sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Versejando 94

 

Sinclair Pozza Casemiro (Crônica de Natal)


As luzes coloriam as casas de amarelo, vermelho, azul, verde, lilás, em forma de bolas e incandescentes cordões, brilhos que se espalhavam também pelas ruas e refletiam até o céu imenso, lá bem alto, pontilhado de estrelinhas. Não só. Os corações também brilhavam iluminando os seus corpinhos, pequeninos. E de gentes grandes e muito grandes também.

Eram risos, gritos, cantos, uma algazarra que começava no lusco-fusco sem pressa de acabar. Até as mães se desleixavam um pouco e o tempo, as rezas, as brincadeiras se espichavam. As gentes miúdas se perdiam e se achavam, voltava tudo outra vez no lugar. Ali, em cada casa, a comida vestia-se de novidade nos sabores e formas entre doces encantados pelas figuras de estrelinhas, luas, cordeirinhos, vaquinhas, burrinhos e de Papai Noel, de trenós e de renas.

A correria ali também era maior que a de sempre. Entre irmãos, os primos e vizinhos se trombavam, ora correndo, ora caindo e logo se levantando para não se perder tempo. Cada docinho, bala, cada bolacha ou pedaço de bolo se oferecia alegre, participando do enlevo natalino. Os adultos se misturavam na rotina de preparar, cozinhar, assar, embelezar, sempre aqui e ali empurrando um, empurrando outro, nem tempo de zanga havia.

Tia e a mãe confabulavam, primos atazanavam as primas, que cantavam e contavam estórias a não se acabar. Os homens no violão, sanfona ou afazeres, também trocavam assuntos o tempo todo. Sempre uma cantoria no vento que levava e trazia também os mais diferentes e saborosos cheiros e causos.

O rádio se desligava? Para que dormissem, já muito tarde, e se alguém se lembrasse disso! Um barulho a mais, a menos, nada incomodava os momentos da alegre e temperada festança de véspera.

Véspera que durava semanas. À noite, a novena era sagrada, como eram sagradas as imagens de Nossa Senhora, São José, do Menino Jesus, dos Reis Magos, dos pastores, dos animaizinhos no curral que abrigava a história linda daquele nascimento. E dos anjos, estrelas, brilho e mistério enfeitando as noites de dezembro.

O presépio era magia e promessa.

Papai Noel se misturava nesse tempo e nesse espaço, havia um encontro inusitado que no começo os pequenos não entendiam...mas nem precisavam entender. Naquela mistura de luz, gente chegando, gente indo, roupas novas, fogos e presépio, o que contava era ser feliz.

A Igreja, onde chegava a novena que saía de cada uma daquelas casas, ganhava outro sentido, o sentido da infância, da alegria, da beleza resplandecente, cheia de festa. Das tantas brincadeiras de meninas e meninos, dos namoricos e fuxicos de moças e moços. Ninguém distinguia ninguém de ninguém... a paz dava o tom da amizade e dos corações. Livres pelo laço da fraternidade cristã.

Cantos de igreja, do alto-falante e do coral, cantos de rádio, do alto-falante do cinema, de Papai Noel, de propagandas... cantarolados todos, repetidos, tim-tim por tim-tim, mesmo que nem sempre compreendidos.

Não se podia esquecer da cartinha ao Papai Noel. E tinha aquelas que o correio levava para crianças que podiam ser esquecidas, que não se conhecia...mas Papai Noel, sim. Era infalível, o velhinho. E se alegrava pensar que outros amigos se faziam, assim, muitos chegavam a se conhecer de perto.

Ah...e a escolha do presente era outro capítulo dessa história. Tinha que se encaixar numa porção de coisas, mas vinha sempre um presente que era para cada criança, o presente mais lindo do mundo!

Muitas balas, muita alegria, muita música!!! Fascínio.

A espera por Papai Noel se fazendo num agradável ritual. E, claro... não ser desobediente! Era um tempo de muito cuidado, não se podia resvalar numa palavra feia, numa briguinha boba, nem nada. Cautela. Qualquer deslize e...pronto! Papai Noel não apareceria!

E a sua chegada? Outro mistério! Nunca se conseguia vê-lo. Mas ele sempre deixava um recadinho, pelo menos...bastava. Ano que vem não se dorme, se aguenta firme. Até que chega o ano que...os irmãos ficam estranhos, amigos confabulam...não é verdade? Como? Não existe? O que aconteceu?

Chateação...desilusão...sentia-se, por outro lado, que se estava mais importante, já não se era mais criança bobinha. Deixar as histórias de Papai Noel para as criancinhas ingênuas. Já não se era mais, afinal, qualquer criança. Triste. Triste? Que era aquilo? Vergonha? Orgulho de ter crescido? Que mistura doida de sentimentos...

Vai-se ficando para trás mais uma história mal explicada, mal resolvida que o tempo cuida de ajeitar.

Pelo menos Menino Jesus era de verdade, o presépio continuava, com os mesmos encantos, os cânticos do Coral, as músicas de rádio... a casa e a cidade enfeitadas e ainda a magia se via no ar pelo bom menino.

O tempo passou, passou. E veio o agora. E o agora é o tempo da verdade de tudo. Tempo que não para... verdade que se vai maturando...

Passados já muitos anos, finalmente, alguma coisa se aprende. Finalmente. Idade da razão... Mais-que-razão.

Transformam-se, nascem, morrem formas, meios, crenças... E... Viva!!! Vai nascer o Salvador! Papai Noel vai chegar, trazer presentes, espalham-se luzes em cada casa, no quintal, entre família e amigos que se tem em todo lugar por onde se possa! Passeios pelas ruas, cidades, gente bonita, quanta luz! Enche-se de música, de presentes e de vida por onde mais se vá!

Brincar, cantar, comportar-se bonitinho, é tempo de Natal!

Muito brilho, muita fé, muita alegria...nasceu o Menino Jesus! Papai Noel chegou! Escondido...mas deixou recadinho...

Nada mudou! Nem ninguém.

Fonte:
Texto compartilhado pela autora.

Baú de Trovas XXXIX


Felicidade é somente
uma visita apressada,
que aparece de repente
e parte sem dizer nada...
Aparício Fernandes
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Eu amo as minhas lembranças,
minhas saudades e dores,
assim, como amo as crianças,
os passarinhos e as flores.
Auta de Souza
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Noite Santa! A vida ensina
grande lição de humildade:
- Numa gruta, pequenina,
nasceu a Luz da Verdade!
Carolina Ramos
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Tudo se gasta e se afeia,
tudo desmaia e se apaga,
como um nome sobre a areia,
quando cresce e corre a vaga.
Casimiro de Abreu
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Na hora em que a terra dorme,
enrolada em frios véus,
eu ouço uma reza enorme
enchendo o abismo dos céus.
Castro Alves
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Do cais aceno ao vazio.
enquanto o remorso chora...
Castigo é alguém no navio
levando o perdão embora...
Darly O. Barros
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Saudade triste, contida,
do passado ainda presente…
O tempo rindo da vida
e a vida rindo da gente!
Dercy Alonso
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Se foi amor... eu não sei.
Sei que, após muitos fracassos,
quando, afinal, regressei
abrimos, juntos, os braços!
Dívenei Boseli
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Vós prometestes, senhora,
voltar um dia; porém,
esperei e, até agora,
inda não veio ninguém...
Emiliano Perneta
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Amizade é privilégio
dos corações bem formados,
Não se aprende no colégio
não se compra nos mercados.
Enéas de Castro
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Findo o amor, espero, Alice,
que me possas perdoar
— o que pensei, mas não disse,
— o que disse sem pensar!
Ferreira Gullar
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Teu nome, em dias felizes,
confiei a um lírio, no chão.
E hoje o lírio dá raízes
em forma de coração!
Humberto de Campos
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Numa despedida amarga,
tenho sempre esta certeza:
o tempo alivia a carga,
mas não carrega a tristeza!
Istela Marina Gotelipe Lima
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A lareira crepitante...
Em vigília... Só nós dois...
Um bom vinho inebriante,..
Quanto delírio depois!...
Ivone Taglialegna Prado
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Se na alma tens a poesia
e esperança no porvir,
partilha tua alegria
e ajuda o mundo a sorrir.
Ivo S. Castro
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Que importa o frio que faça?
Nem compro roupas de arminho...
Tenho agasalho de graça
no calor do teu carinho,
Larissa Loretti
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Minha carta, sonho antigo,
de uma ventura esperada,
puseste, carteiro amigo,
em caixa postal errada!
Lavínio Gomes de Almeida
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Enquanto as trevas se abatem
sobre a noite sem luar,
corações fortes combatem
quem a luz quer lhes roubar.
Luiz Damo
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Você se foi desta vida
e já nem sei o que faço,
sua falta é tão sentida
que soluçando me abraço…
Lygia Ambroggi
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Sou bem nascido. Menino,
fui, como os demais, feliz.
Depois veio o mau destino
e fez de mim o que quis.
Manuel Bandeira
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Solitária… em meu desterro,
sei que de amor nada sei…
E… se te amar foi um erro,
no erro mais certo… eu te amei!
Maria Lua
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0 perdão é sem valia
se não sai do coração:
Luz do sol ao meio-dia
que nem sombra faz no chão.
Marta Maria de O. Paes de Barros
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Tua imagem refletida
no espelho de nosso quarto
mostra a saudade sentida,
que só contigo eu reparto,
Olga Maria Dias Ferreira
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Da música inspiradora
Das “redondilhas maiores”,
faço a trova redentora,
que faz pessoas melhores.
Olivaldo Júnior
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Fui de castelo em castelo,
passei do sonho à magia.
Da viagem, fiz um elo
e do elo fiz poesia.
Paulo Walbach Prestes
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O amor mais puro e mais lindo,
carregado de esperança,
é o da criança sorrindo
brincando como criança!
Professor Garcia
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Grata sou, profundamente,
por ter na vida encontrado
o mais caro dos presentes:
– Bons amigos a meu lado!
Sinclair Pozza Casemiro
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Na vida vivo tentando,
tornar meu mundo risonho,
pois a tristeza vem quando,
existe ausência de um sonho.
Vanda Alves da Silva
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Raio de sol toca um galho,
molda paleta em mil cores...
e com gotinhas de orvalho
pincela arco-íris nas flores!
Vanda Fagundes Queiroz
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Os livros na prateleira
juntam pó e muito saber,
são as traças da carreira
que nos podem mal fazer.
Vasco Taborda Ribas

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 40 –

O bosco tem estado com esse jeito dos tristes - sombrio, silencioso, quase um ausente. As folhas no chão e a umidade do inverno fazem da florestinha uma casa de deserdados. Os pássaros, as formiguinhas, beija-flores, parecem ter abandonado o recanto verde. No entanto, o pulmãozinho do bairro segue respirando. Respirando fundo!

Mas (conjunção legal, faz contrapontos) basta que surja uma manhã de sol em meio à neblina, para que logo a gente passe a ouvir trinados na galharia parecendo vozes sonantes, e a casa da quirerinha vira uma festa, mesmo em tempo de pandemia.

São nuances e contrastes que a natureza proporciona constantemente e nos mostra que somos envoltos em dualidades muitas vezes não percebidas. Das tardes cálidas janeiras, o calendário nos transporta para manhãs de inverno alcandoradas de poesia. Refrigérios para a alma !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Flor de obsessão)

DA JANELA do no meu loft, no décimo andar, a ebulição que escancara os aposentos da moça, que mora na torre frontispicial colada ao meu prédio, um pavimento abaixo, parece ser maior do que aparenta. Talvez em face da distância mínima que nos separa. Um vão quase contíguo. Dona de uma juventude próspera, a moradora chegada recentemente é de deixar qualquer marmanjo à beira de um ataque de nervos. E é assim que me encontro agora. Fora de mim, apatetado, boquiaberto, desde o instante em que a vi transitando através do postigo da sua quitinete em trajes menores.

Meus olhos, esbugalhados e levados pelas tonturas da imaginação, me ajudam a viajar bem longe da terra. Loucura? Sim, pura loucura! Nada mais que isso. Quando ela não está, a sua ausência é sentida em toda parte, nos mínimos detalhes, notadamente dentro de meu coração batendo em desabalados descompassos. Fico me perguntando, como uma estranha com a qual nunca tive nenhum contato, nem troquei sequer um olá, um bom dia, pode fazer tanta diferença ou melhor, como a sua deserção se redundou esquisitamente forte e pujante quando não se afigura por perto?

Desde o dia em que a vi, pela primeira vez, coisa de três semanas, venho me sentindo tomado por uma sensação diferente. Algo ilógico e delirante que mexeu com a minha estrutura, e a faz fraquejar, desde a sua base. Na verdade, invadiu a minha cabeça, a ponto de deixar o meu espírito em franco estado de abnormidade*. Descobri para minha desventura que uma infinidade de pequenos lugares inacessíveis passou a habitar o meu “eu” interior, e que somente os vejo preenchidos, quando ela chega da rua, por volta das oito da noite e inunda meus devaneios e desconfortos com a sua estada marcante e inimitável.

Nessa hora, engano meus propósitos, provoco espasmos, tapeteando a insensatez diante da felicidade que ela irradia. É a partir daí, na ânsia desinquieta da minha carne fraca, que o meu autocontrole sossegado se desmancha num avesso contraditório e se desfaz apressado. Ao vê-la se livrar dos sapatos de saltos (num minuto atrás eles quebravam o tranquilo do corredor), todo meu âmago se atiça em clima de festa. A princesa entra, atira os pisantes e as meias num canto e vai direto para o banheiro. Acende a luz. Puxa a descarga.

Reaparece, matizada, agora, por uma claridade que não se apaga. No quarto, ao lado da King Size espaçosa, torna luminosa uma lâmpada fraca de um abajur e, então, se despe. Matreira, de regresso ao banheiro, traja apenas calcinha e sutiã. Ao vê-la assim, quase sem nada, deliciosa e exposta, calo meus afogueamentos. Abafo meus ímpetos. Ou pelo menos tento.

Não houvesse o vão do fosso existente entre o meu apê e o dela (embora as residências se posicionem quase uma dentro da outra), me atiraria de cabeça, num voo cego e aterrissaria no chão de sua varanda, despedaçado, esfacelado, todavia feliz e realizado por estar ao seu lado. Um Ícaro dos tempos modernos que não aprendeu a usar as escadas e os elevadores.

Enquanto ela se banha, os traços de suas expressões, em meio à água e a espuma, flutuam na minha imaginação. Ao tempo em que passam como um filme, andejo em quimeras levado não só pela intimidade que se estreita, igualmente, por uma orexia* descomedida em devorar, com sofreguidão, cada centímetro da sua venustidade* assediado por uma pretensão candente, e pior, atacado pelas vilanias de todos os pecados aflorando meus nervos em frangalhos.

Enfim, quando ela se devolve ao quarto e atravessa a minha visão, agora nua, a toalha presa aos cabelos, propositalmente a graciosa estanca por breves segundos, diante da abertura do alpendre. Eu, enfeitiçado,  enlouqueço. Torno a sair do meu raio físico. Vou, à mil, ao topo do mundo, e volto saltitante, os nervos pandarecados, querendo escapulir por todos os poros da epiderme.

Meu Deus! Tenho plena consciência de que essas originalidades infantis da minha parte, estão se transformando, pouco a pouco, em anomalias. Entre um anélito* e outro, me pilho tolhido por estranhas sensações de loucura, onde afogos e suplícios cheios de constelações brilham incandescentes diante de meu rosto espicaçado.

Não evito a tortura de me imaginar posicionado com ela, sobre os lençóis, passeando pelos desvãos dos seus recantos perfeitos, devagar e também apressado. De repente, ela se entrega todinha para mim, se acantoa num frêmito de entrega total. Enrodilhada as pernas ao redor de minha cintura, eu a beijo com ternura e carinho.

Divido os minutos que o relógio transforma em comenos eternos. Estamos por fim, ofegantes, os suores embevecidos em uma quentura abrasante, tentando encontrar um ritmo constante no meio de nossos movimentos desvairados. Nessa demência, enquanto confesso impulsos urgentes e desatinos extravagantes, uma sensação de paz toma conta da minha vontade, e me faz sair do real.

Apesar de toda essa magia, no final, tudo não passa de uma versão fantasiosa criada pela neurastenia que se forma em mim e, então, me flagro solitário, vencido, aniquilado, atrelado a um inferno inóspito.

Deprimido, humilhado, esfacelado, os bofes gangrenados a saltar pela boca, as vistas mortas, sem vida, sem cor, envoltas em nuvens que se esgarçam, me petrifico, rés ao chão... meu aspecto, no geral, é o de um desenterrado. Apesar de tudo isso, sigo em frente. Oculto nos bastidores, na coxia que acessa meu palco de sonhos irrefreados, envolto pela cortina, sutilmente eu controlo seus horários. Na retorta de acuradas observações, analiso seus movimentos. Idas e vindas, chegadas e saídas. Sou o Sherlock Holmes diante não de um estudo em vermelho, porém, de uma relação literalmente apedeuta.

Por conta dessa sofomania* incurável, sei dizer com precisão britânica a que horas ela se levanta. O instante em que toma o chuveiro matinal, bem quando se veste e se embeleza para sair para o trabalho. O barulho das vasilhas de café na cozinha, deixa no ar um cheiro forte, misturado a um odor mais robusto e vigoroso: o de sua feminilidade acima de qualquer suspeita. Estou de plantão, sempre, a visão enxuta grudada na sua realeza seguida de um apetite enorme de envolvê-la no meu estado doente-ebulitivo.

Dessa forma inverossímil, bem sei, ela vem me desgastando. Aos poucos, me consumindo. Sem nada seguro para me agarrar, procuro reescrever uma estratégia. Em paralelo, busco me recarregar desopressando os queixumes que me envolvem na doce miragem da sua silhueta ímpar. As convulsões perdidas, contudo, persistem seguir no vácuo, à procura de não sei o quê. Os amigos que me visitam dizem que emagreci. É fato? Sim é real!

A minha transformação para um quadro cadavérico cada vez mais se deprime e se acentua. Por certo o meu desleixo comigo mesmo está patente e cada vez mais acessível. Quase não me alimento. Estou deveras fraco. Me sinto desmantelado, fora do normal, abatido, cansado, deprimido. Novamente vem a noite. As oito em ponto, ela restaura os meus medos, quebra o silêncio sisudo do meu santo sepulcro, e reembolsa as minhas exprobrações, reativa as minhas tantas rebordosas e quantas outras descomposturas.

Uma transformação visceral emana das espiadelas via "voyeurismo" as quais me entrego. Novamente o espetáculo recomeça e se amiúda. Espectador de um dramalhão infindo, acalmo, tranquilizo, pressuroso. Meu cansaço depreciativo deve se juntar a dezenas de tresloucados (ao lado) e acima do meu andar, imersos numa plateia igualmente vastíssima. Assim como eu, inquilinos de outras unidades sofrem do mesmo mal desse amor doido e mentecapto, néscio e disturbado.

Pela fenda entreaberta do náilon do cortinado, eu sigo quieto, calado, espiando. Espreito longamente. Demoradamente, sorvendo cada detalhe. Ela liga a tevê. Não perde a novela das nove horas. Todo santo dia... todo santo dia é sempre uma reprise. A combinação prodigiosa de sua presença (aliada a tantos outros movimentos, toques imperceptíveis, celular a todo vapor, torneira se abrindo, o ruído produzido pela porta do guarda roupas, lembra uma gata no cio, o som do micro-ondas, da lavadora e secadora de loucas, da máquina de lavar roupas).

Meu Deus do Céu! Tudo concorre desordenado para uma repetição que se renova sem cair na rotina enervante da mesmice. É no enjoo do monótono que surge algo alcandorado*  permitindo que portas aldravadas se escancarem para prazeres ainda não experimentados. Concluo, sem mais delongas, ela, a minha vizinha espalhafatosa  é, sem dúvida alguma, o meridiano ideal que atravessa meu peito e atinge meu ponto mais frágil. A matriz que me renova a manhã para um porvir de florestas e corais tecidos no sobrevoo de uma Esperança longínqua que a bem da realidade, apesar dos pesares, sei, de antemão, nunca chegará ser minha.
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*Vocabulário (Dicionário Eletrônico Houaiss)
Abnormidade = anormalidade.
Alcandorado =situado em ponto alto, elevado.
Anélito = grande aspiração, desejo ardente.
Orexia = desejo, apetite.
Sofomania =confiança exagerada e extravagante na própria sabedoria.
Venustidade = atributo do que é venusto, de grande beleza, graça, elegância; formosura.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 9

 

A. A. de Assis (Ser com os outros)

Viver é uma graça, con-viver é graça imensamente maior. “Não é bom que o homem esteja só”, ensinou o Criador na inauguração do paraíso. “No man is an island” (nenhum homem é uma ilha), adicionou o poeta John Donne. Ser com os outros. Porque sem os outros não somos.

Em tudo e para tudo somos interdependentes. Sirva de exemplo isto que estou fazendo agora, dez horas da noite. Esta crônica não tem um autor, tem coautores. Senão vejamos: se escrevo, é porque aprendi a escrever com alguém, desde minha primeira professora até cada uma das pessoas que, de algum modo, me ajudaram a conhecer as letras, formar palavras, frases, organizar ideias.

É também porque alguém inventou a máquina de escrever, depois alguém criou o computador. Alguém me ensinou a datilografar, digitar, colocar o escrito no papel ou na tela.

Até chegar a você, meu texto passará por não sei quantas ferramentas postas à minha disposição por não sei quantos profissionais. Se pela internet, chegará mais rapidamente. Se pelo jornal, passará pelo editor, pelo paginador, pelo impressor, pelo correio, pela banca de revistas, pelo entregador, e só terá razão de ser se você completar a operação como leitor.

Uma lâmpada (sem a qual eu agora estaria no escuro) ilumina a sala onde me encontro escrevendo. Do inventor da lâmpada a todos os que a fizeram chegar até aqui, muita gente trabalhou em meu benefício.

E ainda há os que construíram a hidrelétrica de onde vem a energia, e todos os que, neste instante, realizam algum serviço a fim de garantir a presença da luz neste ambiente. Não posso imaginar quantos estão me ajudando.

As próprias energias do meu corpo são devidas a não sei quantas pessoas. O pão, o leite, o feijão, o frango, a salada, o arroz, as frutas, tudo o que comi e bebi hoje foi produto do trabalho de gente que nem conheço. E acrescentem-se os que fabricaram os remedinhos indispensáveis a pessoas da minha idade. Sem isso eu não poderia estar escrevendo.

Alguém fez também esta cadeira em que estou sentado, a mesa em que estou trabalhando, a roupa que estou vestindo, os óculos que me facilitam a visão, os chinelos que me protegem os pés, o copo em que acabo de beber a água que alguém fez chegar à minha casa. Isso sem falar de todas as gentilezas que recebo de minha família em todas as horas.

Viver é uma graça, con-viver é graça imensamente maior. Eu não sou. Você não é. Nós somos. Todos nós somos, cada um ajudando cada outro a realizar seu papel na história. Deus quer assim, para que vivamos fraternalmente.

Quantas pessoas nos deram as mãos para que chegássemos a esta altura da vida em condição de continuar fazendo algo de útil pelo bem da humanidade?
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 09-12-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita: Narrador e foco narrativo)

Muitas vezes confundimos os conceitos de narrador e foco narrativo (ou ponto de vista).

O narrador é quem conta a história, podendo ser, grosso modo, em primeira pessoa (narrador definido) ou em terceira (indefinido). Já o foco narrativo é em quem a narração está centrada.

Um texto costuma ter um único narrador, com mudança de capítulo quando há troca. Já o foco narrativo pode variar de uma cena para outra, e é possível inclusive que haja mais de um foco narrativo na mesma cena (imagine uma briga de casal, por exemplo).

Quando o narrador do texto é em primeira pessoa protagonista, narrador e ponto de vista se confundem, pois na maior parte da história o ponto de vista será o do narrador.

Já quando o narrador é coadjuvante, como em Sherlock Holmes, o ponto de vista varia e o autor precisa ter tanto cuidado quanto nos casos de narrador em terceira pessoa.

No caso do narrador em terceira pessoa é quando a diferença entre os dois conceitos fica mais clara. Imagine que em um filme o narrador seja a câmera, ela (ou quem está filmando) é que conta a história. Mas quem a câmera acompanha? Esse é o ponto de vista.

Confira um exemplo curioso, o curta-metragem Feast (https://www.youtube.com/watch?v=xS4Bq37EtGI), em que a história de um casal é contada a partir do ponto de vista de um cachorro.

Note que o narrador não é o cachorro. O narrador, pensando em conceitos de escrita, é em terceira pessoa. Mas toda a narração é do ponto de vista do cachorro, então tudo o que o espectador irá ver é o que o cachorro está vendo (não sabemos, por exemplo, o motivo da briga do casal ou como se conheceram).

Vale lembrar aqui o conceito de onisciência do narrador. Quando o narrador sabe o que determinado personagem sente ou pensa ou lembra, é porque o foco narrativo está nele. Daí a importância de preferirmos narradores oniscientes seletivos a oniscientes.

Por fim, cuide para não usar focos narrativos demais em uma cena, sob o risco de deixá-la confusa. E procure mudar de parágrafo a cada vez que mudar o foco narrativo, a não ser que haja uma alternância proposital e funcional dentro da cena (como no exemplo da briga de casal).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 23: Padre Celso de Carvalho

 

Benedita Azevedo (A outra margem do rio)

Cresci às margens do rio e nele encontrei um amigo, um companheiro de todas as horas. Tudo ali girava em torno de suas águas vivificadoras. Elas alimentavam todos os seres: animais, vegetais, minerais e à minha imaginação, desde cedo, ilimitada, obra do criador.

Logo ao nascer do sol, a neblina que se estendia por todo seu leito, em meu campo visual, da minha casa à curva distante do rio acima, me envolvia e tornava-me parte daquele mundo de sonho infantil. À medida que o sol se erguia e as águas do rio emergiam daquele mundo leitoso, em suave deslizar, em crespas correntezas, com remansos aqui e acolá, eu também ia acordando para o dia e para a vida.

As tarefas diárias começavam ali, às margens do meu rio. Sempre acompanhada de algum adulto, eu nadava, primeiro com as mãos apoiadas ao fundo, perto da margem esquerda, onde morávamos. De uma hora para outra me soltei e fui além, sob o olhar cuidadoso de quem me acompanhava. Recebi orientação de que, aquela beleza superficial do rio, poderia tornar-se perigosa, caso nos aventurássemos sozinhos, sem conhecer os segredos de suas entranhas, e, assim como podia alimentar toda a cadeia da vida, também poderia matar.

Tomando consciência, à medida que crescia, procurava conhecer melhor os segredos das águas e como navegá-las com segurança. A cada dia, vibrava com os avanços conquistados. Não satisfeita em conhecer os segredos e tomar intimidade com meu rio, resolvi atravessá-lo.

Do lado esquerdo, onde morávamos saí, e, à medida que eu avançava, as águas iam se aprofundando. Olhei para traz, percebi que estava a um quarto da distância total de uma margem a outra. Parei já com água ao pescoço. Prosseguia ou voltava? Minha curiosidade era maior. A correnteza tornara-se forte, precisei muito esforço para não me deixar levar. Sabia que a partir daquele ponto precisaria nadar com meus próprios braços e pernas.

Respirei fundo, e me pus em movimento. A correnteza era muito forte e tive medo de não conseguir. Estava a meio rio. Olhei a margem oposta à que morava e achei muito distante de onde estava. Perscrutei um ponto bem abaixo, em relação à margem esquerda, de onde saí. Não me parecia ter nenhum obstáculo. Já estava cansada. Resolvi boiar e nadar tipo cachorrinho, sem me debater contra a correnteza. Consegui respirar e me acalmar. Cheguei à outra margem, bem distante do local onde planejara. Saí da água, sentei-me sobre a tabatinga e ainda ofegante, olhei a minha margem do rio.

As casas entre as árvores desapareceram, inclusive a nossa, ficando à mostra somente parte do telhado. Parecia-me, agora, desnuda, com vários pontos de erosão em meio às plantações dos ribeirinhos. Dali, eles tiravam o sustento, hora plantando, ora pescando. Viviam daquela rotina e os filhos seguiam-lhes os passos. Provavelmente, poucos conheciam o outro lado.

Levantei e andei rio acima, a realidade circundante era totalmente diferente daquela que imaginava, vistas através da neblina matinal e o fogaréu do por do sol em cada outono. O sol brilhando na tabatinga, a areia branquinha num triângulo formado pela foz de um riacho cheio de peixes que desaguava no rio, em suave marulhar. Senti um arrepio ao contato da água fresquinha, nas pernas, ao atravessá-lo. Mais à frente, as mangueiras que me pareciam mata fechada, à visão da outra margem, agrupavam-se deixando os raios do sol alcançar o chão repleto de frutas maduras e cheirosas. Colhi uma e fui degustando enquanto caminhava rio acima. A certa altura, percebi que a diferença de um lado e outro era muito acentuada. Apurei minha atenção e vi detalhes que não conhecia do meu lado do rio. A esguia palmeira por trás do telhado alongava-se rumo ao céu azul e o sol matinal, ali próximo, brilhava em reflexos multicores distribuindo a energia que me dera condições de ali está, do outro lado do rio, em deslumbrada admiração.

Perambulei um bom tempo em variadas direções. Descobri tanta coisa que ainda não conhecia e, principalmente, a beleza e energia do sol matinal, vista de frente, do outro lado do rio.

Aprendi que nem sempre as coisas são como parecem. Que precisamos enfrentar a correnteza, mas, não nos deixar levar por ela. Nadando sempre em frente calcular os perigos, boiar e sem cansaço ou medos, seguir até a outra margem, aprendendo a transitar de um lado a outro com segurança.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 7

AFETOS  INOCENTES


Não preciso te mostrar... tão amorosa...
Para quem fique infeliz com a alegria
Luminosa que celebra a fantasia
De quem sabe cultivar botões de rosa.

Nosso muro de amor guarda um jardim...
Beija-flores já nos bastam... polinizam
Nossas cores indeléveis que harmonizam
Esse amor que mora em ti e habita em mim.

Já não somos como dois  adolescentes,
Mas a nossa  sublime felicidade
Sempre brota com a pureza das sementes

Que eclodem frágeis, porém resistentes
E mesmo ante a dor de uma adversidade,
Nossos sonhos são afetos inocentes.
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A MAGIA DA PRESENÇA

A nossa triste solidão mais egoísta
tira da lista os amigos mais fiéis...
É sempre assim que a gente perde o que conquista,
pois nossa lista passa a ter poucos viés.

São tão cruéis as solidões propositais,
Tiram a paz de quem escolhe o abandono
e ter um pouco só de amor nunca é demais,
porque a dor é que nos faz perder o sono.

Por mais que a voz chegue gritante ou digitada,
nunca diz nada, comparada à  companhia,
porque a magia da presença inusitada

é iluminada  pelas cores fraternais
que são capazes de enfeitar de fantasia,
essa alegria que nos torna tão... iguais.
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APENAS ISSO...

Mais que nunca, somos seres tão pequenos
Ante tudo que é  divino que Deus faça...
Todos buscam, do Senhor, alguma graça,
Preocupando-se  com  bens fúteis, terrenos.

Só vaidade - alguma vezes necessária
À  tristeza ante a cara no espelho...
Xô, Narciso ! Grita alguém... mas o conselho
É repleto de uma inveja tão... hilária...

Precisamos de amparo... apenas isso!
...que é  tão fácil... basta somente  um abraço
Ou palavra...um olhar afetuoso,

Ou carinho que  se dê... sem compromisso
Com  emoção, quando o amor tornou-se escasso,
num silêncio que ainda grita... de teimoso.
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DOM QUIXOTE DE MIM MESMO

Dom Quixote de mim mesmo, cruzo a  estrada,
Sancho Pança não é mais meu escudeiro
Percebeu, na minha saga tresloucada,
Que um moinho não agride um cavaleiro,

Sou poeta, minha pena é minha lança,
Minha espada, meu escudo e armadura,
Sigo o sonho e onde minha vista alcança,
O amor move a esperança... com ternura.

Meu enredo é  muito  simples: sou herói
De mim mesmo, busco ser original
E até quando uma dor qualquer me dói,

Faço dela uma nova alegoria,
Onde ponho o meu sonho ideal
E transformo  um Dom Quixote... em poesia.
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MIOPIA DE POETA

Um poeta enxerga a vida como a Lua,
Olha os homens, quando a noite é mais escura...
A ternura de um olhar na face nua
Faz brilhar o outro olhar que se procura.

A nenhuma criatura interessa
Pôr as peças na engrenagem da razão,
Porque, quando um coração não se confessa,
Ele mostra o quanto é livre a emoção.

Um poeta tem miopia, quando sonha,
E é no verso, mais lírico que ele componha,
Que repousam os olhos de um sonhador

Entretanto, se ele enxerga a fantasia,
Seu sonhar brinca de amar com a poesia
E extasia a sensação do próprio amor.

Milton S. Souza (Jesus Noel)

Jesus Cristo resolveu dar uma chegadinha na terra para ver de perto como estavam comemorando a data do seu nascimento. Com aquela mesma roupa simples que ele caminhava nas margens dos mares da Galiléia, apareceu numa cidade grande exatamente naquele dia que antecedia o Natal. Seus olhos claros, acostumados a refletir todos os tipos de luzes, chegaram a ficar doendo com a intensidade das iluminações natalinas. Mas ele logo se acostumou. E resolveu dar uma caminhada para saber como as famílias estavam se preparando para a festa.

Arrastando as suas sandálias pelas ruas, Jesus bateu em várias casas. Mas logo que os moradores divisavam o seu rosto barbudo e avistavam as suas roupas simples, nem esperavam que ele falasse: já iam dizendo que não tinha nada para dar de esmola e mandando que ele viesse outro dia. Jesus nem conseguia passar as cercas de grades. Ninguém abria o portão. Em algumas casas, ele teve mais sorte: trouxeram um prato de comida e estenderam para ele através da cerca de ferro. Alguns até desejaram feliz Natal, mas sem se aproximar muito. Jesus caminhou pelas ruas, sem nada conseguir, até perto da meia-noite. Foi então que aconteceu um milagre que abriu todas as portas para o Filho de Deus...

Nem parecia milagre: Jesus estava caminhando numa calçada quando um homem, nervoso, perguntou se ele não queria ganhar alguns trocados sem trabalhar muito. O homem disse que não aparecera o Papai Noel que ele havia contratado para entregar os brinquedos dos seus filhos. E pediu para Jesus vestir a roupa de Papai Noel e fazer a entrega. Ele pagaria. Jesus aceitou. Vestiu a máscara e a roupa vermelha e, milagre dos milagres, conseguiu entrar em uma luxuosa casa.

Depois de entregar os presentes, mesmo não tendo muita prática na profissão, Jesus foi saindo da casa, juntamente com o homem, que tentava pagar pelo trabalho. Jesus, ainda fantasiado, disse que não precisava de dinheiro. O homem, então, fez a seguinte proposta: “Quem sabe tu ficas com esta roupa de Papai Noel. É bem novinha e tu pode vender e fazer algum dinheiro com ela”. Jesus aceitou. E, sem tirar a fantasia, voltou a caminhar pelas ruas. Os foguetes de Natal já estavam começando a explodir...

Pois foi exatamente a roupa vermelha e a máscara que abriram novas portas para Jesus. Muitos diziam “Entre, Papai Noel”, “Venha jantar conosco, Papai Noel”. E Jesus recebeu centenas de abraços e votos de feliz Natal. Sem entender bem o que estava acontecendo, Jesus foi saindo de fininho. Logo que sentiu que ninguém estava olhando, tirou a roupa de Papai Noel e voltou a caminhar pelas ruas, agora sem ser notado por ninguém. Enquanto voltava para o seu céu, onde as estrelas cintilavam alegres para aplaudir a sua chegada, Jesus tomou uma decisão: “Acho que vou começar a festejar o meu nascimento em outra data. No Natal não dá mais. Todo mundo festeja somente o nascimento deste tal de Noel, que eu nem lembro direito quem é...”.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Adega de Versos 63: Maria do Rosário Bessas

 

Sammis Reachers (A garganta do Topete)

Sim, essa é outra história de nosso querido Paulo Paixão, o homem que vive em apuros.

No tempo de Fagundes, Paulo fazia o chamado turno duplo. Após a primeira pegada ou etapa, os carros eram levados para a Ilha da Conceição, em Niterói, onde se localizava uma garagem de apoio da empresa.

Bem, diversos motoristas largavam ao mesmo tempo, e juntos se dirigiam para o bairro de Ponto Cem Reis, onde pegavam o ônibus para a garagem do bairro Laranjal, em São Gonçalo, para prestar conta da féria arrecadada.

Pois lá foi o Paulo, junto a diversos cobradores e motoristas, dentro de um ônibus da linha Apolo x Niterói. Naquela hora da manhã, só haviam leões (rodoviários) dentro do ônibus. Paulo sentou-se num dos bancos da frente. Do outro lado do salão sentou-se o motorista Márcio, conhecido popularmente como Topete.

Falador, Topete logo sacou um enorme celular, e começou a contar vantagem:

- Tá vendo esse celular aqui, Paulinho? Achei ontem! Olha aí, que pancadão! Bluetooth, WiFi, autofalante potente.... Fui ver nas Casas Bahia: um celular desses custa uma grana, mano!

Realmente o celular era, à época, de último modelo, com todas as melhores funcionalidades que a tecnologia permitia. Paulo apenas observava, em silêncio.

Pois então eis que, aproximando-se o veículo da altura do bairro de Novo México, se levanta um indivíduo que estava sentado logo no banco grande lá da frente, até então apenas ouvindo a história que estava sendo contada às suas costas. Ele olha para Topete e Paulo, saca uma arma e aponta para... Paulo.

- Você aí! Perdeu, mané! Me passa o celular de que você tá falando aí!

Paulo, pego de surpresa, ainda tentou argumentar, ao perceber que o ladrão imaginara ser ele quem falava do tal celular:

- Eu? Mas meu celular é velhinho e está com defeito...

O malandro não acreditou e apanhou o celular que Paulo apresentou.

- O dinheiro, agora me dá o dinheiro!

- Mas eu não tenho dinheiro. Eu sou motorista e trabalho com cobrador, e não fico com o dinheiro.

Enquanto todo esse diálogo transcorria, o presepeiro do Topete já havia escondido seu poderoso celular. Vendo que Paulo não tinha mais nada para perder, e satisfeito por ter ganho o celular, o malandro puxou a cigarra (campainha) e desceu no ponto do Novo México, sem roubar mais ninguém, deixando para trás alguns passageiros bastante assustados.

Quanto ao sacana do Topete, ele ria baixinho, feliz por o indivíduo ter confundido o Paulo com ele. Já o nosso querido Paulo, lendário sofredor que, de "bucha", perdera seu velho Motorola "tijolão", estava desconsolado...

Só mais um detalhe: O celular de Paulo, que o malandro levara achando tratar-se de um último modelo, além de velho, estava com defeito: o miserável só falava no viva-voz.

Pobre Paulo. E pobre ladrão.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Olivaldo Júnior (Cristais Poéticos) = 3 =

ALMA LIVRE

Livre, a alma sopra onde quer,
seja homem, seja mulher,
como se fosse uma bolha
e tivesse a própria escolha
uma outra forma de ser.

Sou como Deus manda,
ou como roda a ciranda,
que giramos todos na mesma
indefinível roda da vida,
que viver é que é mesmo preciso.

Preciso ser livre, penso,
mas meus pés por vezes
têm chumbo nos vãos
dos meus dedos e, doido,
doído, dolorido, vão,
me perco da própria mão,
desvãos.

Livre, a alma sopra, mas
nem sempre supre
o que lhe cabe suprir.

Suprassumo de mim,
sem perder minha essência,
descubro isso enfim:
que sempre fui essencial...
para mim.
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CARRO DE BOIS

Para o artista plástico Paulo Reis


Foi no meu carro de bois
que passei a minha vida,
sem pensar no que depois
iria vir: a partida.

A partida é quando rangem
minhas pálpebras de dor,
inda que muitos não manjem
ao me verem todo em cor!...

Lá no meu carro de bois,
éramos minha alma e eu
como se fôssemos dois...

Como se fôssemos reis
de uma estrada que cresceu
das tintas de suas leis!
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NÃO PERTURBE
(or Do not disturb)


Não, amor, não me perturbe.

As estrelas já se achegam
e se fazem de colchão
para os meus ossos,
tão cansados de esperar
a mais pura e fluida
água dos seus poços...

Não, amor, não me perturbe.

Essa noite é uma criança,
e eu sou feito um sacizinho,
que, distante do seu bando,
nada faz senão, sozinho,
pitar seu cachimbo
e chorar.

Não, amor, não me perturbe.

Sem notar o seu reflexo,
mirando a mim mesmo
nas águas de tanta ilusão,
"narcísico" ao extremo,
me encanto com a flauta
nada mágica da razão
e raciono-me a poesia,
o encantamento
a que teria direito.
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UMA LUA DE PRESENTE

Para a amiga Patrícia*


De presente, no quintal da minha amiga,
uma lua se insinua e lhe pergunta
onde é que anda o seu amigo, onde fica
a casa dele, e faz que não assunta,
mas assunta, só pra ver se ela lhe conta
onde é que mora quem faz de conta
que o amor não conta, mas conta muito
para ele.

Para ele, que foi passarinho em outra
encarnação, em outra forma de ser,
em outra vida, em outra página, outra
história a ser escrita com seu viver...

A lua, lá no céu, de presente, sorri,
se insinua um pouco mais e pede
que minha amiga lhe diga se ali,
onde há pouco ele esteve, é que
ficou seu rastro poético,
seu rastro de estrelas,
o que todo bom poeta
deixa ao entrevê-las,
ainda que nem saiba,
ainda que nem caiba
em sua própria órbita.
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Poema escrito a partir de fotografia enviada por Patricia de Campos Occhiucci

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UMA ORQUÍDEA COMO AQUELA

Para a amiga que me mandou a foto de sua orquídea cattleya


No quintal daquela amiga,
com a cigarra e a formiga,
entre várias borboletas,
ou monarcas, ou plebeias,
uma orquídea cattleya
espreita o dia.

Espreita o dia,
que é feito a rósea poesia
de suas pétalas,
artimanhas poéticas
para ver se algum inseto
vem ter com elas
seu colóquio amoroso,
honra aos poetas.

Não, o quintal dessa amiga
não é uma floresta tropical,
mas guarda um ar especial
para que uma flor que intriga
seu sonho enfim prossiga
e se mostre, gloriosa, linda,
no quintal daquela amiga!

Fonte:
Poemas enviados pelo autor.

Isabel Furini (O Natal de Antônia)


Éramos vizinhos. Morávamos no bairro Portão, em Curitiba. Ninguém tinha família por perto. Ocupávamos um predinho de três andares. Pintura amarela escancarada. No térreo e no primeiro andar, lojas, e no segundo andar, quitinetes de vinte metros quadrados enfileiradas ao longo do corredor externo, mal iluminado. Os moradores eram um espetáculo digno de menção, a começar pelo Zé Cervejinha, todo mundo o chamava assim, ninguém lembrava o seu verdadeiro nome. Zé Cervejinha ganhou esse apelido porque nunca ficava feliz com uma garrafa. E antes das 23 horas lá vinha ele, subindo as escadas vagarosamente, com os olhos apertados, a camisa desabotoada e um bafo insuportável. Atravessava o corredor cambaleando, mal conseguia colocar a chave na fechadura. Às vezes era auxiliado pelo Yoga (assim chamado porque era praticante). Ninguém lembrava o seu nome, para todos era Yoga. Sua quitinete cheirava a incenso. Só sabia falar de espiritualidade. Não era má pessoa, não. Sua irmã, Dalmira, que ocupava a quitinete úmida e escura do final do corredor, essa sim era mais perigosa do que cascavel. Uma língua afiada. Ela decidia. Ordenava. Controlava.

Na outra quitinete, Luciano, um moreno simpático que estava doente. A quitinete cheia de plantas era de Ramona, a velha setentona que havia se esquecido de morrer, como todos diziam. Sempre vestia blusas estampadas de cores berrantes e saias indianas para fingir alegria e descontração. Coitada! Nunca escutara um “eu te amo” na sua vida. Nunca fora esposa, nem mãe, nem sequer noiva. Os pais morreram e ela ficou sozinha, sem profissão, sem família, um eterno lamento. Ela dizia que a depressão não a abandonava, o problema real era que ela se sentia tão sozinha que não abandonava a depressão. Na quitinete contígua, duas lésbicas pareciam felizes. Eram muito prudentes, quase não falavam com ninguém.
               
Nas duas quitinetes maiores, dois vizinhos que não participaram da festa: a viúva – com seus cabelos que chegavam até a cintura e sua saia que nem deixava ver os tornozelos – enfatizou que não celebrava o Natal porque era festa pagã; e um advogado obeso e fracassado, que foi passar as festas no litoral.

E nesse Natal nos reunimos. Estávamos todos sozinhos, menos as lésbicas, é claro. Elas tinham muitas amigas para festar. Somou-se à trupe estranha a ruiva sardenta. Era muito alta e esquelética. Havia nascido em Matinhos, mas morava em São Paulo, comprou a quitinete para relaxar da cidade grande nos feriados. Tentava vender imagem de triunfadora. Enganou, a princípio, mas em pouco tempo os vizinhos foram notando que a triunfadora que havia morado em Nova York e havia voltado ao Brasil buscando seu próprio lugar, não era assim tão triunfante.  O cabelo vermelho fogo não dava para confundir com o natural. Tinha cara de ratinho assustado, e toda sua pose de mulher livre e soberana não conseguia esconder. Dizia ter dezenas de amigos, reconhecimento profissional e homens querendo casamento. Papo furado! Em um final de semana chegou com um rapaz um pouco mais jovem do que ela. Cara de safado. Ninguém gostou dele. Cheirava a trapaça. Só veio uma vez. Cansou-se rápido da tranquilidade do bairro. E a pobre ruiva voltou a ficar sozinha com seus sonhos.

E nesse Natal nos reunimos. Zé Cervejinha, Delmira, Yoga, a velha Ramona, Luciano, as lésbicas, a ruiva e eu. O Yoga ficou encarregado das compras, era um constante ir e voltar do mercado. No forno da Delmira, um leitão. A velha cozinhava um peru. A ruiva se dedicou a preparar saladas exóticas e arroz. As lésbicas fizeram várias sobremesas. Eu, que sou uma nulidade para a culinária, ajudei a descascar batatas e a cortar tomates.

Os homens colocaram as mesas, com toalhas muito brancas, enfileiradas no longo corredor e, entre uma cervejinha e outra, encheram os balões coloridos que foram pendurados no teto. A ruiva colocou uma árvore de Natal pequena, carregada de enfeites sobre um banco de madeira, no final do corredor. Por fim, tudo ficou preparado para a festa. Cada um trouxe sua cadeira e sentamo-nos, sorridentes, ao redor das mesas. Apesar do leitão bem dourado, do peru – com as asas torradas – das saladas com molhos desconhecidos, das cervejas, dos refrigerantes, das piadas, dos risos, cada um de nós cheirava a naftalina e a solidão. Era como se estivéssemos num barco à deriva. Água por todos os lados. Só céu e água. Marinheiros em um mar inacabável, parecia que seríamos engolidos pelas ondas das lembranças. Delmira alternava as críticas, ora criticava o primeiro marido, ora o segundo. Yoga pronunciava frases bonitas, Zé falava das festas no Rio de Janeiro e da ex-esposa que tinha um amante, a velha tinha o olhar sem vida, Luciano queixava-se de dor na coluna vertebral, a ruiva tentava manter a pose... com sua carinha de rato.
               
De repente os fogos de artifício preencheram o céu de cores. Todos nos levantamos das cadeiras, alguns ficaram apoiados na varanda. E eu olhei o céu e vi essa cascata vermelha, azul e laranja, linda. Lindíssima! Depois desci os olhos para olhar essa trupe vagabunda. A solidão dançava sobre nossas testas. Estávamos reunidos e cada um de nós estava sozinho, segurando-se nos destroços do barco – uma madeira, um pedaço de convés, um fragmento de armário, a perna de uma mesa. Tentávamos nos manter flutuando. O barco havia naufragado. Estávamos reunidos nesse Natal e éramos um grupo de náufragos arrastados pelas correntes do viver. O Natal já não mais renovava os sonhos. Havia perdido sua magia.

Jaqueline Machado (O sentido do Natal)

O termo Natal tem origem na palavra do latim “natalis” que, por sua vez, é derivada do verbo nascer (nāscor). O Natal representa o nascimento de Jesus e, também, o nosso próprio renascimento. Renascimento de todos que desejam dissipar mágoas, vícios e tristezas para vivenciar uma nova jornada, cheia de luz e de esperança.

O Natal teve origem em festas pagãs da antiguidade, onde muitos romanos celebravam a chegada do solstícios de inverno e cultuavam o Deus Sol, que no sincretismo das culturas religiosas atuais, simboliza Jesus Cristo para os seguidores do cristianismo e o Orixá Oxalá, na fé umbandista.

A escolha da data foi determinada pelo Papa Julius I (337-352) e, mais tarde, foi declarada feriado nacional pelo Imperador Justiniano, em 529.

O natal, também é sinônimo de muitos simbolismos. O principal deles é o presépio que foi montado pela primeira vez por São Francisco de Assis, no  século XIII, na Itália, com a intenção de recriar a cena do nascimento de Jesus para explicar ao povo como e onde teria nascido o messias. Já o simbolismo do pinheiro enfeitado, foi idealizado por Martinho Lutero, o principal personagem da Reforma Protestante, que montou a primeira árvore iluminada de luzes em sua casa. A figura do natal é inspirada no bispo São Nicolau que costumava deixar moedas próximas às  chaminés das famílias mais pobres. São Nicolau se tornou popular e deu lugar ao aspecto que hoje conhecemos do Papai Noel, que em vez de moedas, deixa presentes às crianças que se comportam bem ao longo do ano. E a Santa Ceia teria surgido na Europa, onde as pessoas costumavam deixar a porta das suas casas abertas para receber viajantes.
    
Ela simboliza a união e a confraternização das famílias. Assim, na véspera de Natal, os familiares se reúnem à mesa para a tradicional ceia.

Essa data também faz lembrar a mensagem trazida pelo livro de Charles Dickens, o famosíssimo “Um Conto de Natal” que conta a história de  Ebenezer Scrooge, um homem de negócios, egoísta, avarento que não se relacionava bem com ninguém, e não gostava das festividades natalinas, até que certa noite, ele recebe a visita do fantasma de seu falecido sócio, Jacob Marley, que avisa ao antigo amigo que outras três assombrações aparecerão para ele: o Espírito dos Natais Passados, o Espírito do Natal Presente e o Espírito dos Natais Futuros. Segundo Marley, o ex-sócio, esses três fantasmas são a única esperança para Scrooge escapar do terrível destino que está reservado para ele.

Os espíritos chegam sucessivamente e levam o velho ranzinza a uma viagem pelo tempo e pelo espaço, com a intenção de fazer com que Scrooge mude sua opinião sobre o Natal depois de ver exemplos de amor e a família dele e a de um seu funcionário comemorando a data com muita simplicidade e união entre si. Depois disso, ele passa a valorizar o que realmente vale a pena na vida. A partir desses eventos, o velho torna-se bom e passa a praticar ações solidárias entre todos que dele se aproximam. Pois o sentido do natal é justamente esse, renovar-se, espalhar amor e alegria.

Salve essa doce magia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Varal de Trovas n. 540

 

Lima Barreto (Fim de um sonho)

Foi mesmo um sonho, mergulhado no qual vivi cerca de três meses, meu caro. Durante eles, sonhei dia e noite. De dia, então eu nada percebia com nitidez. A luz do sol, dura e crua, me era estranha, feria-me, fazia-me mal. Discernia com dificuldade as fisionomias e as coisas. Eu me havia transformado em um animal noturno muito especial que só pode viver em luz elétrica. Só, sob incidência dessa luz artificial, é que o mundo das coisas e dos entes saía, para os meus olhos, da bruma, das trevas, da hesitação de formas; fora daí, houvesse o mais radiante sol que houvesse, tudo era pastoso, turvo e mal tomavam corpo e figura as vidas e os objetos.

Erguia-me sempre tarde, porque me deitava alta madrugada. Vinha para casa em automóvel que o clube punha à minha disposição. Metia-me no quarto da pensão chique, que era hermeticamente fechado como convém a essas pensões, e arejado astuciosamente pelo rodapé e pelo teto. Dormia até às três horas, tomava banho e almoçava quando os outros iam jantar. Saía à boca da noite, fazia horas pelos botequins até ir jantar num restaurante do centro e, depois, encaminhava-me para o clube, o lindo “Incroyable-Club”, decorado luxuosamente, com um luxo e gosto nem sempre de grande aprumo, mas que a profusão de luz elétrica, derramada aos jorros, fazia suntuoso e maravilhoso que nem um palácio de Mil e uma Noites.

Nunca vira aquilo tudo; e embora, por conhecer alguma coisa de arte, detestasse as duvidosas pinturas das paredes, gostava, entretanto, das mulheres que não me pareciam ser tão artificiais assim. Em começo, fazia o meu serviço, bebendo cerveja; por fim, champanhe; e, afinal, travei conhecimentos com cavalheiros amáveis. Eram todos estrangeiros e chamavam-se: Wassíli Alexandróvich Sóbonoff, engenheiro russo, de grande capacidade em coisas elétricas, emigrado de sua pátria, por causa do “Soviet”, e contratado para dirigir uma poderosa usina de produção elétrica em Mambocaba, a fim de extrair mecanicamente turfa*, que abundava naquela localidade, e beneficiá-la também.

O outro era dinamarquês ou tcheco e só o conheci pelo nome de Peteo. Pretendia servir-se de um pouco da força da usina de Wassíli, para obter matérias corantes dos resíduos da turfa deste; e o terceiro era o barão de Hermeny, magiar* com muitos quarteirões de nobreza, descendente de santo Estêvão e não sei quem mais. Corria mundo enquanto não se restabelecia o trono do seu augusto e santo avô, para então retomar os seus cargos e as suas fartas rendas.

Nunca conheci cavalheiros tão amáveis e educados. Sempre corretamente vestidos, injuriados discretamente, conversavam comigo sobre todos os assuntos com conhecimento profundo de causa. Sabiam todo o movimento político do mundo e as suas previsões eram sempre seguras. Desde que os conheci, nunca mais paguei champanhe nem ceias. Para estas, eles traziam variadas damas que lhes falavam numa geringonça arrevesada que mesmo não sei que língua era. Eu ficava babado diante daquelas beldades, daqueles colos azuis que nos são pouco familiares e daqueles rostos polpudos, daquelas sobrancelhas negras a poder de ingredientes, daquelas orelhas cheias de bichas e daquelas ancas... Por momentos, vendo aquelas mulheres, aquelas luminárias, aqueles tapetes, aqueles jarrões com pequenas palmeiras, esquecendo as figuras das paredes, eu me julgava um sultão ou pelo menos, um aprendiz desse ofício, mas que já podia tirar o lenço...

Um dia saí com o barão húngaro e convidei-o para tomar o “meu” automóvel. Quando ele ia entrar, chegou-se um sujeito, apresentou-lhe uma carteira e disse-lhe:

— O senhor está convidado a ir à Polícia Central.

O barão não relutou e respondeu galantemente:

— Deve ser algum engano. Vamos.

Depois, dirigindo-se a mim:

— O doutor me desculpe... As autoridades brasileiras ainda não estão bem informadas de quem sou...

— Quer ir no “meu” automóvel?

— Não! Seria incomodá-lo. Vou mesmo num táxi aqui com o senhor — disse, voltando-se para o agente.

No dia seguinte, soube que o tal barão era um terrível ladrão de bancos que a polícia do Chile perseguia, por ter roubado, com grande audácia, a um de Santiago, em cerca de cento e cinquenta contos. Não era húngaro, como se intitulava: era rumaico ou coisa que o valha.

Continuei, porém, no meu sonho de nada pensar de sério na vida. Quase não lia jornais; livros e revistas esperavam que lhes apontasse as páginas, em cima da mesa; não respondia às cartas ou mal as respondia, às pressas. Que mais queria? Tinha encontrado, ao mesmo tempo, os “Campos Elísios”, o “Éden”, o “Paraíso” cristão e o de Maomé. O clube de jogo juntava-me tudo isto no meu sentir e para o meu gozo. Vivia num arrebatamento deste mundo, fora dele e das suas coisas triviais, num encantamento divino... Que delícia!

— Como acabou, meu caro? — perguntou-lhe o amigo que o ouvira calado até aí.

— Uma noite destas, fui para o serviço do Club, como de costume, e o porteiro, logo à entrada, me avisou: “A ‘casa’ fechou doutor. A emenda do senador Sá foi avante: não há mais jogo”.

Não quis subir, pus-me na rua e acendi o último dos “havanas” que o tal engenheiro russo me havia dado, na véspera. Fumei-o com volúpia e vagar, sacudindo as cinzas com pena — as cinzas do meu sonho! Certamente, esse seria o último que fumaria na minha vida... Foi um sonho!
===============================
* NOTAS
Magiar = húngaro.
Turfa = é um material orgânico constituído por elementos procedentes da decomposição de vegetais. Este material é de cor castanha (escura ou clara, dependendo do tipo) e é muito rico em carvão. ... Usa-se principalmente em jardinagem formando parte do substrato.

Fonte:
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIV

ERA ISSO MESMO

 
Era isso mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...

Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
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ERAM VARÕES TODOS
 
Eram varões  todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.

E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer

Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.
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E TODA A NOITE A CHUVA VEIO
 
E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite o meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.

E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição do ar.

E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração
Na garganta da minha vida.
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EU
 
Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória,
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo herdeiro só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.
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EU AMO TUDO O QUE FOI
 
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
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É UMA BRISA LEVE
 
É uma brisa leve
Que o ar um momento teve
E que passa sem ter
Quase por tudo ser.
Quem amo não existe.
Vivo indeciso e triste.
Quem quis ser já me esquece
Quem sou não me conhece.

E em meio disto o aroma
Que a brisa traz me assoma
Um momento à consciência
Como uma confidência.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Minha Estante de Livros (“Cartas do meu moinho” e “Bilac vê estrelas”)


CARTAS DO MEU MOINHO, de Alphonse Daudet

Depois de várias tentativas de alcançar o sucesso na vida literária e uma vida pessoal tumultuada, Cartas do meu moinho trouxe alegria e reconhecimento ao autor francês Alphonse Daudet. Depois viria aquele que seria o seu clássico: Tartarin de Tarascon que reaviva muitos dos aprendizados do autor em sua passagem pela Argélia.

O livro possui contos ambientados na região da provença francesa, e de inicio já nos apresenta uma declaração de compra do moinho, é fictícia, mas dada a perfeição no estilo e escrita é pra lá de convincente. Sua vida no moinho não é definitiva já que ele é um citadino, possui um cotidiano muito tranquilo com seus papéis, as visitas dos coelhos, um certo convívio com os camponeses e, claro, a coruja que habita o primeiro andar. Em meio a ótimos contos temos 'Os Velhinhos' em que o narrador, o autor no caso, visita um casal idoso a pedido de um amigo de Paris, e o leitor é convidado a fazer essa visita também.

Cartas do meu moinho é um sensível conjunto de narrativas breves, contos pueris e encantadores. Em pleno século XIX, Daudet antecipa o que hoje é traço comum da literatura contemporânea: um certo jogo entre ficção e realidade. O autor escreve como se fossem memórias, mas todas as narrativas são ficcionais. Porém, os leitores tiveram tamanha empatia com os personagens e os lugares que acreditavam fielmente que se tratavam de experiências vividas pelo autor no sul da França.

Os personagens são simples e movidos por sonhos cotidianos, e os cenários declamam seu amor pela exuberante natureza francesa. A literatura sensível desse escritor francês conquistou os leitores pela simplicidade e pelo grande senso de humanidade.

Os contos, selecionados entre os 24 que foram publicados em 1869. São narrados na primeira pessoa, para dar a entender ao leitor que é o próprio escritor que revisa suas memórias. O Segredo de Mestre Cornille é sobre um moleiro inconformado com a chegada das máquinas à vapor; em A Cabra do Senhor Seguin, a cabrinha Branquinha quer viver livre para sempre; Os Velhos aborda a visita de um moleiro aos avós de um amigo; já A Lenda do Homem com o Cérebro de Ouro exibe personagem que se desfaz de sua riqueza por amor e por ter sido roubado e enganado; As Três Missas Baixas é a história do reverendo que, no Natal, cai no pecado da gula, morre e não pode entrar no céu: e Os Gafanhotos se passa na Argélia, onde um estrangeiro enfrenta destruidora tempestade de gafanhotos.
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Alphonse Daudet (1840 – 1897) estreou com a coletânea de versos "Les Amoureuses" aos 18 anos, ao ir para a capital francesa. Em Paris, tornou-se íntimo de Goncourt e Emile Zola. Ao publicar "Cartas do meu moinho", em 1869, alcançou o sucesso. Tornou-se secretário do Duque de Morny, presidente do Senado e, por problemas de saúde, viajou pela Argélia, onde se inspirou para escrever "Tartarin de Tarascon", em 1872. Fez várias tentativas no teatro, mas só teve algum sucesso com "A Arlesiana", em 1872.

Sofreu muito nos seus últimos quinze anos, morrendo em 1897, vítima de uma ataxia incurável (que poderia ser normalmente uma degeneração ou bloqueio de áreas específicas do cérebro e cerebelo). Encontra-se sepultado no Cemitério do Père-Lachaise, Paris na França.

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BILAC VÊ ESTRELAS, de Ruy Castro

No começo desta história, que se passa no Rio de Janeiro, no início do século XX, Olavo Bilac está em seu posto de observação na calçada da célebre Confeitaria Colombo. Com a própria glória garantida, só uma coisa o preocupa: como é efêmera a glória alheia. De repente, uma manchete gritada por um jornaleiro interrompe os seus pensamentos: um negro encontrado morto em Paquetá pode ser o jornalista da Abolição José do Patrocínio, grande amigo de Bilac.

Por causa disso, ele se mete numa trama envolvendo um fabuloso dirigível, inventado por Patrocínio e objeto da cobiça de dois aeronautas franceses e de uma traiçoeira espiã portuguesa. Na tentativa de se apoderar dos planos do balão, a espiã e seu cúmplice, fazem Bilac literalmente ver estrelas com uma bengalada na cabeça, que o leva ao espaço e ao Olimpo.

O cenário e a época de Bilac vê estrelas são reais: boa parte da história se passa nas ruas do Rio durante a agitada Belle Époque carioca, e os personagens também são de carne e osso. Mas o documentário é só o pano de fundo para a ficção. Em meio aos arranca-rabos desse caso hilariante de espionagem industrial, Ruy Castro faz Bilac ser atacado na cama pela bela e tórrida portuguesa, deixa-o para morrer desacordado num hangar em chamas, obriga os bandidos a fugir numa charrete em disparada pela rua do Ouvidor, e tudo isso durante a vinda de Santos-Dumont ao Brasil. Bilac vê estrelas é quase uma comédia-pastelão à brasileira.

Em sua estreia na literatura, Ruy Castro revela-se um ficcionista que, como seus leitores já sabiam, é um especialista em bom humor.