sábado, 17 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 410

 


Arquivo Spina 20 (Isabel Pernambuco)

 


Carlos Eduardo Novaes (No País do Futebol)


Juvenal Ouriço aproximou-se de um vendedor parado à porta de uma loja de eletrodomésticos e perguntou:

– Qual desses oito televisores os senhores vão ligar na hora do jogo?

– Qualquer um – disse o vendedor desinteressado.

– Qualquer um não. Eu cheguei com duas horas de antecedência e mereço uma certa consideração.

– Para que o senhor quer saber?

– Para já ir tomando posição diante dele.

O vendedor apontou para um aparelho. Juvenal observou os ângulos, pegou a almofada que o acompanhava ao Maracanã e sentou-se no meio da calçada.

– Ei, psiu – chamou-o um mendigo recostado na parede da loja – como é que é, meu irmão?

– Quer me botar na miséria? Esse ponto aqui é meu.

– Eu não vou pedir esmola.

– Então senta aqui ao meu lado.

– Aí não vai dar para eu ver o jogo.

– Na hora do jogo nós vamos lá pra casa.

– Você tem TV em cores?

– Claro. Você acha que eu fico me matando aqui pra quê?

Juvenal agradeceu. Disse que preferia ficar na loja, onde tinha marcado encontro com uns amigos que não via desde a final da Copa de 90.

Aos poucos o público foi aumentando, operários, vendedores, contínuos, vagabundos, e às 15h e 45min já não havia mais lugar diante das lojas de eletrodomésticos, os retardatários corriam de uma para a outra à procura de uma brecha. Alguns ficavam pulando atrás da multidão tentando enxergar a tela do aparelho.

As lojas concentravam multidões. As calçadas da cidade, que já são poucas, desapareciam completamente. Em jogos da Seleção Brasileira, durante a semana, cresce bastante o número de atropelamentos, porque o pedestre é obrigado a circular pelas ruas. Além disso, os motoristas ficam muito mais ligados no rádio do que no trânsito.

Na porta da loja onde estava Juvenal havia umas 200 pessoas do lado de fora e somente uma do lado de dentro: o gerente. Até os vendedores da loja já tinham se bandeado afirmando que assistir a um jogo atrás da televisão não é a mesma coisa que vê-lo atrás do gol. Quando a bola saía entravam os comentários dos torcedores.

No início do segundo tempo um cidadão que não se interessava por futebol (um dos 18 que a cidade abriga) foi pedindo licença à galera e que muita dificuldade conseguiu entrar na loja. O gerente foi ao seu encontro: “O senhor deseja algo?”

– Um aparelho de televisão.

– Por que o senhor não leva aquele?

– Qual?

– Aquele que está ligado ali na porta.

– É bom?

– O senhor ainda pergunta? Acha que haveria 200 pessoas diante dele se não tivesse uma boa imagem?

– Bem…

– E não é só isso – completou o gerente aproveitando a euforia do público com um gol do Brasil – que outro aparelho transmite emoções tão fortes?

O cidadão convenceu-se. Disse que ia levá-lo. O gerente, precavido, pediu-lhe para ir à porta da loja apanhá-lo. O cidadão não teve dúvidas. Ignorando aquela massa toda diante do seu aparelho, foi lá tranquilamente e cleck. Desligou-o.

O que aconteceu depois eu deixo por conta da imaginação de vocês.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes e outros. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1991.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) III, décimas


"É MAIS FELIZ A VELHICE
QUE É POR ALGUÉM AMPARADA."


Distante da meninice,
Nos remansos da saudade,
Havendo fraternidade
É mais feliz a velhice;
Há mais encanto e meiguice
Sobre a fronte esbranquiçada...
Mais branda se torna a estrada
Que é pisada com amor,
Como dói menos a dor
Que é por alguém amparada.
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"ESSE PECADO QUE EU FIZ
SÓ DEUS PODE PERDOAR."


Até ficarei feliz
Se o padre, por caridade,
Perdoar pela metade
Esse pecado que eu fiz.
Pecar não foi o que eu quis,
Vou dizer aos pés do altar
Quando for me confessar
Ao capuchinho barbudo,
Porém pecado rabudo
Só Deus pode perdoar,
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"NÃO PODE HAVER POESIA
NO CHEIRO DA GASOLINA."


Se o poeta passa o dia
Nos manejos de uma bomba,
O sonho suspira e tomba,
Não pode haver poesia;
Tudo quanto a musa cria
Vai caindo na rotina...
A neurose da buzina
Do motorista insistente
Sufoca e mata o repente
No cheiro da gasolina!

(Ao poeta Manoel Juvêncio da Silva, que trabalhava num posto de gasolina,
em Serra Negra do Norte).

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"O BOLO TEM QUATRO VELAS
QUE O TEMPO NÃO APAGOU."


Quatro luminosas telas,
Quatro cristais de magia,
Por quatro anos de poesia
O bolo tem quatro velas;
Quatro esperanças singelas,
Quatro dons que o céu guardou,
Quatro almas que Deus salvou
Com quatro messes divinas,
Quatro estrelas peregrinas
Que o tempo não apagou.
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"ORILO VIROU FORMIGA
ENTRE AS MALAS DO CORREIO."


Empresa dura o castiga
Com grossa enchente de malas
E, para bem despachá-las,
Orilo virou formiga;
A papelada o fatiga,
No corre-corre sem freio.
De minha parte, eu receio
Perder sua lira doce,
Pois o poeta enfurnou-se
Entre as malas do Correio.

(O poeta Orilo Dantas vinha faltando às sessões do Clube dos Trovadores do Seridó e alegava sobrecarga de serviços nos Correios, onde trabalhava).
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"SE EU NÃO MATAR A SAUDADE
ELA FINDA ME MATANDO!"


A própria felicidade
Parece chegar ao fim;
Não sei que será de mim,
Se eu não matar a saudade!
Todo instante ela me invade,
Machucando, machucando!
Não sei, meu Deus, até quando
Terei essa dor no peito!
Eu já vi que não há jeito,
Ela finda me matando!

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carla Rejane da Silva (Medo Voraz)

 


Toc, toc, toc... Ouvi, de repente! Quem será? A esta hora da noite quem estaria batendo em minha porta? Perguntei, assim de chofre, consultando meus botões, como se eles tivessem vida e voz e pudessem me dar uma resposta à altura.  “Alguém em perigo, ou sou eu, que estou em grandes apuros?”
 
Ainda meio sonolenta, e preocupada, olhei de lado para onde havia colocado um criado-mudo. Infelizmente mudo e surdo pra variar. Descobri a sua deficiência, assim que o adquiri. Apesar disto, fiz a aquisição e o trouxe para casa.  Seria um companheiro que me ouviria calado, sem contestar.
 
Fizera-lhe algumas perguntas e nunca respondera nenhuma delas. Nada, absolutamente nada. Tentei até mesmo o braile, por fim, cansada e desanimada,  desisti de vez. Se assemelhava a bater em ferro frio.
 
Bem deixa para lá. Foi ai que direcionei meu olhar para o relógio de cabeceira. Caramba! Passava da meia noite.  Um calafrio percorreu o meu corpo, medo talvez. Sem acender a luz, caminhei até onde havia deixado meu roupão. Ele estava repousando no encosto de uma cadeira que jazia ali, no meu quarto, como eu me derramava em torno de mim mesma.
 
Essa cadeira está aqui faz bom tempo.  Sempre foi uma companheira fiel, notadamente nas minhas noites de insônia. Passei a mão no roupão, vesti e sai, na pontinha dos pés, quieta, sem fazer barulho, todavia, num ritmo meio que cambaleante.  Fui até a janela da sala tentando vislumbrar a varanda.

Sem abrir espiei pelas frestas. A noite estava em total escuridão. Um breu medonho.  Sequer uma estrelinha para iluminar. Lua, nem sinal.  Por conta disto, não enxergava um palmo adiante do nariz, nada, nada podia se ver do lado de fora.
 
Mas as batidas continuavam insistentes. Tomei coragem. Caminhei até a porta para espiar. Nada também.    Na entrada dos fundos, que ficava na cozinha,  idem. Bem, se quem batia não se identificasse, jamais abriria, ainda mais sem contactar visualmente o estranho chegado.

Morrendo de medo, e ao mesmo tempo levada pela curiosidade mórbida, voltei ao meu aposento, pé ante pé. Quem sabe a proteção do meu dormitório, a cadeira, o criado-mudo  ou, em último caso, o ‘embaixo da cama’ me fizessem criar coragem.
 
O bater incessante na porta da sala não cessava. Além dessas batidas, algo, que agora se encontrava bem pertinho, parecia ter entrado de alguma maneira irreal: eu podia sentir seu hálito, sua presença, através dos passos no corredor.   

Como se estivesse tentando me encarar no escuro.  Como louca, uma senil de carteirinha, corri, e me atirei debaixo das cobertas, tapando o medo e também a cabeça e os pés. Nesta altura do campeonato – disse para mim mesma: “Eu é que não vou me atrever a  perguntar quem é”.
 
“Não adianta você se atrever a me tocar -, porque a minha porta, pra você, não abrirei” -, acrescentei. O barulho lá fora e aqui dentro, numa intercalação estranha ficou mais ensurdecedor. Voraz como se o intruso quisesse se apoderar de mim de qualquer jeito. Meu Deus, quem batia, quem me importunava? O que me esperava, se de repente, resolvesse partir para cima dos meus receios?!
 
Como num filme de terror percebi que a coisa horripilante, não estava no escuro, mas sim dentro do meu quarto.  Havia escutado e sentido a sua presença.  Derrubara alguma coisa perto do guarda roupa. Fiquei estupefata, paralisada, amedrontada, imaginando que seria meu fim. Um terrível e amargo despedir da minha vida, vivida e revivida.
 
Senti se aproximar da minha singela e protetora cama. Nada podia fazer. Eu ali deitada, subjugada, como podia me defender?  Fechei os olhos esperando que a coisa a ser realizada fosse rápida e sem dor. Eu sentia que meu corpo estava ficando frio, gélido como se eu estivesse me petrificando por inteira.
 
Meus pés e minhas mãos, coitados, pareciam picolés. Endurecida, sem me mexer, sequer respirar, fiquei aguardando meu fim. Aguardei e aguardei. Depois de muito tempo de espera, decidi dar uma nova espiadela, um relance rápido em torno do escuro, bem devagarinho. Fui afastando o cobertor de minha cabeça. Vi, assustada, quem me aterrorizava por horas a fio.
 
“É você... – gritei, furiosa -  É  você que veio do nada para me incomodar e me desesperar? Brincadeira mais sem graça. Ok, pra mim chega. Já deu, basta!”

Com certa raiva, fui até o guarda roupas, peguei alguns cobertores e voltei para o aconchego da minha caminha quentinha. E o silêncio se fez mais denso e se as batidas continuaram nem sei dizer. Apenas me acomodei buscando me aquecer.
 
“E quanto a você – disse ao meu algoz -, fique a vontade, porque comigo você não vai dormir”. Ato continuo, fechei de vez meus olhos e me preparei para algumas horas de sono que ainda me restavam até que o dia voltasse a nascer. “Fique a vontade, Senhor Frio’“. E adormeci feliz.  

Fonte:
texto enviado por Aparecido R. de Souza

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 409

 


Arquivo Spina 19 (José Feldman)

 


Paulo Mendes Campos (O Cego de Ipanema)


Há bastante tempo que não o vejo e me pergunto se terá morrido ou adoecido. É um homem moço e branco. Caminha depressa e ritmado, a cabeça balançando no alto, como um instrumento, a captar os ruídos, os perigos, as ameaças da terra. Os cegos, habitantes de um mundo esquemático, sabem aonde ir, desconhecendo as nossas incertezas e perplexidades. Sua bengala bate na calçada com um barulho seco e compassado, investigando o mundo geométrico. A cidade é um vasto diagrama, de que ele conhece as distâncias, as curvas, os ângulos. Sua vida é uma série de operações matemáticas, enquanto a nossa costuma ser uma improvisação constante, uma tonteira, um desvario. Sua sobrevivência é um cálculo.

Ele parava ali na esquina, inclinava a cabeça para o lado, de onde vêm ônibus monstruosos, automóveis traiçoeiros, animais violentos da selva de asfalto. Se da rua chegasse apenas o vago e inquieto ruído a que chamamos silêncio, ele a atravessava como um bicho assustado, sumia dentro da toca, que é um botequim sombrio. Às vezes, ao cruzar a rua, um automóvel encostado à calçada impedia-lhe a passagem. Ao chocar-se com o obstáculo, seu corpo estremecia; ele disfarçava, como se tivesse apenas tropeçado, e permanecia por alguns momentos em plena rua, como se a frustração o obrigasse a desafiar a morte.

Mora em uma garagem, deixou crescer uma barba espessa e preta, só anda de tamancos. De profissão, por estranho que seja, faz chaves  e conserta fechaduras, chaves perfeitas, chaves que só os cegos podem fazer. Vive (ou vivia) da garagem para o botequim, onde bebe, conversa e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam lá o tratam afavelmente, os porteiros conversam longamente com ele. Amigos meus que o viram a caminhar com agilidade e segurança não quiseram acreditar que ele fosse completamente cego. Outra  vez,  quando  ele  passava,  uma pessoa a meu lado fez um comentário que parecia esquisito e, entretanto, apenas nascia da simplicidade com que devemos reconhecer a evidência: - Já reparou como ele é elegante?

Seu rosto alçado, seu passo firme a disfarçar um temor quase imperceptível, seus olhos vazios de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas, compunham uma figura misteriosamente elegante, de uma elegância abstrata e hostil, uma elegância que as nossas limitações e hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.

Às vezes, revolta-se perigosamente contra o seu fado. Há alguns anos, saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. Parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos, um pressentimento animal. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo quase silenciosamente. O cego se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do ponto em que se encontrava, ele saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquanto o cego vibrava a bengala contra o motor, gritando:"Está pensando que você é o dono da rua?"

Outra vez, eu o vi em um momento particular de mansidão e ternura. Um rapaz que limpava um Cadillac sobre o passeio deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos percorreram os para-lamas, o painel, os faróis, os frisos. Seu rosto se iluminava, deslumbrado, como se  seus olhos vissem pela primeira vez uma grande cachoeira, o mar de encontro aos rochedos, uma tempestade, uma bela mulher.

E não me esqueço também de um domingo, quando ele saía do boteco. Sol morno e pesado. Meu irmão cego estava completamente bêbado. Encostava-se à parede em um equilíbrio improvável. Ao contrário de outros homens que se embriagam aos domingos, e cujo rosto  fica irônico ou feroz, ele mantinha uma expressão ostensiva de seriedade. A solidão de um cego rodeava a cena e a comentava. Era uma agonia magnífica. O cego de Ipanema representava naquele momento todas as alegorias da noite escura da alma, que é a nossa vida sobre  a  Terra. A poesia se servia dele para manifestar-se aos que passavam. Todos os cálculos do cego se desfaziam na turbulência do álcool. Com esforço, despregava-se da parede, mas então já não encontrava o mundo. Tornava-se um homem trêmulo e desamparado como qualquer um de nós. A agressividade que lhe empresta segurança desaparecera. A cegueira não mais o iluminava com o seu sol opaco e furioso. Naquele instante ele era só um pobre cego. Seu corpo gingava para um lado, para o outro, a  bengala  espetava  o  chão, evitando a queda. Voltava assustado à certeza da parede, para  recomeçar momentos depois a tentativa desesperadora de desprender-se da embriaguez e da Terra, que é um globo cego girando no caos.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. do Autor, 1961.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 11


A bonequinha de pano
que vi, naquela vitrina,
era o aflito desengano
do olhar da pobre menina!
- - - - - -
Da flor da infância, o perfume
me embriaga, eternamente!...
Saudade é faca sem gume,
aos poucos cortando a gente!
- - - - - -
Desperta a aurora em meu ninho,
e a alvorada, enfim, reluz...
Pondo mais luz no caminho
da estrada que me conduz!
- - - - - -
É tão profundo o desgosto,
das queixas do fim do dia...
Que escuto os ais do Sol posto,
na dor da melancolia!
- - - - - -
Lágrimas de luz, ao vê-las,
nos olhos do céu bonito,
são queixumes das estrelas
na solidão do infinito!
- - - - - –
Mãe! um temor me assedia
nesta idade que me alcança:
É o de esquecer, que algum dia,
em teus braços fui criança!
- - - - - -
Minha casa é uma surpresa;
é simples, do teto ao chão...
Se faltar pão sobre a mesa,
sobra amor no coração!
- - - - - -
Na praça, os dois se exibindo;
idílios da vida em flor...
E o banco em silêncio ouvindo
jovens promessas de amor!
- - - - - -
Nos versos, mais sutileza,
na trova, laços de enlevo.
Assim, convenço a tristeza
que é mais feliz quando escrevo!
- - - - - -
O mar, com tudo se arruma.
Por ser poeta, se esmera,
quando faz versos de espuma
nas noites de primavera!
- - - - - –
Para a criança indefesa,
vítima desse fracasso...
Melhor que um pão sobre a mesa.
é a ternura de um abraço!
- - - - - -
Por teu talento, ó, Jesus,
vejo entre estrelas tão belas...
Uma lua sem ter luz,
brilhar mais que todas elas!
- - - - - -
Quando a saudade me aperta,
nada, no amor, mais me acalma...
Só tu tens a chave certa,
que abre os portões de minha alma!
- - - - - –
Quando o céu pinta a moldura
de uma seca no sertão,
o manto da desventura
cobre as cinzas do meu chão!
- - - - - -
Quando o velho mar se alteia,
por entre as brisas e a bruma,
esconde o tédio na areia,
por sob a barba de espuma!
- - - - - -
Se a solidão desconforta,
que tal, sentir a ilusão
de ver no trinco da porta,
as digitais de outra mão?...
- - - - - -
Se a vida é um grande torneio,
na arena, eu não me confino;
vou montar noutro rodeio
até moldar meu destino!
- - - - - -
Se há flores mais preciosas
entre os jardins dos rosais...
Não há disputa entre as rosas;
sentem-se todas iguais!
- - - - - -
Se o amanhecer nos conduz
aos encantos da alvorada,
o Sol é um beijo de luz
nos lábios da madrugada!
- - - - - -
Se o mar esconde o temor,
de um feitiço que o atraia,
Rende-se aos laços do amor
quando adormece na praia!
- - - - - -
Setenta e um!... E, eu preciso
deixar mais gestos de amor;
Em cada curva um sorriso
e em cada esquina uma flor!
- - - - - -
Só depois que a idade avança,
o homem, já curvo e cansado...
Enxerga a luz da esperança
no olhar de um crucificado!
- - - - - -
Toda tarde, a brisa mansa,
sopra os varais do poente,
e esconde o sol da esperança
da luz dos olhos da gente!
- - - - - -
Um sabiá, na janela,
toda tarde canta um hino,
regendo a canção mais bela
das tardes do meu destino!
- - - - - -
Voz cansada, olhar sem brilho,
passa o tempo, a idade avança,
e a velhinha espera o filho
sem perder nunca a esperança!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimunto de Souza (Parte Vinte e Dois) Empacotados.

Texto integrante do livro Comédias da Vida na Privada.
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UM

DOIS LITROS DE LEITE caminham pela calçada em acirrada conversa. Os ânimos dão a impressão de estarem exaltados. Mas não. É o modo como falam e gesticulam, que parece destoado dos demais que cruzam com eles.  

— Pois é, véi. Agora como bem pode ver, estou de visual novo.

— E daí? Que adianta isso? Eu sou pasteurizado, você não.

— Grande coisa! Eu não tenho nata, você tem.

— Em compensação, não preciso ser fervido. Você, se não for ao fogo... kikikiki... Quarenta e oito horas depois...

— Qual o quê! Sempre me mantenho fresco e saudável. Notadamente entre um grau centígrado e dez.

— Hummmm...! Bem que eu desconfiava... Você tem cara de fresco mesmo. Aliás, isso já me deixava com a pulga atrás da orelha. Ante a sua confirmação, acabou de tirar todas as minhas duvidas, assumindo...

DOIS

— Deixa de ser besta, véi. Assumindo o quê?

— Ora, a sua frescura. Até um minuto atrás, só havia suposições. Agora, a certeza.

— Você não passa de um grandessissimo idiota.

— Antes idiota que fresco.

— Fresco, seu depravado, mente suja, no sentido de puro, gostoso, saboroso, delicioso. Sem falar que não engordo.

— Filtra de novo!

— Como? O que foi que disse?!

— Conta outra. Você engorda. E muito. Já o papai aqui, seja puro, ou misturado, ao chocolate, ou com um cafezinho feito na hora, me torno indispensável, insubstituível. Na verdade, ninguém fica sem mim. Em toda casa de família, seja ela rica ou pobre, eu me faço presente...

— E qual a vantagem disso? Pra ficar escondido, de castigo na geladeira? Eu não! Meu lugar é sempre no melhor da casa. Onde todos me enxergam, me procuram, brigam para me verem na mesa, principalmente no desjejum da manhã e, claro, no lanche da tarde. Os patrões me amam... À noite, ninguém vai pra cama sem antes bater um papinho comigo.

TRÊS

— Eu tenho grande valor energético. E você?

— Sou rico em carboidratos.

— O que faz a diferença, hoje, meu prezado, são as proteínas. As proteínas entende o que falo?

— Você está por fora. Proteínas já eram. A galera está ligada nas gorduras totais.

— Kikikikikikikiki... Estas gorduras estão todas saturadas.

— Nada a ver. Por isso as minhas são trangênicas.

— Fique sabendo que eu tenho no sangue fibras alimentares...

— Eu, sódio.

— E, eu, bobão, cálcio.

— Meus VDRs, valores diários de referência servem de base para dietas de 2000 kcal ou 8400 kl.

— Você tem Glúten. Eu não.

QUATRO

— Já ouviu falar em estabilizantes? Eu sou rico em estabilizantes...

— Em contrapartida, lhe falta o Citrato (não confunda com Nitrato) de sódio. Sem falar no monofosfato e difosfato dissódico, que, por sinal, passou a quilômetros de você...

— Minha estampa imponente chama a atenção. Olhe para mim. Não sou lindo? Confesse!

— Você se acha. Mas não passa de um trouxa com cara de almofadinha. Agora dá uma espiada aqui no papai. Como bem pode ver meu amado, eu ando na moda. Nos trinques. Sou destaque internacional. Meus pais ganharam o ISO recentemente. Ah, outro detalhe, tenho SIF e sou registrado como manda o figurino do Ministério da Agricultura. Tenho também o DIPOA e os cambaus. Sem contar que apareço na televisão, em uma infinidade de comerciais em horários nobres.

CINCO

— Como você é metido. Que coisa feia! Eu sou Integral. Acho que já disse isso, mas vá lá. Não me custa repetir. EU SOU INTEGRAL. Sabe o que é ser INTEGRAL? Não é para qualquer um...

— Você pode até ser integral, mas não é UHT.

— Quero ser um mico de circo se estiver errado. Você se gaba ai de ser UHT. Aposto uma grana que nem sabe o que isso significa.

— Errou meu amigo. Sei e muito. UHT significa Ultra-Alta Temperatura.

SEIS

— Não disse? Sabe nada! UHT, seu paspalho, nada mais é que Ultra High Temperature. E sabe o que quer dizer isto?

— Sei.

— Então desembucha...

— Sou pré-cozido.

— Buuuurrrroooo... UHT é um processo em que os responsáveis por você e por mim, nos fazem passar antes de irmos para as gôndolas dos supermercados. Consiste em um tratamento térmico feito em alta temperatura, todavia...

— Todavia...?

— Todavia mantemos as nossas qualidades essenciais. Aprendeu?

— Pra aturar você tem que ter SAC. E eu tenho um SAC bem grande...

— Que diferença isso faz? — Eu tenho WWW e aposto que você não tem.

SETE

— Mas por outro lado, venho com imagens ilustradas. Neste quesito, você passou longe. Tão longe que visto daqui parece um ponto no universo.

— Tudo bem. Posso até ter passado longe. Um  ponto no universo, né? Mas segura essa, mano véi. Eu tenho FSC e você não.

— Eu fui agraciado com o S.I.F. Sou, portanto, inspecionado pelo Ministério da Agricultura.

— Agora eu calo a sua boca. Dou minha tapa à cara. Você não tem Tetra Pak.

— Quêêêê...?!

— Dou minha cara à tapa.  

— De fato. Nesse treco realmente entrego as mãos à palmatoria. Que vem a ser isso?

— Trocado em miúdos, minha embalagem. Minha roupagem, minha vestimenta, kikikiki... Protege o que é bom.

— Convencido de uma figa!  Somos todos iguais. Saímos do ube ou das tetas da mesma vaca.

— Duvido. Duvidoóóóó... Minha mãe é uma vaca, porém, a sua, a sua é uma... A sua é uma bezerra. Kikikiki...

— Ria, seu idiota.  Ao contrário de você, sou enfardado e envasado em embalagem asséptica. Ninguém toca em mim...

— Só falta o engraçadinho querer me convencer agora nessa altura do campeonato, que é virgem. Kikikiki... Fala ai, mano. Você é virgem? Tem selo de inspeção? Tem código de barras?

— Tenho tudo isso e muito mais. Venho de boa usina, meu laticínio é conhecido país afora, possuo CEP, CNPJ e etc. etc...

— Você não preserva a natureza... Eu, ao oposto...

— Como você é tapado. Tapado e idiota. Sabia que tenho como ser reciclado?

— Reciclado coisa nenhuma. No final das contas você vai é servir de lixeira pra encherem você de porcaria. Au... Au... Au... Ua... Ua... Ua...

OITO

De repente, em face da conversa acalorada, febricitante, ambos, distraídos (embora usem a faixa destinada aos pedestres), são atropelados por um motoqueiro que inopinadamente avança o sinal. Fatalidade, sorte quem sabe, acaso, destino, um sobrevive. O outro, porém, chega a óbito. Bate com as doze.

NOVE

Dia seguinte, os jornais noticiam, em letras garrafais: “DOIS LITROS DE LEITE, AO CRUZAREM A AVENIDA, SÃO ATROPELADOS NO SEMÁFORO POR UM MOTOQUEIRO BÊBADO E EM ALTA VELOCIDADE” Mais embaixo, o texto em explicação à chamada. “UMA DAS VÍTIMAS, INFELIZMENTE, NÃO RESISTIU AOS FERIMENTOS E FALECEU À CAMINHO DO HOSPITAL”.

DEZ

O litro sobrevivente, ainda na enfermaria, ao ser procurado, um tanto quanto assustado e ligeiramente abalado, não quis dar entrevista. Os repórteres só conseguiram saber seu nome verdadeiro. “Longa Vida”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Ed. AMC-GUEDES, 2020.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 408

 


Arquivo Spina 18 (Carla Bueno)

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Peladão


Por motivos fartos e facilmente compreensíveis, ele acabou ganhando status de atração turística – um dos pontos de parada obrigatória para todo grupo que visite Maringá pela primeira vez. Ali o guia aproveita para contar como começou a história da cidade: é o local do encontro entre o Maringá Velho e o Maringá Novo. Oficialmente, o nome do charmoso espaço é Praça Sete de Setembro. Mas na boca do povo é Praça do Peladão.

Deu-se assim: o prefeito na época (1972) era o Doutor Adriano Valente. Ocorreu-lhe a ideia de dotar a cidade de um monumento em homenagem aos nossos grandes pioneiros. Propósito mais do que justo, visto que a bela urbe da qual hoje tanto nos orgulhamos só existe porque um peitudo grupo de homens e mulheres teve a coragem de erguer aqui os primeiros ranchos.

A obra foi confiada ao renomado artista plástico Henrique Aragão, a quem o Doutor Adriano explicou o que pretendia: algo que configurasse um esperançoso desbravador com os braços levantados para o céu, como que a saudar o futuro e indicar sua sede de infinito.

O artista, que residia em Ibiporã, foi para casa, dialogou com a inspiração, voltou com o projeto pronto: uma grande e esguia estátua, tendo ao lado três machados estilizados lembrando a abertura da mata para construção da cidade.

Até aí tudo bem. Era um conjunto bonito, empolgante mesmo, traços modernos, e seria fácil entender a simbologia. Surgiram, porém, dois “poréns” deveras embaraçosos.

O primeiro era que o bravo desbravador, ali representado pela estátua, seria instalado de frente para o Maringá Novo. Coisa chique sim. Mas com isso o bumbum ficaria desaforadamente virado para o Maringá Velho... E aí aconteceu o que ninguém imaginara antes: os moradores do bairro pioneiro não gostaram nadinha da história, armou-se o entrevero, e o enredo por pouco não desenredou.

Foi necessária uma caprichada dose de diplomacia para convencer o pessoal de que realmente não havia outro jeito. Ou seja: não havia como fazer o desbravador olhar ao mesmo tempo para o leste e para o oeste.

O segundo problema era mais delicado ainda: é que o artista, movido pela sua pureza de alma e de coração, esculpira a estátua desnuda. Isso mesmo: nuinha da cabeça aos pés, tal qual Adão no paraíso. Entendeu o drama?...

Pois deu no que deu... o maior bochicho na cidade: “Como é que o Doutor Adriano, um homem tão fino e de tão bons princípios, consentira numa vexação daquelas?”. Pressão em cima do prefeito, pressão em cima do escultor. O único jeito de pacificar os ânimos foi acatar a genial ideia não se sabe de quem: colocar uma folha de parreira por sobre as partes pudendas do inocente herói de cobre. Só não foi possível evitar que o simpático personagem resultasse condenado a carregar para todo o sempre o folclórico apelido de “Peladão”.

O que, aliás, faz dele uma atração mais chamativa ainda.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-9-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) IV

CRESCIMENTO

De crescer, o ser começa,
a partir do nascimento
e o crescimento só cessa
depois do sepultamento,
a fim de avançar depressa
se acelera o crescimento,
porque todos temos pressa
em conquistar nosso intento,
quando a meta não for essa,
se chega a fazer promessa:
pra alcançar nesse momento.

Talvez a felicidade,
que tanto sonhamos ter,
esteja à nossa vontade
para dela nos valer,
viver com simplicidade
num mundo sempre a crescer,
sem excesso, nem vaidade,
que possa comprometer,
não só como humanidade
mas também na eternidade,
é feliz quem souber SER.
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ESSÊNCIAS


Nunca espere frutos ter
se nada tiver plantado,
sempre acaba sem colher
quem nunca tem semeado.
Portas que só têm sinais
de entrada e não de saída,
quem entrar, talvez jamais,
de lá voltará com vida.
Sejam ternos os fanais,
eternos fachos florais
numa senda colorida.

A primavera nos traz
as primeiras sensações,
que enchem da sublime paz
tão sequiosos corações,
um sorriso transbordante
cobre a face com olores
e no olhar do ser pensante
um ramalhete de cores,
essência aromatizante,
unge e perfuma o semblante
dos sensíveis prosadores.
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MEDIDA CERTA


Peço a Deus que me dê vida
na devida proporção,
se possível na medida
pra cumprir minha missão,
nunca me falte energia
nem vontade de viver,
mostrando no fim do dia
a paz que brota do ser,
minha mão plante harmonia
meu semblante a luz que guia
nos caminhos do saber.

Tudo na vida são fases
nem sempre bem sucedidas,
muitas delas são capazes
de causar graves feridas,
tomara, possamos vê-las
integralmente vencidas
sabendo que pra vencê-las
por nós devem ser vividas,
mesmo sem nunca querê-las
preferimos ser estrelas
frente as flores coloridas.
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MUTAÇÕES


Tarde de julho, nublada,
o vento uivando anuncia
que a noite será gelada
e a manhã cinzenta e fria,
quem nunca teve morada
faz da estrada a moradia,
entre o pouco e o quase nada
com o pouco ficaria.
Vida insossa provocada
pela ferida causada
nos passos de cada dia.

Mas o sol quando desponta,
bem cedo, no alvorecer,
lentamente toma conta
do cosmos vital do ser.
Toda a treva, a luz desmonta,
fazendo à paz florescer
um vasto rol que remonta
aos confins do entardecer.
A vida não nasce pronta
nela o tempo é quem reponta
sonhos que fazem viver.
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PONTE


Muitos fazem das marquises,
um improvisado teto,
resultante dos deslizes
na busca de amor e afeto.
Repousando nas calçadas
sem colchão, sem protetor,
calça e manga arregaçadas
tendo o céu por cobertor.
Corpo inerte estatelado,
ignora o que passa ao lado
mesmo assim é sonhador.

Sedentos por natureza
buscamos água na fonte,
vida vinda à profundeza
do mais distante horizonte.
Com farta delicadeza
descemos ao pé do monte,
pra sorver toda a beleza
refletida em nossa fronte.
O tempo mostra agudeza,
nos lapida com destreza
para sermos dele a ponte.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Uganda) A História de Dois Amigos

Era uma vez um oleiro, a mulher e um filho. À medida que este crescia, os pais ficavam cada vez mais tristes, pois ele era diferente das outras crianças. Nunca brincava com eles; nem ria, nem cantava. Só ficava sentado, sozinho. Mesmo com os pais ele só falava de raro em raro, e nunca aprendeu os modos educados das outras crianças da aldeia. Ele ficava só sentado, pensando o dia inteiro - e ninguém sabia em que ele tanto pensava, o que entristecia muito aos pais.

As outras mulheres tentavam consolar a mulher do oleiro, dizendo:

- Talvez você ainda tenha outro filho, igual às outras crianças!

Mas ela dizia:

- Eu não quero outro filho. Eu quero é que esse seja sociável.

E os homens da cidade tentavam animar o oleiro, dizendo:

- Esses meninos estranhos frequentemente se tornam grandes homens!

E o homem dizia:

- Deixem o garoto em paz. Algum dia vamos saber se ele é um homem sábio ou um idiota. Ao chegar em casa, o oleiro contou à mulher a conversa com os outros homens.

O menino escutou e pareceu despertar. Ficou pensando naquilo durante alguns dias, e por fim, um dia saiu bem cedinho, levando seu cajado, e foi para a floresta ficar lá pensando.

Perambulou o dia todo e acabou chegando a uma pequena clareira no flanco de um morro, de onde podia avistar todo o país. O Sol estava se pondo sobre as gigantes montanhas azuis e tudo tinha um luminoso tom róseo e dourado. Profundas sombras cobriam as bananeiras e florestas ao longe. Mas o menino não via nada disso. Estava com os pés doídos, exausto e miserável; sentou-se sobre um tronco caído, cansado do longo dia.

De repente, um leão surgiu na clareira.

- O que você está fazendo aqui, tão sozinho? - perguntou o leão, ríspido.

- Estou desolado! - disse o menino - e vim para a floresta pensar, pois não sei se sou um homem ou um idiota.

- E é só nisso que você fica pensando? - inquiriu o leão.

- É - respondeu o menino - penso nisso dia e noite.

- Então você é um idiota - falou o leão decidido - homens sábios pensam sobre coisas que beneficiam o país.

E foi embora.

Um antílope veio saltando pela clareira e parou, encarando o menino.

- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou.

- Estou muito desolado - respondeu o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Você costuma comer alguma coisa?

- Sim - disse o menino - minha mãe faz comida duas vezes por dia, e eu como.

- E você alguma vez agradece?

- Não. Nunca pensei nisso - respondeu o menino.

- Então, você é um idiota. Os homens sábios são sempre agradecidos.

E foi embora para dentro da floresta.

Então chegou um leopardo, olhando-o desconfiado.

- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou.

- Estou muito desolado - respondeu o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Eles gostam de você, lá na aldeia?

- Não, acho que não - disse o garoto. Eu nem os conheço direito.

- Então você é um idiota - disse o leopardo - todos os meninos são bons; muitas vezes eu tenho vontade de ser um menino. Os homens sábios se misturam aos companheiros e conquistam seu respeito.

E foi embora, fungando.

Nesse momento, um grande elefante cinza veio se embaralhando pela trilha da floresta, abanando o rabinho, catando um galhinho aqui, uma folhinha ali, das árvores por onde passava.

- O que você está fazendo aqui, sozinho, com o Sol já se pondo? Você devia estar na sua casa, na aldeia! - falou o elefante.

- Estou desolado - disse o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Que tipos de trabalhos você faz? - perguntou o elefante.

- Eu não trabalho em nada - respondeu o menino.

- Então você é um idiota - disse o elefante - todos os homens sábios trabalham.

E afastou-se gingando pela trilha que levava ao lago da floresta, onde os animais matam a sede.

O menino apoiou a cabeça nas mãos e chorou amargamente, de coração partido, pois já não sabia o que fazer. Pouco depois, ouviu uma voz ao seu lado, dizendo gentilmente:

- Oh meu irmãozinho, não chore assim; conte-me o seu problema.

O menino viu então uma pequena lebre ao seu lado.

- Estou muito triste. Eu não sou como as outras pessoas e ninguém gosta de mim. Vim para cá tentar descobrir se sou um homem sábio ou idiota e todos os animais me falaram que sou idiota!

E chorou mais do que antes. A lebre deixou-o chorar e depois falou:

- Não chores mais. O que os animais falaram é verdade. Disseram para você ser agradecido... Ter pensamentos grandiosos... Ser simpático com as outras pessoas... Trabalhar... Todas essas coisas são sábias.

Os animais não são ociosos e ficam admirados ao ver que os homens, tão bem-dotados, conseguem desperdiçar suas vidas. Pense em como ficaram surpresos ao ver um menino como você, forte e saudável, sem fazer nada o dia inteiro! Eles sabem que o mundo estará a seus pés, se você comandar. Mas há muito tempo ainda: você é um menino!

O Sol já desaparecera atrás das montanhas distantes e a mansa escuridão ia cobrindo rapidamente toda a floresta. A lebre disse:

- Você está cansado, com fome e longe de casa. Passe a noite aqui comigo, para conversarmos.

Então, entraram pela floresta. A lebre trouxe água numa cuia e maravilhosas nozes para o menino se alimentar e preparou-lhe uma cama macia com folhas secas. Conversaram sobre muitas coisas e o menino disse:

- Meu pai é oleiro e acho que gostaria de ser oleiro também.

- Se você for, nunca se contente com trabalho malfeito - disse a lebre - seus potes podem ser os melhores do país. Não descanse até conseguir fazer coisas realmente lindas. Nenhum homem tem o direito de espalhar coisas malfeitas pelo mundo. A vida do homem é como um rio... Fluindo sem parar... O que passou, acabou-se, mas sempre vêm outras águas. Ninguém pode dizer que é tarde demais, ainda mais você, com a vida toda pela frente. E só os idiotas ficam desencorajados pela zombaria.

"A aurora prateada as sombras dissipou; aos sonhos alegres, adeus eu dou. A multidão da floresta já amanheceu; nas árvores, o canto dos pássaros ecoou, do longo sono, toda flor despertou; e eu sei hoje o mundo é meu. Meu passo é seguro e forte é minha mão; enquanto puder, muito vou trabalhar. Quando num mar de luz o Sol se apagar e a noite trouxer a escuridão por direito, vou então descansar, pois hoje o mundo eu vou ganhar."

De manhã bem cedo, a lebre acompanhou o menino até a orla da floresta e fizeram um juramento de amizade, tão sagrado para os animais quanto para os homens. A lebre falou:

- Volte de vez em quando para me ver. Venha até esse ponto e cante essa canção; os passarinhos me avisarão e eu lhe esperarei.

O menino voltou animado para casa e encontrou a mãe trabalhando na horta. Ele a cumprimentou tão alegre como qualquer outra criança simpática, e viu que ela ficou feliz. Depois foi ter com o pai e disse:

- Quero ser oleiro. Vou tentar aprender.

O pai ficou muito contente. Todos na aldeia ficaram sabendo e alegraram-se com o casal e seu menino.

O menino trabalhava com afinco e anos mais tarde tornou-se um oleiro famoso. Vinha gente de todas as regiões comprar seus potes, que sempre eram bem-feitos e bonitos. Contudo, quando vinha uma depressãozinha, ele se recolhia para a floresta e lá encontrava-se com sua amiga lebre. Passavam o dia juntos.

O homem abria seu coração para a amiga, contando todas as suas tristezas. E sempre recebia amor, carinho, consolo e encorajamento, voltando ao trabalho cheio de esperança.


Fonte:
Universo das Fábulas.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 407

 


Sammis Reachers (Os Primeiros Livros [e Enciclopédias] a Gente Nunca Esquece)

Se não todas as pessoas, pelo menos a maioria das que são letradas possuem uma história com o livro. Essa história pode ser breve ou longa, mono ou multilogal, a depender da quantidade e qualidade dos livros - entendendo qualidade não pelo redundante valor literário, mas pelo impacto que determinado livro possa ter causado naquela alma.

Em meu caso, a história começa na formatura da alfabetização (hoje Pré-Escola), ao ganhar meu primeiro livro: A Tartaruga Infeliz - fato devidamente registrado (e como lembraria?!) por uma prosaica fotografia 10x15. O título do opúsculo quelônio (quelônio é a ordem das tartarugas, jabutis e cágados) foi de mau augúrio: queimou de melancolia o futuro leitor e poetastro...

Mas, pensando bem, definir "primeiros livros" é difícil, pois havia em minha casa paterna uma pequena quantidade deles, e sabe-se lá qual daqueles possa ter sido adquirido tendo a minha pessoa como alvo primário... Exempli gratia, tínhamos pequenas coleções com jeitinho de enciclopédia, assim, querendo, já quase sendo, mas sem ser, sabe? Uma delas era a Saber em Cores (Enciclopédia Didático Visual), de 1975, publicada pela Maltese/Melhoramentos. Belas ilustrações e informações hiper resumidas, mas que me deram o primeiro contato com grandes nomes da Literatura, artes plásticas, além de noções de geografia e ciências. Hum, mas não sei se foi adquirida antes ou depois de meu nascimento (78). E não eram enciclopédias de fato...

Enciclopédia, essa coisa hoje anacrônica, naftalinado ônibus (bonde?) do Conhecimento, surgiu como ideia onde surgiram a maioria delas (as boas ideias), na Grécia antiga. Mas o modelo nosso conhecido é mais recente, do séc. XVIII, filha dos esforços dos franceses d’Alembert e Diderot, por isso mesmo chamados de enciclopedistas.

Passemos então à minha primeira enciclopédia, minha mesmo e enciclopédia mesmo, de fato e direito. Era uma Conhecer, editada pela Abril Cultural, no longínquo 1966, contando com reedições várias. A princesa me chegou usada, como doravante a maioria de livros que me atravessaram a ânima e as manoplas. Na altura de uns 11, 12 anos, corria a brincar de pique-esconde na pequena favelinha onde meio que me "criei", na verdade uma única rua de média extensão formada por algumas casas humildes e até alguns barracos. Algumas casas ainda possuíam o quintal aberto, sem muros. A favelinha era a Beira Rio, que possuía tal nome justamente por... beirar um pequeno rio (o Anaia ou Alcântara ou outros nomes, pois a cada trecho tal rio assume um nome, enquanto percorre meio município de São Gonçalo), que o tempo transformou em valão. Na ânsia de esconder-me, entrei por um desses quintais abertos, que era composto por quatro casinhas, quando o titular do terreno, um negro simpático que trabalhava na cidade de Niterói como porteiro, dito Quiquinho, me chamou, lotado de sorrisos, e mostrou aquela maravilha. Como ele, que só me conhecia de vista na rua, adivinhara que eu era a presa certa, eu nunca soube. A tal maravilha, como eu poucas vezes (brevemente na biblioteca escolar) havia contemplado parecida, teve sobre minha curiosidade um efeito estonteante, catártico.

Fascinado, desliguei-me da brincadeira e mergulhei naquele esplendor - sim, pois a Conhecer contava não com fotos, mas com ilustrações primorosas em praticamente cada uma de suas grandes páginas. "Gostou?", sorria o vendedor de ocasião. "Peça a seu pai para comprar pra você. Diga para ele vir aqui falar comigo. Como essa, há outras dez, olha ali" - e apontou-me para a estante capenga que se escorava numa parede de tijolos nus de seu casebre.

Corri para casa. Perturbei seu Mário que, entre um trago e outro de cachaça (naquela época ainda bebia), consertava na varanda dos fundos máquinas de escrever e mimeógrafos. Perturbei e perturbei, até que ele resolveu ir até lá. Era também a seu modo um amante dos livros, e comprador regular das tais coleções pretensamente enciclopédicas, que nos idos eram vendidas de porta em porta por colportores ou mascates. Bom negociador - arte em que inutilmente tentou a vida inteira me iniciar - seu Mário sempre foi. Conversa vai, choro vem, e lá fomos nós para casa com aquela riqueza, aquela internet de papel (da qual faltou um volume), a Wikipédia possível em fins da década de 80. Nos anos seguintes, aquela enciclopédia foi devorada e sacramentou minha excursão pelo sendero luminoso das sabenças.

Hoje o tesouro, o tesauro das enciclopédias de papel esboroou-se: A Britannica deixou de ser impressa em 2012. Sem mágoas, por favor: A Wikipédia, com seus contras e (a meu humilde ver, muitos) prós aí está, solapando com terabytes de informação uma geração abençoada, eleita, reluzente que nunca saberá do sacrifício que era necessário, pouco tempo antes de nascerem, para a aquisição de conhecimento. E nem sentirão jamais o peso físico de ter que carregar doze volumes duma enciclopédia!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Arquivo Spina 17 (Maura Luza Martins Frazão)

 

Baú de Trovas XVIII


Teus olhos são dois poemas,
escritos na mesma cor;
são dois rosários de penas,
são duas trovas de amor.
ANTÔNIO LAFAYETTE
- - - - - -
Embora mortos estejam,
não feches os olhos meus;
pois eles talvez te vejam,
por um milagre de Deus!
ARCHIMIMO LAPAGESSE
- - - - - -
Sê franca e bem humorada,
mostra em tua alma e dulçor.
— Flor de corola fechada
nunca atraiu beija-flor!
ARGENTINA DE ARARIPE AIGNER
- - - - - -
A saudade tem tal arte,
é em bondade tão rica,
que não despreza quem parte,
nem abandona quem fica!
ARLETE REGINA
- - - - - -
Grande alegria me deste,
pois, quando eu me despedia,
numa lágrima disseste
tudo aquilo que eu queria!
APARÍCI0 FERNANDES
- - - - - -
Quis rasgar o teu retrato,
mas que tristeza, que sina...
— Até no papel, o ingrato
do teu olhar me domina!
BENNY SILVA
- - - - - -
O que é preciso na trova?
A paz, a delicadeza
de um beijo de lua nova
nuns lábios de camponesa...
BRITO MACHADO
- - - - - -
O Tempo ao Amor não mata...
é disso prova fiel
as nossas Bodas de Prata,
em plena Lua de Mel.
CARLOS GUIMARÃES
- - - - - -
Vou pelo braço da noite,
levando tudo que ó meu:
— a dor que os homens me deram
e a canção que Deus me deu.
CECÍLIA MEIRELES
- - - - - -
Eu da morte não me agrado,
mas morreria com gosto,
se fosse logo enterrado
na covinha de teu rosto.
CHRISTIANO TAVARES SIMÕES
- - - - - -
Tu não crês no que te digo,
o teu Sorriso me diz.
— Mas só quando estou contigo
é que me sinto feliz!
CLÓVIS RAMOS
- - - - - -
Quanto mais por ti eu peno,
mais gosto tenho em penar.
— O mundo inteiro é pequeno
para a glória de te amar!
COLOMBINA
- - - - - –
Fico a ver se ouço os teus passos,
quando estás para chegar,
que um só momento em teus braços
paga a pena de esperar!
DANIEL DE CARVALHO
- - - - - –
Creio que você não sabe
(se sabe, você não crê...):
— Não há no mundo o que acabe
meu grande amor por você!
DELMAR BARRÃO
- - - - - -
Se ela de mim chega perto
e há troca de saudação,
sua mão é um lírio aberto
perfumando minha mão!
DIAS MONTEIRO
- - - - - -
Enfrentando o mundo bronco,
ponho, apesar das perfídias,
ternura do velho tronco
alimentando as orquídeas.
DORMEVILLY NÓBREGA
- - - - - -

Esse teu beijo, querida,
profundo, louco, fremente,
tem tudo que, nesta vida,
desgraça a vida da gente!
DURVAL MENDONÇA
- - - - - -
Não chores, linda menina,
não chores, botão de flor!
— O teu sorriso ilumina
as trevas da minha dor.
EDGAR REZENDE
- - - - - -
Saudade, lembrança triste
de tudo que já não sou.
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou...
EDGARD BARCELLOS CERQUEIRA
- - - - - -
Queres partir? Sê feliz!
Porém te digo sincero:
ninguém te quer como eu quis,
ninguém te quis como eu quero!...
EDGAR DE ALENCAR
- - - - - -
Saudade é tudo que fica
de uma ventura fugaz,
no pranto que não se explica,
no verso que não se faz!,..
ERASMO SILVA

- - - - - -
Retornado ao pó obscuro,
coração, urna de pranto,
quem saberá no futuro
que amaste e sofreste tanto?
ESMERALDO SIQUEIRA
- - - - - -
Saudade, velha canção,
saudade, sombra de alguém,
que os tempos só levarão
se me levarem também.
FERNANDES SOARES
- - - - - -
Contemplar, risonha, a face
de uma criança contente,
é como se o céu cantasse
para a ternura da gente!
FERNANDO BURLAMAOUl
- - - - - -
Não tremas ingenuamente,
nem te cubras de rubor!...
O beijo é coisa inocente
na velha história do amor.
F. LUZIA NETTO
- - - - - -
Na pureza da inocência
e no cálice da flor
há, decerto, a florescência
sublime e santa do amor!
LUIZ G. CASTELLIANO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

O Nosso Português de Cada Dia (Por quê, Porquê, Porque e Por que)


 1- Por quê: separado com acento

Trata-se da junção entre uma preposição (classe de palavras que tem a função de ligar um termo ao outro) com um pronome interrogativo (quê). É usado apenas em final de oração, pois o “quê” vira tônico antes de ponto de interrogação (lembre-se que na fala é necessário uma entoação na voz para fazer perguntas).  Pode ser trocado, sem nenhum prejuízo por “por qual motivo” e “por qual razão”.

Exemplo:
Se os mantimentos estão embrulhados, a Maria está nervosa por quê?

2- Porquê: junto e com acento

É um substantivo e deve vir acompanhado por um artigo “o/os”.  O “porquê” junto e acentuado é sinônimo da palavra motivo e razão (nesse caso sem a preposição “por”).

Exemplo:
Nunca me disse o porquê não falar mais comigo.

3- Por que: separado e sem acento

Nesse caso, é semelhante ao “por quê” separado com acento. Forma-se a partir de uma preposição (por) mais um pronome interrogativo ou relativo (que) e pode ser usado tanto em frases interrogativas quanto nas orações afirmativas. Desse modo, aqui também pode ser trocado pela palavra “motivo” ou razão” e serve para perguntas diretas e frases terminadas com ponto final.

Exemplos:
Por que você chegou correndo? (Por qual razão você chegou correndo?).

Maria sabe por que eu não pude trabalhar hoje. (Maria sabe por qual motivo eu não pude trabalhar hoje.).

4- Porque: junto e sem acento

É uma conjunção explicativa, assim, para não ter erro, você pode substituir por outra conjunção explicativa como “pois”, “já que”, “porquanto”, se não houver prejuízo no sentido, o uso está correto. Ele serve para indicar causa, explicação ou justificativa.

Exemplos:
Não consegui fazer a lição de casa porque estava doente. (Não consegui fazer a lição de casa, pois estava doente.).

Cheguei muito adiantado porque não quis incomodar os convidados. (Cheguei muito adiantado, pois não quis incomodar os convidados.).

Fonte das diferenças:

Infoenem.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 406

 


Carolina Ramos (S.O.S.)

Iara exultou ao ver as duas salas cheias de mantimentos, uma. A outra, de pacotes, brinquedos e roupas usadas, que prodigamente forravam as paredes até o teto envernizado.

Nos seus sete anos de existência, o "Lar da Tranquilidade" conquistara o apoio público de maneira bastante sensível. Neste ano, a mudança para moeda forte, vencidos os temores iniciais, tornara as pessoas mais confiantes, eufóricas e, consequentemente, mais dadivosas as bolsas.

O Natal rondava perto e logo começaria a faina das senhoras da sociedade, prontas para esquecer imperativos fúteis e empenhar as mãos no Banco Anônimo da Caridade Cristã.

O "Lar da Tranquilidade" abrigava, de um lado, velhinhos carentes que, no convívio com gente da sua idade, encontravam ouvidos pacientes para a troca de confidências, sobre dores e mazelas sazonais. No outro, crianças órfãs ou abandonadas.

Com um sorriso de íntima satisfação. Clara rememorou fatos que haviam precedido a fundação da entidade. Fora sua a ideia da formação do Lar beneficente. Ideia aprovada com entusiasmo pela maioria daqueles que lhe ofereciam apoio. Boa parte, entretanto, tivera de ser conquistada a duras penas e muita tenacidade, porque não poucos se opunham ao binômio velho-criança sob o mesmo teto, embora em alas distintas. Para Clara, valia tentar. O ponto é o começo e o fim de tudo. Infância e velhice, ainda que em campos opostos, tinham pontos afins. Nas voltas que o mundo dá, acabam por encontrar-se. Por quê, então, não colaborar para esse encontro? Crianças e velhos gostam de ouvir e de serem ouvidos. Crianças adoram histórias, velhos adoram contá-las. Como se não fossem eles compêndios vivos, repletos de histórias escritas pela mão da vida! Velhos e crianças amam e precisam sentir-se amados. E por quê não atirar uns nos braços dos outros?! Sofisma?

Vencidas as barreiras, o projeto, por si, dera mostras de viabilidade.

O "Lar da Tranquilidade", há muito, deixara de ser mera expressão literária. Funcionava. E muito bem! Ganhara apoio incondicional e, cada vez mais procurado, abria os braços para a acolhida carinhosa. A ajuda da sociedade viera espontânea — chuva gratuita que vem e vai, deixando o campo preparado para nova colheita.

Contudo, como nada nesta vida é perfeito, embora as intenções sejam as melhores possíveis, a própria prosperidade ostensiva, acabara por incomodar. Não a quem dela gozava, evidentemente, por necessidade, mas, em particular, a quem pretendia apenas usá-la e dela tirar proveito.

O aprazível "Lar da Tranquilidade" não tardaria em atrair atenções dos que, ignorando a amplitude do seu alcance social, viam nele, tão somente, fonte rendosa de fácil acesso.

Aproximavam-se as festas natalinas e já marcada a distribuição dos donativos. Crescia a ansiedade de Clara e a daquelas mãos bondosas que a assessoravam na direção do estabelecimento.

Entre os abrigados, poder-se-ia dizer que só havia crianças. Os olhos cansados dos velhinhos tinham brilho especial que os igualava aos olhos da garotada que serelepeteava pela área interna do prédio, a espichar o pescoço para alcançar o beiral das janelas e bisbilhotar o interior das salas abarrotadas de presentes.

Naquela manhã, como sempre. Clara chegara de braços cheios sendo logo rodeada pelo alvoroço das crianças.

- Tia... Tia... deixa a gente espiar... só um "poquinho", deixa?

Clara fingia zanga, sentindo o coração explodir de felicidade!

— Nada disso... deixem de ser abelhudos. Falta só um pouquinho para o Natal! Quinze dias só! E, aí, vocês vão ver e pegar tudo aquilo a que têm direito. Está bem? Olhem lá os velhinhos. Eles não têm pressa. Sentadinhos, tomando sol e esperando, sem queixa nenhuma. Eles sabem esperar. Vocês precisam aprender com eles. E eles têm tanto a ensinar a vocês!...

A equilibrar embrulhos, Clara torceu a chave e entreabriu a porta, com cautela, evitando a curiosidade que a cercava.

Recuou de pronto, reprimindo um grito. Tudo vazio! Atônita, correu para outra sala. O mesmo! A história se repetia. Já vira esta cena uma outra vez! Sentiu-se também vazia por dentro. Era demais! Há dois anos, por essa mesma data, acontecera fato idêntico. Na surdina, os larápios haviam levado tudo o quanto puderam, deixando sua festa de Natal mergulhada no caos. As lágrimas saltaram incontroláveis, num misto de raiva e desapontamento. Desta vez, fora bem pior! Nada sobrara! Nadinha! As quatro operações completas! Somar e multiplicar, até que não fora tão difícil. Dividir, mais fácil ainda, que as mãos estendidas apareciam em profusão! Reconhecia que, subtrair, dentre todas, tinha sido a operação mais rápida! Numa só noite, os gatunos haviam dado conta de tudo!

Clara recusava-se a acreditar: — Outra vez, não! Não é possível, meu Deus!

O que fazer nos quinze míseros dias que precediam o Natal?!

A névoa da desolação abateu-se sobre o "Lar da Tranquilidade". Velhinhos e crianças perderam o brilho do olhar. Crianças ficaram menos crianças e velhinhos, ficaram mais velhinhos ainda!

Clara trancou o desespero entre as quatro paredes do quarto vazio. Não queria ver nem falar com ninguém. Saiu, pouco depois, decidida. Ao voltar, trazia consigo larga faixa de pano, que fez estender na parede frontal do prédio e que esclarecia em letras negras e gritantes:

"S.O.S.— Senhores ladrões: O "Lar da Tranquilidade" mantém velhinhos e crianças, apenas com contribuições. Somos pobres. Precisamos da ajuda de vocês. Ajudem-nos, por favor."

Alguns dias depois, nova surpresa. Abertas as portas, as duas salas estavam repletas de presentes. Pacotes de todos os tamanhos forravam as paredes suplantando o volume dos surrupiados.

O brilho voltou aos olhos e o riso novamente trouxe alegria àquela casa. O Natal do Tranquilidade foi, desta vez, verdadeiramente muito especial! Crianças de diferentes idades, várias com mais de oitenta anos, cantavam e cirandavam ao redor da Árvore iluminada.

No presépio, em Seu leito de palhas, o Menino-Deus sorria, ansioso por erguer-se e cirandar também com elas.

E, até hoje, não houve mais qualquer problema naquele Lar abençoado, a não ser a renovação anual da faixa, agora com apenas três palavras; "DEUS LHES PAGUE!"

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 405

 


Aparecido Raimundo de Souza (Por todos estes pequenos pedacinhos da minha vida)


HOJE, MEU DEUS, HOJE eu deveria estar completamente venturoso e beatificado, próspero e feliz!  Imensamente louvado, satisfeito e realizado. Afinal, hoje 12 de outubro, é o Dia das Crianças. Das minhas crianças, em particular. Hoje é o dia das minhas filhas que se tornaram mães e me deram, de presente, netos.

Mesmo trilho, dia de ver estes pequeninos seres e trocar com eles os obsequiosos benfazejos que estão escondidos dentro de mim. Trancafiados num lugarzinho secreto onde somente eu tenho livre e total acesso. Hoje também é o dia ‘D’, ou seja, o dia de dizer aos meus filhos o quanto eu os amo e os venero.

Via de extensão, me abraçar aos netinhos, gritando, a plenos pulmões, o meu amor incondicional, e demonstrando, às claras, e não só isto, fazendo fluir, em toda a sua plenitude, a afabilidade, o comprazimento e o folguedo ímpar, a felicidade contagiosa e tamanha, que me invade o âmago.

Tudo isto me deixa em frangalhos, à beira de um ataque  de nervos, em vista das emoções jubilosas e dos regalos que me elevam a um estado de graça jamais imaginado. Meu Deus, como eu me sinto realizado em poder estar com eles nesta data, nesta hora, neste momento tão especial e marcante.

Entretanto, apesar de toda esta exultação, me ocorre exatamente o oposto. No pleno e abastado da minha vida, uma dor desgostosa e maçante, pegajosa e chata resolveu me fustigar a alma. Uma tristeza destas grandiosas, vinda não sei de onde,  me tirou a paz, me atirou o sossego no ralo.

Num repente, se achegou, de mansinho, e me pegou de jeito. Me escanteiou do foco. Destruiu a minha fortaleza interna e me fez beijar o chão frio. Me embaçou a visão não me permitindo enxergar um palmo adiante do nariz, e, logo à frente, a linha do horizonte a ser seguida.

Para completar meu quadro perversamente lúgubre, uma solidão despropositada me deixou igualmente aprisionado, me abandonou num imprevisto mal chegado, completamente à deriva, algemado, acorrentado ao sombrio sepulcral de uma senda sem retorno.

Em razão disto, estou aqui, assim, perdido mesmo, ao “Deus  dará”, sem saber como fazer para voltar e tentar dar um novo tapa no visual da minha entenebrecida desgraça mal parida e completamente obumbrada de um túrbido gigantesco que não desgruda nem por reza braba.

Pelo exposto, diante do que está à minha frente, almejava, agora, aparecer para todos os meus pequenos, travestido num semblante alegre e descontraído, envolto num sorriso franco, enroupado numa plenitude que bailasse fácil ao som cativante e terno de uma melodia maviosa e gostosa de ser digerida e revisitada por todos que me são caros.

Hoje, meu Deus, hoje, exatamente hoje, agora, eu deveria estar completamente feliz! Imensamente satisfeito e realizado. Afinal, está na minha porta, o 12 de outubro. Chegou o  dia das crianças. Das minhas crianças, em particular. Hoje é o dia das minhas filhas que se tornaram mães e me deram, de presente, netos.

Entretanto, meu coração chora copiosamene. Meu peito arfa ao sabor de uma febre agonizante que me está definhando, aos poucos, a goles compassados, me colocando à pique a estrutura da planta dos pés às raizes dos meus fios de cabelos.

Apesar dos netos lindos, das filhas maravilhosas, do dia das crianças estar lá fora esplendoroso e imensurável, eu me sinto como aquela criança órfã... Tal e qual aquele menino que esqueceu de voltar correndo para os braços aconchegantes do mundo que roda, roda, roda, ao compasso engenhoso de um imenso carrossel girando continuamente em derredor de mim.      

Fonte:
Texto e fotos enviados pelo autor, de Conceição da Barra/ES.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) III


CRIANÇA

Cada vez que surge a flor
traz consigo, além das cores,
toda a magia do olor
que perfuma seus valores.
Na difusa luz do dia
fonte de vida e de paz,
guarda as marcas da harmonia
que sempre nova se faz.
Força impulsionando o ser
feliz por vê-lo crescer
no berço que se compraz.

Voando às asas dos ventos
num passeio à eternidade,
pereniza os bons momentos
com o pólen da amizade.
Assim, torna pleno o passo,
de quem no afã de crescer
dança ao som dum só compasso
o recital do viver.
Manter a estrada florida
deve a margem ser mantida
num eterno renascer.
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CARGA PESADA

Velha carreta de bois
rente à curva do estradão,
dorme cansada, depois,
de rodar num duro chão.
E o carreteiro exaurido
pelas andanças campeiras
descansa por ter cumprido
suas metas condoreiras,
rodas que não rangem mais,
ecos que somem jamais
das lembranças corriqueiras.

Ora transportando feno,
ora um fardo inconformado.
Se hoje parecer pequeno
o que ontem foi transportado,
basta ter olhar sereno
pra ver quanto tem mudado.
Percurso, talvez ameno,
porém não menos pesado.
Quem andar na direção
da carreta ou caminhão
faz deles o seu cajado.
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COLHEITA

Toda a leitura conduz
à sonhada descoberta,
pelo fruto que produz
o afeto ao livro desperta.
Leitura, a ceifa perfeita,
em todas as estações,
farta e constante colheita
no campo das plantações.
Ninguém deixe pra ser feita
à sombra da sala estreita
das cabais desilusões.

Sempre uma nobre razão
nos faça chegar à glória,
fonte que à luz dê evasão
escrevendo em paz a história.
Há momentos que perdemos
o entusiasmo de viver,
porém morrer não podemos,
sem cumprir nosso dever,
cada página que lemos,
uma mensagem colhemos
não sem antes florescer.
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MARCAS DO SER

Na beleza de uma flor
o vigor não se resume,
pode demonstrar a dor
mesmo que espalhe perfume.
Essência, luta e labor,
sob o respaldo do esmero,
farão do batalhador
suprimir o vil desterro
e os reflexos do esplendor,
descrições do semeador
sem rasura e desespero.

As primeiras impressões
sempre vão permanecer,
no arquivo das emoções
e delas nunca esquecer.
Dentre tantas expressões
a última a vir florescer
seja a das confirmações
nas linhas do entardecer.
Que tudo, sem exceções,
nada traga decepções
no rol do perene ser.
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ODE ÀS LETRAS

As doces uvas plantadas
nos ramos do nosso ser,
foram letras enxertadas
nas videiras do viver,
nobres fontes transbordaram
excelsa sabedoria,
as águas se transformaram
em dileta Academia.

Na bandeira vislumbramos
a estrela sempre a brilhar,
nessa luz nos espelhamos
pra também iluminar
e às letras, hoje cantamos,
sob o sol, raro esplendor,
à Academia exultamos
exaltando o seu fulgor.

Um passado de sucesso,
revestido de bravura,
dos anais desse progresso
à egrégia literatura.
Nestas plagas, semeadora,
da cultura universal,
das letras, desbravadora,
no universo cultural.
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PÃO

Daquilo que tem faltado
nas mãos do consumidor,
talvez mais tenha sobrado,
na mesa do produtor,
num desejo redobrado
de se tornar vencedor,
busca o passo tão sonhado
na rota de um lutador,
com vigor fica provado,
ninguém se torna abastado
sem ser um desbravador.

Nosso pão de cada dia
o tenhamos sobre a mesa,
seja a fonte de energia,
dando vida à natureza.
É de ti que vem o pão
louro fruto dos trigais,
alvo pó vindo do grão
celebrado em madrigais.
Ceifado, colhido à mão,
ondulante cobre o chão,
herança dos ancestrais.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.