiro não ia se levantar, passou a se mostrar no campo.

Ao combate estava pressente El-Rey com outros muitos barões para o ver; e vendo ambos parados, toda a gente começou a escarnecer. El-Rey mandou-lhes dizer que se combatessem. O mensageiro disse ao vaqueiro que se combatesse ou se desse por vencido; o vaqueiro disse:

— Eu não me dou por vencido, mas eu sou o vencedor, mas não vou atacar o homem que está caído; mas se o cavaleiro quiser levantar-se, eu estou prestes a combater com ele.

Os presentes debochavam. O vaqueiro foi ao cavaleiro e disse muitos impropérios, porque esse não queria levantar; o cavaleiro rogou ao pastor que lhe perdoasse, e que se fosse com Deus, pois ele se dava por vencido.

O vaqueiro partiu do campo com grande honra, e com grande prazer; o velho abraçou-o muito, e o fez herdeiro de todos seus bens. E não foi mais vaqueiro.
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O poeta diz neste exemplo que não se deve acusar nem fazer mal a outrem sem razão, porque quando confiam vencer alguma batalha, confiando mais no seu poder que no poder de Deus, perde, porque só Deus é juiz de direito e defensor da razão, e poucas vezes pode o homem impedir a razão; muitas vezes acontece nas batalhas que poucos vençam muitos quando combatem com razão. Ainda diz que nas prosperidades não se conhecem os amigos, mas conhecem-se nas adversidades; e tais como estes não são amigos, mas são lobos ferozes. E porém diz Sêneca: Illa est vera amicicia que nom querit ex rrebus amicy nisy sollam benyvolemçiam.*
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* Tradução do latim: A verdadeira amizade é aquela que não quer dos amigos nada a não ser a bondade.

Fonte:
O Livro de Esopo - Fabulario Português Medieval. Lisboa: Imprensa Nacional, 1906. Publicado conforme a um manuscrito do seculo XV. Disponível em Domínio Público em https://pt.wikisource.org/wiki/O_Livro_de_Esopo
Conversão do português do século XV para o português atual por J. Feldman 

Isabela Zampiron (Dicas de Escrita) Como evitar a ambiguidade

O livro "Português para Convencer. Comunicação e Persuasão em Direito", de Claudio Moreno e Túlio Martins, é uma obra fundamental para quem deseja aprimorar suas habilidades linguísticas. Com diversas dicas de ortografia e gramática, as orientações podem ser utilizadas por todos que almejam melhorar a qualidade de seu texto, especialmente quando se depararem com a ambiguidade.

Uma frase ambígua é aquela que abre margem para duas ou mais interpretações. Isso é uma característica prejudicial ao texto, visto que os leitores podem se deparar com diversas compreensões, como no caso a seguir:

"Quando o vizinho tentou separar o animal de seu dono, ele mordeu o vizinho."*

O problema nessa frase se deve ao pronome "ele". Embora muitos leitores compreendam que o pronome se refere ao animal, essa frase dá lugar a interpretação de que o dono teria sido quem deu a mordida.

Há dois principais responsáveis pela ambiguidade: os pronomes pessoais e os adjuntos verbais. Ao se atentar a eles, será possível produzir textos coesos e eficazes, contribuindo para uma comunicação assertiva. Vamos nos aprofundar neles.

PRONOMES PESSOAIS

Na tentativa de não utilizar o mesmo substantivo repetidas vezes, optamos por usar um pronome. É necessário, porém, uma atenção maior para que não ocorra a ambiguidade. Os pronomes servem para representar um substantivo mencionado anteriormente e, como no exemplo já citado, isso aumenta as chances de uma frase ambígua aparecer no texto.

"O professor disse ao pai que sua atitude tinha prejudicado muito o desempenho do filho."

O "sua" pode se referir tanto ao professor como ao pai. Existem situações em que a repetição do substantivo, mesmo que menos elegante que a utilização do pronome pessoal, é mais eficiente para evitar confusões.

ADJUNTOS ADVERBIAIS

O segundo maior responsável pela ambiguidade é o adjunto adverbial, principalmente ao final da frase.

"Ela achou o documento que tinha perdido na sexta."

Não fica claro ao leitor se o documento foi perdido ou achado na sexta. Para evitar isso, é recomendável mudar a posição do adjunto adverbial e separá-lo com vírgulas. Caso o cheque tenha sido encontrado no domingo, uma opção de construção frasal é a seguinte:

"Ela achou, na sexta, o documento que tinha perdido."

Assim, é possível transmitir a mensagem com clareza e de maneira precisa, sem lugar para ambiguidade.
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Exemplos adaptados por Marcelo Spalding

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 17: Data marcada


Dona Ana seguia convalescente, mas já conseguia levantar sozinha da cama e ir tomar o seu mate na varanda, como de costume. Queria voltar aos deveres de casa, mas a filha não permitia. E convocou Amélia para ajudar nas tarefas domésticas e nos cuidados com a mãe que, apesar de disfarçar, estava muito fraca. E por certo precisaria de um longo período de descanso para atingir a recuperação plena.

- Obrigada, Amélia, por deixar os afazeres de teu lar, para nos servir. - disse dona Ana.

- Eu que agradeço em poder ser útil. A senhora merece. E nem precisa acrescentar nada ao salário do Juca: estou aqui por gosto. E sobra tempo para cuidar da minha casinha e do meu marido. Vou juntar as roupas sujas para lavar. Qualquer coisa, chama.

- Obrigada, querida!

- E eu vou preparar o almoço. - disse Isadora, um tanto sonolenta depois de passar a noite em claro lendo sobre as aventuras de Madame Bovary.

– Pensando bem, o almoço pode atrasar um pouquinho. Mãe, o que a senhora pensa sobre o livro de Gustave Flaubert?

- A história não está mais fresca em minha memória. Li quando era muito nova. Lembro que o livro tem uma narrativa lenta, porém o texto é muito bem escrito, mas foi o fato de se tratar de uma obra proibida que nos incentivava a continuar a leitura. Eu e Leandra não entendíamos o comportamento de Emma. Parecia uma mulher de sorte. Arranjou um marido que a tratava bem e que não lhe deixava faltar nada. Era saudável, tinha uma vida sossegada. Mas com o tempo entendi que era justamente a vida perfeita que a levou a tanta insensatez

- Não terminei a leitura. Fui em busca de uma coisa e encontrei outra.

- Como assim, filha?

- Pensei que se tratava de uma traição motivada por amor.

- Foi por tédio. É uma história sobre a monotonia, sobre a linearidade da vida perfeita. E sobre a reação humana em relação a ela.

- Não julgas a personagem?

- Estou com receio de julgar teus pensamentos... O porquê do repentino interesse nessa obra...

- Bem sabes o quanto sou curiosa...

- Não me enrola. Nada de aprontar por aí. És uma jovem comprometida. Sei do teu ralo interesse em relação ao Fábio, mas ele vai cuidar bem de ti.  Mas voltando aos livros, amo vários, mas prefiro a história da valente Ana Terra. “Toda vez que me acontece algo importante, está ventando”, dizia ela. Toda saga da grande obra de Veríssimo, fala de mulheres nascidas para trabalhar, calar, chorar e, principalmente, esperar...

- Prometeste contar mais sobre a biblioteca de tua infância e juventude. Por que só restaram aqueles livros guardados na dispensa?

- Está bem. Vou te contar. Mas por favor, não te exaltes ao tomar conhecimento da verdade. Logo após a morte dos teus avós, viemos para cá, e teu pai descobriu a biblioteca. Mandou amontoar os livros numa caçamba e despejá-los nos fundos da casa. E ali, tocou fogo em tudo.

- A senhora tentou impedir? - perguntou Isadora, em estado de choque.

- Ao me aproximar da janela do quarto as chamas já estavam acesas. Mas isso já foi há muito tempo.

- Não há tempo capaz de apagar um trauma assim...

- Sabendo que teu pai não gostava de livros, já havia escolhido alguns e os trouxe em meio ao enxoval. E depois, os guardei na dispensa. E lá estão até hoje.

Isadora beija carinhosamente a face triste da mãe. E vai preparar o almoço controlando a vontade de chorar. De chorar por sua mãe, pela biblioteca queimada, por Madame Bovary, que quanto mais buscava pela felicidade, mais se perdia e, por ela mesma que em instantes receberia o noivo indesejado para o almoço.

Fábio chegou junto do sogro, e foi logo ao encontro da noiva. Eles se cumprimentam como se fossem dois estranhos.

Amélia ajudou a servir a mesa e não passou despercebida por senhor Antônio e sua maledicência.

O velho estava apressado em dar uma notícia, mas não se conteve em fazer certas observações. Bonita desse jeito, vestida feito uma “muié”, sem vergonha, que gosta de se “amostrar”, sei não... A cabeça do Juca deve ter mais chifres do que piolho em cabeça de mendigo. Pensou ele sobre a moça.

- Bamo, Fábio, dá logo a boa nova. - disse o velho quebrando o silêncio de forma brusca.

- Claro, meu sogro. Querida Isa, passamos na igreja, falamos com o padre Orestes, e já deixamos marcada a data do casamento.

- Sem antes falar comigo?  

- Calma, minha filha. - disse dona Ana.

- Ué! Tão noivo pra que, pra casar, não é?  - falou o pai, de boca cheia.

Isadora não se conteve. Pediu licença, pegou o Costelinha no colo e foi sentar debaixo do seu Ipê Amarelo.  

- “Muié braba, meu genro... Vai ter que ser domada.

Dona Ana e Amélia se entreolharam com o coração cheio de pesar.

Fonte:
Texto enviado pela autora

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 34

 

Mensagem na Garrafa – 6 -


Miguel Falabella
(Rio de Janeiro/RJ)

SAUDADE


Trancar o dedo numa porta dói.
Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói.
Um tapa, um soco, um pontapé, doem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa,
dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade de um filho que estuda fora.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa.
Doem essas saudades todas.

Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos.
Saudade da presença,
e até da ausência consentida.

Você podia ficar na sala e ela no quarto,
sem se verem, mas sabiam-se lá.
Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade,
mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-la, ela o dia sem vê-lo,
mas sabiam-se amanhã.
Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna-se menor,
ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.

Saudade é basicamente não saber.
Não saber mais se ela continua fungando num ambiente mais frio.
Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia.
Não saber se ela ainda usa aquela saia.
Não saber se ele foi na consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre ocupada;
se ele tem assistido às aulas de inglês,
se aprendeu a entrar na Internet e encontrar a página do Diário Oficial;
se ela aprendeu a estacionar entre dois carros;
se ele continua preferindo Malzbier;
se ela continua preferindo Margarita;
se ela continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados;
se ela continua dançando daquele jeitinho enlouquecedor;
se ela continua cantando tão bem;
se ela continua detestando o Mc Donald's.
Se ele continua amando;
se ela continua a chorar até nas comédias.

Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos;
Não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento;
Não saber como frear as lágrimas diante de uma música;
Não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer.
É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso...
É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer;

Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler...

Renato Frata (Como as folhas )

Como as folhas caídas, o ontem se desfaz em lembranças que se esgarçam a bailarem em nosso quintal da memória. A folha, o vento vestido de palhaço arrasta para lá e para cá, faz diabruras com ela, tira-lhe pirueta, joga-a para cima e para os lados na fuzarca própria do palhaço, até se esquecer dela que não tendo para onde ir, se gruda a uma ranhura do solo ou em algo que a ampare.

E fica, silente, amargando pelo fim. As lembranças por sua vez, conseguem nos fazer de palhaços tristes ou alegres ao nos arrancar choros ou risadas. Dão piruetas em nosso humor e, no mais das vezes, jogam-nos para baixo nos cafundós da profundidade do arrependimento. Uma e outra estão em nossa vida por algum significado.

As folhas, mesmo quando desprendidas, têm dois destinos: ou servem de adubo se empregadas a sustentar a umidade do solo para outras plantas, ou são abruptamente juntadas num saco e postas à espera dos catadores.

Há, a bem dizer nesse discorrer, além dos de folhas, os catadores de passado.

Os de folhas nós conhecemos: usam uniformes no árduo trabalho de garimpar resíduos e coletam as folhas ensacadas que juntamos ao pé da árvore.

Já, os catadores de passado vivem dentro de nós, assentados no âmago do nosso querer. Não importa que a folha tenha sido útil enquanto verde pelo processo no qual produz transformando água, gás carbônico e energia solar em glicose e faça por si, a fotossíntese. Em um tempo, a árvore ditará o seu termo de vida.

De forma semelhante, os fatos por nós vivenciados ditarão se nosso ontem será triste ou alegre pela faculdade que nos faz guardar vivências e experiências com coisas, situações e pessoas.

Tal como a folha, os guardaremos conosco pela nossa finita vida como algo bom, ou eles ficarão conosco a amargar nossa saliva todas as vezes que deles nos lembrarmos. Se positivas as lembranças, será como as folhas reaproveitadas num viveiro a render alimento às plantas, se negativo estará num saco, socadas, à mercê do catador que nunca virá coletá-las.

Nosso tempo – passado, presente, futuro – tal como a árvore, precisa das folhas para sua sobrevivência e manutenção associadas às raízes que sustentam o todo, já que são elas que absorvem e mantêm a água e sais minerais do solo conduzindo-os pelo xilema (lenho) a se espalhar pela estrutura do caule ao último galho.

Nascemos e crescemos e, crescendo, adquirimos conhecimento (folhas) para pautar passos, gestos, falas, comportamentos, sociabilidade, humanidade que nos garante se bem aplicados, tenhamos o ontem saboreado como taças do melhor champagne. Se não, que soframos na consciência as punhaladas que seguramente nos picotarão por dentro.

O ontem preserva alusões e contendas filosóficas, mas na intimidade, as reminiscências podem ser comparadas à taça a representar esfuziante alegria, ou a punhais afinadíssimos a estocarem centímetro a centímetro o coração no desempenho da dor espelhada numa perda, num ato vil, num desejo associado a infausto. Nesse caso, a comparação folha-ontem, perde o senso.

A isso se dá o nome de ciclos, e o fim de cada um necessariamente não precisa significar algo ruim: aos bons, estenda-se a vida, aos ruins, a poda aplicando o segredo da árvore: se a folha produz, será mantida, senão, o fornecimento de seiva será cortado.

Para dizer que o fim de um ciclo sempre vai gerar uma oportunidade, é a chance da reciclagem com o aparecimento de novos conhecimentos, novos amigos, negócios, lugares, coisas, desejos, necessidades.

É o fazer da vida uma folha que mesmo tendo caído, dá-se à outra produzindo o seu sustento.

Melhor será se pudermos, nesses fins de ciclos, observar o recado e viver “como um pássaro que canta sob a chuva sem ralhar com ela, para que tenhamos memórias agradáveis que sobreviverão em tempos de tristeza”, de feliz produção de Robert L. Stevenson.