sábado, 7 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 135


Alcântara Machado (O Aventureiro Ulisses)


(Ulisses Serapião Rodrigues)

Ainda tinha duzentos réis. E como eram sua única fortuna meteu a mão no bolso e segurou a moeda. Ficou com ela na mão fechada.

Nesse instante estava na Avenida Celso Garcia. E sentia no peito todo o frio da manhã.

Duzentão. Quer dizer: dois sorvetes de casquinha. Pouco.

Ah! muito sofre quem padece. Muito sofre quem padece? É uma canção de Sorocaba. Não. Não é. Então que é? Mui-to so-fre quem pa-de-ce. Alguém diz ia isto sempre. Etelvina? Seu Cosme? Com certeza Etelvina que vivia amando toda a gente. Até ele. Sujeitinha impossível. Só vendo o jeito de olhar dela.

Bobagens. O melhor é ir andando.

Foi.

Pé no chão é bom só na roça. Na cidade é uma porcaria. Toda a gente estranha. É verdade. Agora é que ele reparava direito: ninguém andava descalço. Sentiu um mal-estar horrível. As mãos a gente ainda escondia nos bolsos. Mas os pés? Coisa horrorosa. Desafogou a cintura. Puxou as calças para baixo. Encolheu os artelhos. Deu dez passos assim. Pipocas. Não dava jeito mesmo. Pipocas. A gente da cidade que vá bugiar no inferno. Ajustou a cintura. Levantou as calças acima dos tornozelos. Acintosamente. E muito vermelho foi jogando os pés na calçada. Andando duro como se estivesse calçado.

- Estado! Comércio! A Folha! Sem querer procurou o vendedor. Olhou de um lado. Olhou de outro.

- Fanfulla! A Folha!

Virou-se.

- Estado! Comércio!

Olhou para cima. Olhou longe. Olhou perto.

Diacho. Parece impossível.

- São Paulo-Jornal!

Quase derrubou o homem na esquina. O italiano perguntou logo:

- Qual é?

Atrapalhou-se todo:

- Eu não sei não senhor.

- Então leva O Estado!

Pegou o jornal. Ficou com ele na mão feito bobo.

- Duzentos!

Quase chorou. O homem arrancou-lhe a moeda dos dedos que tremiam. E ele continuou a andar. Com o jornal debaixo do braço. Mas sua vontade era voltar, chamar o homem, devolver o jornal, readquirir o duzentão. Mas não podia. Por que não podia? Não sabia. Continuou andando. Mas sua vontade era voltar. Mas não podia. Não podia. Não podia. Continuou andando.

Que remédio senão se conformar? Não tomava sorvete. Dois sorvetes. Dois. Mas tinha O Estado.

O Estado de São Paulo. Pois é. O jornal ficava com ele. Mas para quê, meu Espírito Santo? Engoliu um soluço e sentiu vergonha.

Nesse instante já estava em frente do Instituto Disciplinar.

Abaixou-se. Catou uma pedra. Pá! Na árvore. Bem no meio do tronco. Catou outra. Pá! No cachorro. Bem no meio da barriga. Direção assim nem a do Cabo Zulmiro. Ficou muito, mas muito contente consigo mesmo. Cabra bom. E isso não era nada. Há dois anos na Fazenda Sinhá-Moça depois de cinco pedradas certeiras o doutor delegado (o que bebia, coitado) lhe disse: Desse jeito você poderá fazer bonito até no estrangeiro!

Êta topada. A gente vai assim pensando em coisas e nem repara onde mete o pé. É topada na certa. Eh! Eh! Topada certeira também. Puxa. Tudo certeiro.

Agora não é nada mau descansar aqui à sombra do muro.

O automóvel passou com poeira atrás. Diabo. Pegou num pauzinho e desenhou um quadrado no chão vermelho. Depois escreveu dentro do quadrado em diagonal: SAUDADE - 1927. Desmanchou tudo com o pé. Traçou um círculo. Dentro do círculo outro menor. Mais outro. Outro. Ainda outro bem pequenino. Ainda outro: um pontinho só. Não achou mais jeito. Ficou pensando, pensando, pensando. Com a ponta do cavaco furando o pontinho. Deu um risco nervoso cortando os círculos e escreveu fora deles sem levantar a ponta: FIM. Só que escreveu com n. E afundou numa tristeza sem conta.

Cinco minutos banzados.

E abriu o jornal. Pulou de coluna em coluna. Até os olhos da Pola Negri nos anúncios de cinema. Boniteza de olhos. Com o fura-bolos rasgou a boca, rasgou a testa. Ficaram só os olhos. Deu um soco: não ficou nada. Jogou o jornal. Ergueu-o novamente. Abriu na quarta página. E leu logo de cara: ULISSES SERAPIÃO RODRIGUES: No dia 13 do corrente desapareceu do Sítio Capivara, município de Sorocaba, um rapaz de nome Ulisses Serapião Rodrigues tomando rumo ignorado. Tem 22 anos, é baixo, moreno carregado e magro. Pode ser reconhecido facilmente por uma cicatriz que tem no queixo em forma de estrela. Na ocasião de seu desaparecimento estava descalço, sem colarinho e vestia um terno de brim azul-pavão. Quem souber do seu paradeiro tenha a bondade de escrever para a Caixa Postal 170 naquela cidade que será bem gratificado.

Coisas assim a gente lê duas vezes. Leu. Depois arrancou a notícia do jornal. E foi picando, picando, picando até não poder mais. O vento correu com os pedacinhos.

Então ele levou a mão no queixo. Esfregou. Esfregou bastante. Levantou-se. Foi andando devagarzinho. Viu um sujeito a cinquenta metros. Começou a tremer. O sujeito veio vindo. Sempre na sua direção. Quis assobiar. Não pôde. Nunca se viu ninguém assobiar de mão no queixo. O sujeito estava pertinho já. Pensou: Quando ele for se chegando eu cuspo de lado e pronto. Começou a preparar a saliva. Mas cuspir é ofensa. Engoliu a saliva. O sujeito passou com o dedo no nariz. Arre. Tirou a mão do queixo. Endireitou o corpo. Apressou o passo. Foi ficando mais calmo. Até corajoso.

Parou bem juntinho dos Operários da Light.

O mulato segurava no pedaço de ferro. O estoniano descia o malho: pan! pan! pan! E o ferro ia afundando no dormente. Nem o mulato nem o estoniano levantaram os olhos. Ele ficou ali guardando as pancadas nos ouvidos.

O mulato cuspiu o cigarro e começou:

Mulher, a Penha está aí,
Eu lá não posso...

Que é que deu nele de repente?

- Seu moço! Seu moço!

A canção parou.

- Faz favor de dizer onde é que fica a Penha?

O mulato levantou a mão:

- Siga os trilhos do bonde!

Então ele deu um puxão nos músculos. E seguiu firme com os olhos bem abertos e a mão no peito apertando os bentinhos.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Álvaro Posselt (Tercetos e Quartetos)


Boneca de cera
No quartinho de bonecas
todas outras choram
você foi eleita miss!
__________________________
Busca

Encontrá-las eu preciso
Ajudar-me acho que topas
Sei que foi no paraíso
que o diabo perdeu as botas
__________________________
Coração quebrado
Relógio à prova d'água
passa o tempo
só não passa a mágoa
__________________________
Escrever

Escrever é uma gestação
O poema pode nascer
em nove meses, nove dias ou nove segundos
__________________________
Espelho

Você diz que sou pentelho
que com setenta eu estou
ou nunca se olhou no espelho
ou do espelho duvidou!
__________________________
Fofoca

Boato gera falatório
vira fofoca e assunto
pois se fosse num velório
acordaria até o defunto!
__________________________
Fora de casa

Dentro do congelador
Quer viver à sua maneira
Em cima passa até calor
O pinguim de geladeira
__________________________
O médico e o monstro
Sou do sol e sou da lua
As mudanças me consomem
Sou do campo e sou da rua
Meio santo e lobisomem
__________________________
Oração de um baladeiro

Ai, meu São Jorge
que o dragão daquela noite
não cruze mais meu caminho!
__________________________
Sintoma

A toda hora com furor
No meu peito a dor consome
Eu pensava que era amor
Diz o médico que é de fome
__________________________
Transitório

O rio vai embora
para nunca mais voltar.
A nascente chora!
__________________________
Via láctea
Neste mundo meu
sou um planeta habitado
no universo seu!
__________________________
O amor é eterno - Uma história além da vida
Isso é o cúmulo
o defunto só queria ficar
e não levá-la pro túmulo!

Ela queria compromisso sério
Os defuntos se casaram
na cruz do cemitério

Isso que é gostar
o defunto falou pra ela:
Pra sempre eu vou te amar!

Hoje em dia é uma beleza
ela lava os pratos
e ele arruma a mesa!

Precisa ver que bela ceia
tem até flores e vela
em noite de lua cheia!

Reúnem-se às sextas-feiras
Vem caveira de todo lado
e até as macumbeiras!

E assim a vida passou
Seguindo os passos da rotina
tudo se estabilizou

Veio o primeiro filho
Com as contas e as brigas
a relação ficou sem brilho!

Que tremenda desilusão
ela foi embora com o filho
Ele ficou sem chão

O defunto tanto chorou
depois caiu em depressão
e então se suicidou!

No seu reenterro
prometeu com convicção
"Nunca mais cometo esse erro!"

Mas todo defunto tem sentimento
e não demorou muito
para um novo relacionamento!

Conheceu uma moça bela
de olhos esbugalhados
e já meio banguela!

Como sempre se diz
até no mundo dos mortos
a gente só quer ser feliz!

Fonte:
Recanto das Letras

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O Dedalzinho)

Era uma vez um homem pobre que vivia no fértil vale de Aherlow, junto do lúgubre monte Galtee. Como tinha uma enorme corcova nas costas, dava a impressão de que lhe haviam empurrado o corpo para cima, depositando-o nos ombros. A cabeça estava tão oprimida para baixo pelo peso, que, quando se sentava, costumava apoiar o queixo no joelho. Os habitantes da região tinham medo de se cruzar com ele num lugar solitário, embora o pobre homem fosse tão pacífico e inofensivo como uma criança recém-nascida. Mas a sua deformação era tão pronunciada, que quase não parecia uma criatura humana, pelo que pessoas mal-intencionadas tinham posto a circular histórias estranhas a seu respeito. Dizia-se que possuía profundos conhecimentos das ervas e beberagens, mas, de qualquer modo, não subsistia a menor dúvida de que era muito habilidoso e fabricava chapéus e cestos de palha e vime, angariando assim o seu sustento.

Chamavam-lhe Dedalzinho porque usava sempre no seu pequeno chapéu um ramo de erva-dedal, ou capuchinho-dos-duendes. Em troca dos trabalhos que executava, recebia um cêntimo mais que os outros, pelo que as fantasias a seu respeito decerto se deviam à inveja que suscitava.

Como quer que fosse, certa tarde o Dedalzinho dirigiu-se da cidade de Cahir à de Cappagh e, como a pesada corcova só lhe permitia caminhar muito devagar, quando chegou ao antigo monumento megalítico de Knockgrafton, situado à direita do caminho, já anoitecera. Extenuado, e desencorajado ante a evidência de que ainda lhe faltava muito para percorrer, sentou-se junto dos túmulos para descansar e contemplou, apreensivo, a lua cheia que naquele momento despontava sobre o horizonte.

De súbito, chegou-lhe aos ouvidos uma estranha música subterrânea. Prestou atenção e reconheceu que nunca ouvira nada tão belo — era como o som de muitas vozes unindo-se e misturando-se maravilhosamente entre si, de tal modo que lhe parecia ouvir uma única, apesar de, individualmente, terem sons distintos. A letra do cântico era: «Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort.» Seguia-se uma breve pausa e a música era reatada de novo desde o princípio.

O Dedalzinho escutava atentamente e quase não se atrevia a respirar para não perder uma única nota. Deu-se claramente conta de que o canto procedia do túmulo e, embora a princípio lhe proporcionasse um prazer profundo, acabou por se cansar de ouvir repetidamente o mesmo refrão sem qualquer variação. Depois de tomarem a cantar «Da Luan, Da Mort» mais três vezes, aproveitou uma breve pausa, entoou a melodia e fê-la seguir das palavras «Augus Da Cadine!», após o que se uniu às vozes do túmulo e cantou «Da Luan, Da Mort», mas, durante a pausa, acrescentou o seu «Augus Da Cadine».

Ao aperceberem-se da adição ao seu canto espiritual, os pequenos seres do túmulo alegraram-se extraordinariamente e decidiram em seguida trazer para junto deles aquele ser humano cuja destreza musical ultrapassava, de longe, a sua. Assim, o Dedalzinho viu-se levado para baixo com a rapidez de um turbilhão.

Que coisas magníficas viram os olhos da pequena criatura ao descer ao interior do túmulo, flutuando e dando voltas sobre si mesmo, mais leve que uma palha! A encantadora música manteve o ritmo como é devido durante a sua viagem, mas prestaram-lhe maior homenagem, quando o colocaram acima de todos os músicos. Tinha criados ao seu serviço, que satisfaziam tudo o que o seu coração desejava, e deu-se conta de como aqueles pequenos seres o estimavam. Numa palavra, não o teriam tratado melhor se fosse o homem mais importante de todo o país.

Depois, descobriu que sussurravam entre si e tomavam deliberações e, embora lhe agradasse a forma elegante como o faziam, começou a sentir medo. Por fim, um dos pequenos seres aproximou-se e proferiu:

Ai, Dedal, Dedal, Dedal!
Recebe um novo valor!
A tua corcova cair verás
E sentir-te-ás melhor,
E muito contente ficarás!
Ai, Dedal, Dedal, Dedal!

Mal acabaram de pronunciar estas palavras, o Dedalzinho sentiu-se tão leve e feliz que poderia alcançar a Lua de um salto, como a vaca do conto do gato e o violino. Viu com a maior alegria do mundo a corcova deslizar dos ombros para o chão. Em seguida, tentou comprovar se podia levantar a cabeça, mas fê-lo com precaução e prudência, por recear que embatesse nas guarnições daquela enorme sala. Depois, olhou em volta com o maior dos assombros, para se recrear em todas as coisas que cada vez lhe pareciam mais belas. Finalmente, ficou tão cansado de observar aquele esplêndido aposento, que sentiu a cabeça a andar à roda, a vista enevoou-se e mergulhou em sono profundo.

Quando acordou, era completamente de dia. Brilhava o sol, os pássaros cantavam e ele encontrava-se deitado junto da colina dos gigantes, enquanto algumas vacas e ovelhas pastavam pacificamente em redor. Depois de rezar as suas orações, a primeira coisa que o Dedalzinho fez foi levar a mão à corcova, mas não havia nem vestígios dela nas suas costas. Observou-se com orgulho, pois convertera-se num jovem garboso e ágil e, o que não lhe pareceu pouco, viu que vestia roupa nova da cabeça aos pés, o que o levou a depreender que se devia aos espíritos.

Pôs-se então a caminho em direção a Cappagh. Movia-se com tanta elegância e saltava tanto em cada passo, que dir-se-ia que, durante toda a sua vida, não fizera outra coisa. Ninguém que se cruzasse com ele reconhecia o Dedalzinho sem a corcova, pelo que teve muito trabalho a convencer as pessoas de que era realmente ele. E, com efeito, o aspecto também não era o mesmo.

Como se costuma dizer, a história da corcova do Dedalzinho tornou-se conhecida em toda a parte e foi acolhida com girândolas de foguetes. Num raio de muitos quilômetros, toda a gente, nobre ou simples, não falava de outra coisa.

Uma manhã, o Dedalzinho estava sentado à porta de casa, particularmente bem-disposto, quando se aproximou uma mulher idosa, que solicitou:

— Indica-me o caminho para Cappagh.

— Não é necessário, pois isto aqui é Cappagh. Mas de onde vens?

— Da região de Decie, no condado de Waterford, à procura de um homem a quem chamam Dedalzinho e, segundo se diz, as fadas suprimiram uma corcova dos ombros. O filho da minha comadre tem uma que o oprime tanto que acabará por matá-lo. Talvez se livrasse dela, se pudesse empregar um feitiço como o do Dedalzinho. Decerto compreendes agora porque venho de tão longe. Gostava, se for possível, de saber alguma coisa sobre esse feitiço.

O Dedalzinho, que sempre tivera bom coração, contou à velha, com todos os pormenores, o que acontecera: o canto das fadas no interior do túmulo, as quais o haviam aliviado da corcova dos ombros, além de que lhe tinham oferecido vestuário novo da cabeça aos pés.

A velha agradeceu-lhe, profundamente reconhecida e, imersa nos seus pensamentos, regressou a casa, satisfeita e muito feliz. Quando chegou junto da comadre, no condado de Waterford, descreveu-lhe exatamente tudo o que Dedalzinho dissera. A seguir, colocou num carro o corpo corcovado, que toda a sua vida tinha sido pérfido e malicioso, e partiu puxando-o. Tinha um longo caminho a percorrer, mas refletia: "É-me indiferente, desde que ele se livre da corcova." Ao anoitecer, chegou à colina dos gigantes e deixou-o aí deitado.

Hans Madden, assim se chamava o corcunda, não havia ainda muito tempo que se encontrava ali, quando começou a ouvir a música na colina, ainda mais agradável que anteriormente, pois as fadas entoavam a sua canção com a que tinham aprendido com o Dedalzinho — «Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Augus Da Cadine» -, sem interrupção. Hans, que ansiava por se desfazer da corcova o mais rapidamente possível, não esperou que elas terminassem de cantar, nem que chegasse o momento apropriado para acompanhar a melodia, como o Dedalzinho fizera. Quando havia mais de sete vezes seguidas que a tinham cantado, pôs-se a gritar sem atender ao ritmo, forma ou maneira de lhe ajustar as suas palavras, «Augus Da Dardine, Augus Da Henace», ao mesmo tempo que pensava: "Se uma adição foi boa, duas ainda serão melhores. Se deram ao Dedalzinho um fato novo, a mim talvez deem dois."

Mas, mal acabava de dizer isto, viu-se erguido pelos ares e arrastado com uma força prodigiosa para o interior da colina, onde as fadas, furiosas, gritando e uivando, o rodearam e perguntaram:

— Quem profanou o nosso canto? Quem profanou o nosso canto?

Uma delas adiantou-se e exprimiu-se assim:

Ah, Hans Madden! Ah, Hans Madden!
Mal, muito mal, entoaste
o que por nós era cantado!
Agora, estás aqui apanhado!
E que foi que ganhaste?
Ser duas vezes corcunda!
Ah, Hans Madden! Ah, Hans Madden!

E vinte das mais fortes arrastaram até ali a corcunda do Dedalzinho e colocaram-na em cima da do infortunado Hans Madden, ficando tão colada como se a tivessem cravado com pregos de doze oitavos do melhor carpinteiro. A seguir, expulsaram-no a pontapés de sua casa.

Na manhã seguinte, quando a mãe dele e a sua comadre chegaram, ao verem aquele desprezível indivíduo estendido junto da colina, meio morto e com uma segunda corcova nas costas, observaram-no com curiosidade e encheram-se de medo de também ficarem assim. Levaram-no para casa, profundamente aflitas, fazendo pena ver duas velhas tão angustiadas. Pouco depois, esgotado pelo peso da segunda corcunda e pela longa viagem, Hans morreu, deixando atrás de si uma grave maldição para todo aquele que quisesse escutar o canto das fadas.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 134


Isabel Furini (Escravidão)

Fonte: Facebook

Rachel de Queiroz (O Caso dos Bem-Te-Vis)

    

Era um casal de bem-te-vis apaixonados. Voavam e pousavam, naquela primeira fase de amor de passarinho; namoro de asa e bico, entre o céu claro e a copa mais alta das árvores, ai, tão parecido com namoro de gente — com a diferença de que gente não pode voar.

Aliás, não seria o namoro desses bem-te-vis passado entre árvores; bem-te-vis urbanos, seu pouso natural são postes e fios elétricos. Esses dois voejavam e curtiam o amor junto à linha-tronco abastecedora da rede aérea da Central do Brasil, a qual serve os trens com 44 mil volts. Era perto de uma subestação, onde os fios de distribuição (em três fases) ficam muito próximos uns dos outros,

Fios juntos, paralelos — haverá poleiro mais lírico para passarinhos em estado de amor? A bem-te-vi donzela pousou no fio à direita, o bem-te-vi mancebo impetuosamente baixou sobre o fio fronteiro. E, naquela confrontação de fio a fio, trocaram o primeiro beijo.

Jamais, na história dos homens e dos bichos, teve um beijo tão tremendas consequências. Porque os inocentes passarinhos, cada um pousado no seu fio condutor de 44 mil volts, naquela rápida carícia de bico a bico, criaram um curto-circuito. Passando pela frágil cadeia dos seus corpos, a terrifica corrente os eletrocutou; mas o curto também atingiu o aparelho automático que desligou a corrente, paralisando instantaneamente todos os trens. O interruptor automático funcionou como um kamikase — conseguiu interromper a corrente, como era da sua obrigação, mas morreu no posto —, quer dizer, incendiou-se. Segundo diz o jornal, “o fogo foi nele mesmo e não chegou a desligar a energia”.

O sacrifício do automático protegeu os transformadores da subestação; assim mesmo houve tanta queima de fios e outros desastres menores que, durante quatro horas, ficou paralisada toda a rede de trens elétricos da Central do Brasil.

Por um beijo de passarinhos, meio milhão de pessoas — que é esse o número de usuários dos trens da Central no período — ficaram durante meio dia sem poder chegar ao trabalho: só o beijo imortal trocado por Helena e o pastor Páris, que desencadeou o lançamento de mil navios e causou a guerra de Troia, pode lhe ser comparado.

E é por fatos assim que a gente verifica a fragilidade da chamada civilização. Como é que dois bem-te-vis — tão pequeninos que os dois juntos não pesarão meio quilo — podem determinar tão gigantesca perturbação na vida da Metrópole, tal confusão e prejuízo a tão imensa quantidade de homens: meio milhão.

Isso acontece para quebrar o orgulho dos técnicos; eles podem muito, mas não podem tudo, e de vez em quando Deus Nosso Senhor suscita um fenômeno — servindo-se das mais pequeninas e frágeis entre as suas criaturas — no caso dois passarinhos — para pôr em xeque a soberba do homem com as suas máquinas.

A gente vê as imensas composições passando, carregadas de gente até do lado de fora, naquele estrépito de trovão que abala as pontes de concreto e aço — e aí vêm dois bem-te-vis — novo Romeu, nova Julieta — e tocam de leve os bicos numa carícia fugitiva — e as dezenas de trens se imobilizam e os automáticos se incendeiam e vai tudo numa confusão de fim de mundo.

Vocês morreram, é certo, pobre casal de bem-te-vis apaixonados; morreram, mas serviram para provar um ponto importantíssimo de filosofia: de que adianta a arrogância dos homens, se um singelo amor de passarinho tem força para reduzi-la a cinza e fumaça?

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Diogo Bernardes (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 12) 1


[1]

À borda d’um ribeiro, que corria
Por meio d’um florido, e verde prado,
O triste pastor Délio debruçado
Sobre um tronco de freixo assim dizia:

Ah, Marília cruel, quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Quem fez um coração desenganado
Amar coisa que tanto aborrecia?

Que foi daquela fé, que tu me deste?
Que foi daquel' amor que me mostraste?
Como se mudou tudo tão asinha?

Quando tua afeição n’outro puseste,
Como te não lembrou que me juraste
Que não serias nunca senão minha?

[2]

Ando, senhora minha, cá temendo
Se vós em mim cuidais, que cuidareis
Que vos não amo quanto mereceis,
Pois vivo tantos dias não vos vendo:

Ai triste, que da morte me defendo
Com esperar que cedo me vereis
Tal, que logo em mim conhecereis
Que, se vivo sem vós, vivo morrendo.

Faltando este remédio, d’outro modo
A triste vida não se valeria
Contra o mal que lhe ordena a saudade:

Mas quando verei eu, senhora, o dia
Que veja em vossos olhos meu bem todo,
E vós vejais nos meus esta verdade?

[3]

Da branca neve, e da vermelha rosa
O Céu de tal maneira derramou
No vosso rosto as cores, que deixou
A rosa da manhã mais vergonhosa.

Os cabelos (d’amor prisão formosa)
Não d’ouro, que ouro fino desprezou,
Mas dos raios do Sol vo-los dourou,
Do que Cíntia também anda invejosa.

Um resplendor ardente, mas suave,
Está nos vossos olhos derramando
Que o claro deixa escuro, o escuro aclara;

A doce fala, o riso doce, e grave
Entre rubis, e perlas lampejando
Não tem comparação por coisa rara.

[4]

Marília, que do Céu à terra dada
Foste, por glória sua, e nosso espanto,
Que verso louvará, que novo canto,
Formosura tão nova, e desusada?

Qual serena manhã alva, e rosada
Foi nunca tão formosa, ou qual Sol tanto
O mundo alumiou, Marília, quanto
Teus olhos, onde Amor tem sua morada?

Se estrelas, Lua, Sol sua beleza
Perdem diante ti, que desenganos
De perlas, de rubis, de neve, e rosas!

Enfim em ti juntou a natureza
Quanto reparte em mil, e em mil anos
Com mil, e mil, e todas mui formosas.

[5]

Nas águas du’a fonte um dia olhava
O seu rosto, Marília, doutras cheio,
Entregue a mil suspeitas d’um receio,
Que amor em seus amores lhe ordenava.

Mansas águas (dizia) mal cuidava
Em tão ledo começo, e ledo meio,
Que visse um fim tão triste, e tão alheio
Do bem, que do meu bom ver esperava.

De lágrimas fingidas me deixei
Vencer, triste de mim! não suspeitando
Que fossem deste amor injusto preço:

Agora, que me vou desenganando,
Bem vedes vós em mim, que me tornei
Tal, que vendo-me em vós, não me conheço.

[6]

Horas breves de meu contentamento
Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos visse tornadas, tão asinha,
Em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres, que fundei no vento,
O vento as levou já que as sustinha,
Do mal, que me ficou, a culpa é minha,
Que sobre coisas vãs fiz fundamento.

Amor com rosto ledo, e vista branda
Promete quanto dele se deseja,
Tudo possível faz, tudo segura:

Mas des (1) que dentro d’alma reina, e manda,
Como na minha fez, quer que se veja,
Quão fugitivo é, quão pouco dura.

[7]

Depois de tantos dias mal gastados,
Depois de tantas noites mal dormidas,
Depois de tantas lágrimas perdidas,
Tantos suspiros vãos, vãmente dados;

Como não sois vós já desenganados,
Desejos, que de coisas esquecidas
Quereis remediar minhas feridas,
Que amor fez sem remédio, ou os meus fados?

Se não tiveres já experiência
Das sem-razões d’amor, a quem servistes,
Fraqueza fora em vós a resistência:

Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Os quais não curou tempo, nem ausência
Que bem dele esperais, desejos tristes?

[8]

Que doido pensamento é o que sigo,
Após que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mim, que não me entendo,
Nem o que calo sei, nem sei que digo.

Pelejo com quem trata paz comigo,
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pretendo?
Quem do meu próprio mal me fez amigo?

Porque, se nasci livre, me cativo?
E se o quero ser, por que não quero?
Como me engano mais com desenganos?

Se já desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo
Esperando algum bem em tantos danos?
______________________________
Glossário:
(1) Cíntia – equivalente romano a Diana, era filha de Zeus e Latona, e irmã gêmea do Apolo. Homero refere-se a ela como Ártemis Agrótera, Potnia Theron: "Ártemis das terras selvagens, Senhora dos Animais". Os acadianos acreditavam que Ártemis era filha de Deméter, deusa da agricultura. É deusa da lua, da caça, dos animais selvagens, da região selvagem, do parto e da virgindade e protetora das meninas Ela às vezes era conhecida como Cíntia (Cynthia), a partir de sua cidade natal no monte Cinto. (wikipedia)
(2) Des - o mesmo que desde.

Carlos Drummond de Andrade (Peru)


Na engrenagem metropolitana, as operações mais singelas, desde que fujam à rotina, exigem longa e meditada preparação. Pelo que, desde novembro, o jornal anunciava: “Encomendem seus perus com antecedência à granja Castorina, são maiores e melhores”.

A Dona da Casa julgou de seu dever acudir à advertência, e pegou do telefone, que do outro lado estava sempre em comunicação: a cidade inteira, possuída do espírito da previdência, ou de simples esganação natalina, encomendava peru. Depois de várias tentativas, conseguiu inscrever-se. O peru chegou a seu tempo, nem maior nem menor, nem gordo nem magro, principalmente silencioso, sem o ar ofendido que têm os perus vivos. Chegou, com a fatura que lhe atestava os quilos e os tarifava em meio milhar de cruzeiros. A Dona da Casa respirou: há perus que falham, causando aflições e vergonhas imensas. Gratificou o portador e levou célere para o refrigerador o objeto de seus cuidados.

Aí apareceu a exímia Cesária, de Campo Grande, convocada por sua perícia em lidar com viventes de pluma e crista. Lançou o olhar douto sobre a peça e iniciou os preparativos.

A Dona da Casa, sem menosprezo ao saber de experiências feito de Cesária, sugeriu-lhe que nos pormenores seguisse a receita de Mário de Andrade, colhida de uma francesa e publicada nos Contos novos: deve o peru ter duas farofas, a gorda, com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga; o papo será recheado com a farofa gorda, ameixas-pretas, nozes e um cálice de xerez.

Assim foi feito.

Tinha a Dona da Casa empenho em apresentar um peru distinto, pois comeria à sua mesa o Argentino, muito versado na espécie, e que uma vez a presenteara com um imenso pavo incrustado em gelo seco, que atravessara triunfante o céu de três países e durante um mês alimentara a família e convidados. O de agora era uma ave qualquer, mas o toque literário da receita lhe imprimia o quid desejado.

À ceia, os dois casais se preparavam para a mastigação ritual, e o trinchante ia funcionar, quando um nariz, por hábito, se aproximou da superfície de ouro; deteve-se, intrigado: o cheiro não correspondia à aparência; era peculiar e inoportuno. Convidado a opinar, o Argentino sentenciou:

— Podrido.

Estava. O fenômeno manifestava-se na região posterior. As partes nobres, ainda imunes, exalavam bom odor, mas, dentro, uma luta surda lavrava, semelhante a essas comoções nacionais intestinas que ninguém percebe mas o governo denuncia.

A travessa foi repelida com temor, como se um verme fosse desprender-se dali, para desejar feliz Natal. Houve que reanimar Cesária, isentando-a de culpa: como dissera na televisão o dr. Arruda, médico da prefeitura, cinco mil perus podres, pelo menos, são vendidos para a ceia de Natal. Ninguém percebe a avaria senão depois de assada a ave. Acontece.

Comeu-se o que havia a mais, com bom humor, situações heroicas, remédios heroicos. Contou-se a história do nosso Jacinto de Tormes: na hora de servir, o garçom escorrega, pimba: peru no chão. A hostess, imperturbável, ordena: “Joaquim, leve este peru e traga OUTRO”. Com aquele não se podia fazer o mesmo; era preciso jogá-lo fora.

Aí começa outra história. A copeira informa que não havia onde guardar o peru. O caminhão de lixo não passava há três dias; os depósitos, cheios; o calor noturno aumentava…

O Dono da Casa confabulou com o Argentino e deliberaram remover com urgência la basura. Enrolaram-na em folhas de jornal e, muito dignos, saíram para a noite, com dois pacotes: o nacional com a carne, o outro com a farofa.

Caminharam em busca de um terreno baldio, mas este não havia ou estava ocupado por namorados sem lar. Entreolharam-se:

— El mar!

O mar desatava-se à frente deles, purificador, cúmplice. Diante de Cosme e Damião, antes que estes os interpelassem, foram resmungando: “Comida para os pobres”. Na praia, balanços e escorregadores estavam cheios de moças vindas da missa do galo. Sentaram-se num banco e consideraram a situação com realismo.

— Se jogarmos o peru no mar, pensam que é feto ou macumba, junta gente e nos prendem.

— Y entonces?

Disfarçaram, fazendo deslizar os pacotes para debaixo do banco; e foram saindo de mansinho. Os rádios berravam “noite feliz”.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 133


Elisa Alderani (Natal Tropical)


Já há tempo moro no Pais tropical,
quando chega Natal, sinto tristeza...
voltam com certeza as lembranças
tão queridas dos tempos passados
na minha tão amada Terra natal...

Estou no meio do caminho...
São quarenta Natais italianos
mais quarenta brasileiros...
Natal tropical já virou costume
neve e gelo parecem esquecidos
mas, para mim, Natal verdadeiro!

Lá precisava aquecer casa,
carro, e todos os lugares...
aqui precisa refrescar...O resultado é igual...
Chega o Natal... Presentes ... Festas...
Árvore decorada. Papai Noel... Shopping...

E o sentido do Santo Natal?
Parece perdido...
Precisa encontrar o Menino Jesus...
Vamos à procura Dele?
A estrela ainda brilha no Céu !
Aquecer o coração com a Sua presença
doando Amor, fraternidade e  perdão!

Fonte:
Poema enviado pela poetisa.
Imagem de fundo do Papai Noel obtida em Amo Frases

Contos e Lendas do Mundo (Nação Tupinambá: Terra, Fogo e Água)


Existem, espalhados por esse mundo, muitos mitos e histórias que falam de grandes cheias que representam uma segunda oportunidade para a humanidade. Este mito dos Tupinambás é uma história que fala da Terra, do fogo e da água.

No tempo em que o planeta era completamente plano, sem a menor colina, vale ou montanha à vista, a terra estendia-se a perder de vista. Não havia mares nem oceanos, apenas o número suficiente de lagos para fornecer a água de que as pessoas necessitavam para beber e as árvores para crescer.

Esse mundo, assim como o seu povo, fora criado e cuidado por alguém chamado Monan, que existia antes do princípio de si mesmo, portanto não tinha começo nem fim. Era, é e será sempre.

Monan tratava os humanos como crianças mimadas e deixava-os fazer o que queriam, desde que o respeitassem como seu criador, assim como à Terra, que fizera para nela viverem.

No começo, tratava-se de uma situação satisfatória. Todos os dias eram dias de descanso e prazer para o seu povo que, no entanto, à medida que o tempo ia passando, se foi tornando ingrato.

- Para que precisamos nós de Monan? - perguntou um, levando um fruto à boca e saboreando a sua doçura pegajosa. - Quem me dera que nos deixasse em paz.

- Temos tudo o que queremos - acrescentou um outro. - Monan não nos serve para nada.

A certa altura, as pessoas começaram a falar mal do seu criador e a criticar o mundo que este fizera para eles.

- Seria melhor que tornasse os dias mais ensolarados - queixou-se um.

- Cá por mim, não eram tão brilhantes - resmungou outro.

- Porque terá o céu este azul tão enfastiante? - lamuriou-se um outro. E o que ainda era pior, houve quem começasse a falar da Terra como se esta tivesse aparecido por acaso... esquecendo-se completamente de Monan.

No início, Monan não ligou importância ao fato. Achava que as ideias disparatadas do seu povo acabariam por passar e que, em breve, todos voltariam a sentir-se gratos como no passado. No entanto, enganava-se.

Monan, preocupado com o rumo seguido por aqueles que criara com tanto carinho, voltou as costas à Terra e aos seus habitantes, deixando-os entregues à vida sem ele. Mas quando o seu comportamento começou a tomar proporções graves, achou que lhe competia pôr termo a tal situação.

Enviou um fogo terrível do céu. Este fogo, chamado Tatá, era tão quente e violento que não só destruiu tudo o que era vivo como também fez com que a Terra se enrugasse e encarquilhasse, dando origem ao que hoje são os montes, vales e montanhas que conhecemos.

Este acontecimento teria representado o fim da humanidade, se Monan não tivesse salvo uma pessoa antes de enviar o fogo. Era-lhe muito penoso destruir todas as suas criações, daí que tenha preservado um homem chamado Irin-Mage.

Irin-Mage olhou para a Terra e viu as chamas subirem cada vez mais alto.

- Quereis que as chamas também destruam o céu e as estrelas? perguntou ao seu criador. - Se não fizerdes nada para as suster, em breve este fogo devastador chegará aqui acima e consumirá o vosso próprio lar!

Monan fez então cair do céu uma chuva abundante como nunca se vira até então nem nunca mais se voltou a ver. A água brotou das alturas em vastas cascatas, extinguindo o fogo de Tatá.

As cinzas do incêndio foram varridas para longe e surgiram então os mares e os oceanos que hoje existem. As águas, ao misturarem-se com as cinzas, tornaram-se salgadas, razão pela qual diferem das dos rios, lagos e ribeiros, alimentados por chuvadas vindas mais tarde.

A Terra, com os seus montes, vales, montanhas, oceanos e mares, parecia até mais bela do que antes.

- Irei pôr-te ali, Irin-Mage - disse Monan. - O teu lugar não é no céu.

- Fico-vos grato - retorquiu o único ser humano que sobrevivera. Além de me salvardes a vida, colocais-me num mundo maravilhoso... apesar de saber que a solidão me será muito pesada por não ter alguém com quem o partilhar.

Monan fitou-o com bondade.

- És um homem bom - disse -, o que me faz feliz por te ter escolhido. Arranjar-te-ei uma esposa com a qual possas partilhar este mundo novo. Tende muitos filhos, pois será de vós que todas as pessoas virão.

Dito isto, Monan colocou Irin-Mage na Terra, juntamente com a sua nova esposa.

O tempo foi passando e Irin-Mage gerou muitos filhos na sua esposa, porém nenhum era tão poderoso como Maira-Monan, assim chamado para homenagear o criador que dera uma segunda oportunidade à humanidade.

Maira-Monan era um feiticeiro poderoso e conhecia todos os segredos da Natureza. Gostava de viver longe de todos; no entanto, partilhava muitos dos seus segredos com os outros, tornando assim mais fácil a vida na Terra. Transmitiu às pessoas o segredo do fogo e ensinou-as a cultivar as suas próprias safras.

Os poderes de Maira-Monan eram, no entanto, muito superiores. Foi ele que transformou os animais em todas as diferentes espécies que hoje conhecemos. Quando Monan colocou os pais de Maira-Monan na Terra, depois do fogo e da cheia, forneceu-lhes muitos tipos diferentes de árvores e plantas; porém, os animais eram todos iguais. Foi Maira-Monan que, servindo-se das suas artes, os tornou diferentes uns dos outros, criando tatus, garças, piranhas, abutres, entre uma miríade de outros. Encheu a terra, a água e o ar de vida.

Algumas pessoas - naquela altura já eram muitas - tinham medo de Maira-Monan.

- Que ele queira criar todos esses tipos diferentes de animais não tem importância - comentou uma mulher. - O pior é se ele decide focar a sua atenção em nós. E se resolve achar que devemos ter uma forma diferente?...

- Ou outra cor, ou tamanho? - concordou o marido.

- E se ele achar que devemos viver no oceano como se fôssemos peixes? Quem é que irá fazer-lhe frente? - perguntou a mulher. É demasiado poderoso.

- Temos de o impedir que o faça! - exclamou o vizinho.

- Sim - entoaram em coro. - Sim!

Finalmente, traçaram um plano e chamaram Maira-Monan a uma aldeia próxima.

- Ficamo-vos gratos por terdes vindo, grande sábio - saudou o chefe da aldeia. - Temos um pedido a fazer-vos, mas antes disso gostaríamos que demonstrásseis os poderes de que tanto temos ouvido falar.

- Se assim o desejais - acedeu Maira-Monan, filho de Irin-Mage, ignorando a armadilha que lhe preparavam e divertido com a ideia de ter de provar o seu poder. - Que quereis que eu faça?

- Apenas que atravesseis três fogueiras que acendemos para esse fim disse o chefe da aldeia.

- Se isso vos der prazer - aquiesceu Maira-Monan, sendo, então, conduzido até à primeira fogueira.

Caminhou lentamente por entre as labaredas, pisando as brasas incandescentes com as solas nuas dos pés como se não fossem mais do que pedrinhas de arestas afiadas. Saiu do outro lado sem a menor chamuscadela.

- Não sei o que isso poderá provar - observou o grande feiticeiro -, mas estou pronto para a segunda fogueira.

Os aldeãos levaram-no então até à segunda fogueira. Esta continha um feitiço com o qual Maira-Monan não contava. Mal entrara no meio da chamas, vacilou e caiu sobre os joelhos, perante as exclamações de quem assistia. Tê-lo-iam realmente derrotado?

As chamas envolveram Maira-Monan, que desapareceu numa explosão de luz brilhante, à qual se seguiu um estrondo tão violento que chegou aos céus.

Aqueles que o tinham enganado fugiram em pânico, aterrorizados com o que tinham feito, sem saberem se haviam de tapar os olhos ou os ouvidos.

No alto, a explosão chegou a um espírito chamado Tupan, que apanhou o feixe de luz cegante e transformou-o em raios. Quanto ao barulhento PUM, fez dele um trovão. Desse dia em diante, Tupan passou a ser o espírito dos trovões e dos raios.

Portanto, sempre que surge uma tempestade acompanhada de raios e trovões, é em memória de Maira-Monan. Também nos faz recordar a maior de todas as borrascas que o mundo já conheceu, quando o Criador inundou a Terra e deu aos humanos uma segunda oportunidade.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas

Jerson Brito (Sonetos Escolhidos)


A LUA POR TESTEMUNHA
(Sonetilho)

De prata, a seta alumia
Paixão e amor transbordantes
Os corpos loucos, arfantes
A dama vê, luzidia

Argêntea luz presencia
Ledice* de dois amantes
Enlevo os faz suspirantes
Imersos em fantasia

Cenário doce qu'enfeita
Assiste, linda e contente
Sorrindo, faceira, espreita

Momento por demais quente
Testemunha, satisfeita
A Lua tão reluzente…
__________________________
*Ledice - qualidade do que é ledo; alegria, contentamento.
__________________________
AMOR FUGAZ

Manhã de sol, jardim lindo, vivaz...
Meu pranto rega as rosas sorridentes
porque lembro que tu por mim não sentes
o amor que - não sabia - era fugaz.

Eu molho um beija-flor, aflito assaz,
são lágrimas que caem, insistentes.
Saudade dos teus ósculos ardentes
consome o meu viver cruel, voraz.

As marcas indeléveis dessa história
açoitam o meu peito sofredor
outrora tão feliz, leve, risonho.

Momentos que ficaram na memória
agora só me trazem grande dor,
pois eu ainda os vivo quando sonho.
__________________________

GRITOS DA NATUREZA

Gemidos abafados... Desespero!
Motores insensatos... Vai-se a vida!
A nossa natureza consumida
sem dó nem piedade... Destempero!

Florestas que se vão... Quanto exagero!
O verde cada vez é cor sumida.
Assim, a humanidade está perdida!
Se sobra pouca mata, há entrevero.

Não dá para entender o ser humano:
destrói seu ambiente, a sua casa
querendo agigantar seus capitais.

Parece irracional, por tão insano...
Não sabe que, se em volta tudo arrasa,
as cenas que já viu não verá mais.
__________________________

NUVEM DOS MEUS ENCANTOS

Oh, nuvem serena de toque macio
Às mãos tão suaves que apalpam maçã
Entrego-me inteiro em total desvario
Sentindo a magia da mais fina lã

O vento te traz em festivo assobio
Eu me refastelo na linda manhã
Aqueço minh'alma, domino meu frio
Tu és dos encantos jeitosa artesã

Eu quero em teus braços fazer meu abrigo
Dos sonhos dourados o doce recanto
Qualquer das veredas que trilhes eu sigo

Afagos gostosos, sem par acalanto
Eu tenho deveras estando contigo
E disso resulta um feliz, alto canto
__________________________

O JARDIM DOS SONHOS

Na firme relva dos meus sonhos eu caminho
Por entre cores e perfumes fascinantes
Noto sorrirem meus sentidos radiantes
Embriagados pelo enleio, um nobre vinho

Me cumprimentam joias lindas, odorantes
Vejo bailar no céu cantor longe do ninho
A melodia rara entoa o passarinho
Puro deleite a me tomar, doces instantes

Metamorfoses concluídas, matizadas
Dão mais beleza àquela cena já sublime
Plena de paz e harmonia abençoadas

Torpor, delírio, sei que em vão é tal pedido
Mas vou rogar que o despertar não se aproxime
Chegando, em breve quero estar adormecido
__________________________

PEDRA PRECIOSA

Explorador que sou encontro a mina
A reluzir me surge a joia rara
Meu coração, ao contemplar, dispara
Tanta a beleza que seduz, fascina

Tesouros lindos, explosão de brilhos
D'alta pureza a encantar o andante
Me vejo atônito naquele instante
Por um momento abandonei os trilhos

Em regozijo e dessa luz mui pleno
Logrei partir pr'a sideral viagem
Na qual notei o quanto és formosa

Felicidade, em venturoso aceno
Sorriu pra mim por meio dessa imagem
O teu olhar é pedra preciosa
__________________________

RETRATO DE UMA PAIXÃO

Meu coração flechado, incandescente
Em brasa, é só paixão, não se consome
Quanto mais queima, mais ele tem fome
Da tua chama forte e mui ardente

Mergulho em rio de fogo... Que Profundo!
Voraz a me sugar por caudaloso
Intenso, sedutor, misterioso
Império da emoção... Oh, lindo mundo!

Das armas do prazer disponho, enfim
Pros braços da loucura eu te arrebato
Pintando a nossa cena de carmim

Desejos se entrelaçam sem recato
Me vejo inteiro em ti... Te sinto em mim!
Guardei dentro do peito esse retrato

Fonte:
Recanto das Letras

Regina Céli Alves da Silva (A Ciranda do Tempo na Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar)


No romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, a leitura dos elementos narrativos, tais como, espaço, tempo, narrador, linguagem, mostra-se bastante reveladora, permitindo uma análise consistente da obra.

Neste artigo, voltaremos o foco para a categoria temporal no texto de Nassar. O título da narrativa, nesse sentido, já é bastante revelador, pois inscreve no sintagma “lavoura arcaica” as dimensões de espaço e tempo para a qual está voltado. Portanto, mais do que observar um aspecto óbvio nas construções ficcionais, isto é, o investimento temporal que as perpassa, chamamos a atenção para o fato de esse investimento ser de suma importância para o estudo da obra citada. Antes, porém, de iniciarmos as reflexões sobre o tempo, torna-se necessário um brevíssimo resumo do romance, sem o qual, talvez, nossas incursões fiquem prejudicadas.

A história é narrada, em primeira pessoa, por André, personagem principal da trama. Ele é o filho pródigo, aquele que retorna a casa, pelas mãos do irmão mais velho, que o encontra e implora por sua volta. A partir desse reencontro com Pedro, André inicia o retorno, tanto através da memória, relembrando os acontecimentos que o marcaram enquanto ainda vivia na casa dos pais, quanto pela experiência da chegada ao lar, agora com uma visão mais apurada. Os pais e os outros irmãos, especialmente Ana, com quem tem (ou quer ter) uma relação incestuosa, e Lula, o irmão mais novo, ficam satisfeitos em revê-lo.

De antemão, percebemos que a exposição das ocorrências na obra está sujeita ao crivo da memória de André, e, portanto, está condicionada ao seu singular olhar, à sua percepção. Isso é reafirmado pela voz narrativa, na passagem em que diz: “...as coisas deixam de ser vida na corrente do dia a dia para ser vida na corrente da memória” (NASSAR, 1982, p. 86).

Assim, nesse movimento de volta às origens, à casa do pai, o narrador parte numa volta circular e onde se lê a partida se lê também o retorno, e vice-versa. O presente reencontra o passado e este retorna ao presente, pois “para onde estamos indo” (NASSAR, 1982, p. 30), pergunta-se André, “estamos indo sempre para a casa”, (Idem, ibidem), ele mesmo responde.

Não é à toa, por conseguinte, que o texto esteja dividido em duas partes, "A partida" e "O retorno". Na primeira, "A partida", ocorre uma evocação no tempo, da época em que André, ainda vivendo em uma pensão interiorana, recebe a visita do irmão. A chegada de Pedro aciona no narrador a partida/retorno ao passado, na memória/imaginação, quando ainda vivia na fazenda do pai. André, voltando os olhos para o passado, entrelaça tempos, misturando-os em fatos, lembranças, sonhos, e interpretando livremente os fios lançados no solo narrativo, buscando a si próprio nas tramas temporais. Ocorre no romance um investimento na subjetividade, A experiência interior do indivíduo, já inscrita no discurso em primeira pessoa, é reafirmada em toda a construção do corpo literário. Dessa forma, a compreensão do tempo, passando pelo filtro interno do narrador, abre possibilidades muito amplas de leitura, liberando o solo textual da linearidade da cronologia oficial.

O olhar narrativo, afetado pela vivência do presente, volta ao passado, assimilando-o por um novo prisma no qual pode rever o que foi e o que poderia ter sido. Modifica-se, pela narrativa do presente, o texto daquilo que passou, pois a reflexão atual de André leva-o a redescobrir em si mesmo dimensões que lhe foram (re)veladas com o grifo social, garantindo, até sua partida, a obediência às regras da casa do pai. Por isso mesmo, as palavras do pai vêm à tona no discurso do narrador, expondo as raízes que lhe fundamentaram a conduta desde a infância.

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; se medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza; não tem começo, não tem fim; [...] (NASSAR, 1982, p. 45)

[...] em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar [...] (Ibidem, p. 50)

[...] a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete. (Ibidem, p. 53)

Ao cultuar a paciência como a grande virtude, o pai concebe o homem como paciente de sua própria história, de modo que o tempo vivido se estreita numa eterna espera. Incapacitado de atuar, só resta ao indivíduo receber pacientemente o fruto plantado por outros, passando-os adiante, para compor um ciclo, sempre igual, “sem começo nem fim” (Ibidem, p. 45).

As palavras do pai, no decorrer do relato de André, estarão sempre voltadas para esse tipo de atitude paciente, imóvel, não aberta às mudanças. Mas como a vida não é só uma espera, às palavras do pai juntarse-ão as do filho, ampliando e revendo o entendimento do tempo e de sua passagem.

O tempo é versátil, o tempo faz diabruras [...]. (Ibidem, p. 82)

[...] porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser ágil (Ibidem, p. 84)

[...] o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento preciso da transposição? Que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? Que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? (Ibidem, p. 85-6)

A versatilidade do tempo assinalada no discurso do narrador aponta para a visão mais ampla, e mais fecunda, da passagem temporal. E, mesmo reconhecendo a soberania do tempo sobre a vida, pois o entende como um algoz, suave e terrível, também o sente como um demônio capaz de fazer diabruras, imprimindo no homem uma competência. Tal competência o narrador demonstrou, ao agir sobre seu próprio percurso existencial, partindo da casa do pai, abandonando a segurança dos seus limites e das palavras paternas, para encontrar seu verbo singular, ainda que para isso tivesse que se expor às diversas ações do tempo: a chuva, o sol, o frio, a fome. Por isso, mesmo identificando em sua história os fundamentos originários do mito do filho pródigo bíblico, André amplia as dimensões do mito, renovando-o, porque ao se apropriar da história mítica, incorpora-a ao seu domínio particular, transgredindo códigos culturais que, até então, eram de domínio coletivo.

É na história do filho pródigo, refeita com requintes proporcionados pela capacidade de reflexão do narrador, que vamos encontrar a escritura do romance, percebendo nele o trabalho múltiplo, diversificado e pessoal, não só com o tempo, mas também com todas as outras dimensões que participam da armação literária. A parábola bíblica conta a história do filho pródigo, que deixa a casa paterna levando sua parte nos bens da família e, após andança pelo mundo, retorna à casa do pai que, para comemorar, festeja com a carne de um bezerro, vinho e dança a chegada do filho.

O texto bíblico põe em evidência suas características dogmáticas, formativas, construindo, pela representação simbólica do filho pródigo, uma fábula que vai além da simples partida e retorno do filho a casa, revelando um conteúdo no qual a paciência e a comiseração do patriarca são virtudes ressaltadas nas mãos de quem retém o poder, pois acolher aquele que retorna, que no excesso de suas ações rebelou-se contra o pai, significa recuperar com “magnificente bondade” a ordem onde esta havia sido quebrada.

Encontra-se, ainda, na parábola bíblica, um reforço a respeito do retorno à origem e à repetição eterna e circular das lições do pai/Pai. Essa circularidade faz aparecer outro mito, o do eterno retorno. Mas, como bem o compreende André, a passagem do tempo produz marcas e o indivíduo, envolvido no processo histórico, na dinâmica dos acontecimentos, se depara, a todo o momento, com novos rumos, novos projetos, mesmo que venham revestidos em suas velhas roupagens.

Assim, por exemplo, o século XX revistou a tradicional fonte bíblica através do texto escrito pelo autor francês André Gide. Intitulada “A volta do filho pródigo”, a narrativa gideana aborda a parábola original, desfazendo, no entanto, a ideia das repetições eternas e iguais. Nessa obra, Gide faz um acréscimo humano, aumentando o número de personagens, inserindo a mãe, o irmão caçula e um filho pródigo que, ao retornar, não vem resignado e humilde, mas marcado pela diferença de quem viu o mundo, conheceu outras pessoas, outros lugares, alargando suas fronteiras, seus limites.

Tanto a escritura francesa quanto a Lavoura arcaica, de Nassar, fazem mais do que relatar a volta ao lar do filho resignado e submisso. Ambas investem no questionamento, na não aceitação gratuita da submissão, pois, afinal, o mundo e suas relações já não são mais os mesmos.

Em Lavoura arcaica, uma grande diferença se estabelece já na primeira linha da narrativa, uma vez que, de forma oposta à parábola bíblica, a história é narrada pelo próprio filho pródigo. Ou seja: ele conta o que viu, sentiu, aprendeu. Não há outra pessoa manipulando sua pessoal versão dos fatos. Lendo sua história, participamos, junto a ele, dos desejos, sentimentos, emoções, fantasias, enfim, de tudo o que compôs a sua fuga.

Compreendemos, portanto, que, se André se identifica com a mítica figura do filho pródigo, é porque percebe que, diante das situações capazes de gerar algum tipo de mudança, que não se sabe aonde vai dar, é muito mais fácil apostar nas conhecidas fórmulas, no retorno de antigos equilíbrios. Mas ele se coloca em outro lado, aquele de quem simplesmente não olhou o frio ou a fome de outra pessoa, mas de quem os sentiu no próprio corpo.

A preocupação de André em registrar, em contraponto com as palavras do pai, esse lado do discurso, o verso e o reverso da moeda, fica bem clara, por exemplo, quando ele relembra a Pedro que o pai, sentado à cabeceira da mesa, na hora das refeições, com toda a família a sua volta, costumava contar a história de um faminto. É a história de um homem que, estando com muita fome e passando diante de um palácio, resolve parar e pedir uma refeição aos guardiões do local. Como resposta, ouve que o amo, o dono do palácio seria o único capaz de oferecer-lhe tudo de que necessitava. Uma vez na presença do senhor, um ancião de barbas brancas, explica-lhe sua difícil situação e o homem, compadecido, concorda em lhe dar comida e bebida à vontade.

Mas, o que o faminto pensava ser o fim de sua fome, pareceu-lhe, ao contrário, uma tortura, pois o ancião, em vez de mandar servir comida de verdade, mandou trazer, para testar a paciência e o caráter do outro, um grande banquete fictício, isto é, não havia o que comer, tudo não passava de encenação.

Diante da cena, o necessitado não se dá por vencido e entra no jogo, elogiando as iguarias, os vinhos, fingindo, inclusive, estar embriagado, pois, pensa consigo mesmo: “os pobres devem ter muita paciência diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de mostrar irritação” (NASSAR, 1982, p. 69).

Finalmente, estando o rico satisfeito com o que presenciara, afinal havia encontrado um homem com o “espírito forte” (Idem, ibidem, p. 73), o caráter firme, e, sobretudo, que “revelou possuir a maior das virtudes de que um homem é capaz: a paciência” (Idem, ibidem, p. 53), resolve então convidar o faminto a morar em sua casa, prometendo-lhe que nunca mais passaria fome ou sede. Logo em seguida, manda servir um pão robusto e verdadeiro.

Terminando de narrar e lembrar a Pedro a velha história que o pai tantas vezes contara nos seus sermões, ao redor da mesa de refeições, André pergunta ao irmão: Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto? Como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental? (Ibidem, p. 53)

E, então, André narra para o irmão uma das cenas omitidas pelo pai; aquela em que, fingindo-se embriagado com o vinho fictício, e antes mesmo de receber o elogio por sua paciência, o faminto, com a força de sua fome, surpreende o anfitrião, aplicando-lhe violento murro. Mas logo trata de esclarecer o incidente, proclamando-se extremamente agradecido pela bondade do outro, satisfeitíssimo com o banquete e com o vinho, que, no entanto, subira-lhe à cabeça, levando-o a desfechar o soco contra o benfeitor.

Esse outro lado da história é, com certeza, muito menos interessante para todos os que detêm o poder, sendo, por isso mesmo, omitido em nome da conservação da ordem e de posturas de subserviência e aceitação. No entanto, André, que durante muito tempo em sua vida, conhecera apenas a versão do pai, o lado dos que sempre comeram os frutos plantados por outros, agora podia, conhecendo novas versões das histórias, o lado dos famintos, por exemplo, reconhecer a si próprio como uma face diferente na história da família.

Não é por acaso que ele, reexaminado a parábola do filho pródigo, reconduz sua memória ao contexto religioso que tanto influenciou sua vida desde pequeno. Mas, ironicamente, o menino que teve os dogmas religiosos da tradição judaico-cristã como suportes e argumentos em sua educação, no decorrer do tempo, se vê envolvido no mais transgressivo dos comportamentos, a relação incestuosa que deseja manter com sua irmã Ana.

E é essa manifestação incestuosa da sexualidade que abre em sua vida a impossibilidade maior de reconduzi-lo, mesmo que quisesse, ao retorno igual, a um reequilíbrio dentro do código tradicional de sua família. Em suas palavras, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” (NASSAR, 1982, p. 94).

A enfermidade, a loucura, o sopro, enfim, a reunião de manifestações tão diversas em seu amor pela irmã, conjuga-se, porém, no discurso de seu corpo, contaminando-o e levando-o a ultrapassar, com sua prodigalidade, conteúdos normativos.

Na divisão entre a sua fé e seu lado objetivamente carnal, André reúne os pedaços que o constituem como ser humano completo e inicia o aprendizado de si próprio, para tentar enxergar quem ele é na realidade e na história da família.

O retorno no tempo em busca de sua narrativa existencial revela que sua história tem atrás de si muitas outras histórias, como a parábola do filho pródigo, eternamente gravado na escritura bíblica. Mas o aprendizado acontece quando percebe que o seu não é mais um texto compilado.

A experiência pessoal narrada pelo filho pródigo de Lavoura arcaica reconduz a trama romanesca de modo que ela não mais traduza os anseios e necessidades de pessoas que não a viveram (como acontece com o texto bíblico). Ao contrário, faz com que seja uma versão singular, um registro diferente de quem quer escrever sua história como um profeta, mas “não aquele que alça os olhos para o alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre o s frutos da terra” (Idem, ibidem, p. 76).

Repetir as palavras do pai, dos velhos textos, não caracterizou a narrativa como uma cópia alienada do ato de viver projetado por outros, mas como resultado do exercício pleno da vontade de conhecer, transformado na compreensão de que a sabedoria está em aprender a conjugar os diversos tempos com a devida reverência a cada um deles, sem que um não anule o outro.

A escritura do texto constitui o grande lucro de André, porque, ao fazê-lo, ele se capacitou, na medida em que, olhando para frente e para trás, reinterpretou sua trajetória de vida, para abrir o diálogo entre o que foi e o que é, remexendo o solo cultural e familiar em busca de suas raízes, sem medo de enxergá-las.

Sendo assim, André faz com o seu texto aquilo que o agricultor zeloso faz com a sua terra: utiliza as ferramentas com amor e carinho para lavrar seu campo, nutrindo-o com os implementos necessários ao crescimento da vegetação e fazendo-a florescer e frutificar, não como uma fala desvinculada do todo cultural, mas sim, como uma palavra respeitada em sua diferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A PARÁBOLA do filho pródigo. In: Bíblia sagrada. Novo testamento. São Paulo: Edigraf, 1961. T. 4. Lucas, c. 15: 11-32.
GIDE, André. A volta do filho pródigo. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984.
MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Trad. Flávio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972.
NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
POUILLON, J. O tempo no romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1974.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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Sobre a autora do artigo:
Regina Celi Alves da Silva possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984), Mestrado em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Doutorado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999) e Pós-Doutorado em Letras (Teoria da Literatura e Literatura Brasileira) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2011). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, atuando principalmente nos temas: Roland Barthes, semiologia, crítica e teoria literárias; Literatura e cultura brasileiras. Já atuou também como professora de Língua portuguesa, com ênfase na Produção Textual, em Faculdades de Direito, Administração e Ciências Contábeis. (Fonte: Currículo Lattes)

Fonte:
Revista Soletras. Ano XI, Nº 22, jul./dez. 2011. São Gonçalo/RJ: UERJ, 2011.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 132


Jessé Nascimento (Uma Noite)


Quando a madrugada espreguiçou-se, despertada pelos primeiros clarões do dia, ele ainda caminhava sem destino, ao encontro do nada. Há horas vagueava sem conseguir entender porque e para que. Seus pensamentos emaranhados, aturdidos, afugentados, não o deixavam situar-se. Sentia-se terrivelmente só. Só e vazio. Já não sabia quantas vezes sentara-se no meio-fio e levantara-se para continuar aquela estranha caminhada.

Procurava, no entanto, lembrar-se de como tudo começou. Haveria uma razão. Mas, qual? Por que a sua mente teimava em não ajudá-lo?

Apalpou a cabeça ainda dolorida, penteou com os dedos os cabelos em desalinho, tentou recompor-se. E maquinalmente, febrilmente,  continuou tentando decifrar a charada que uma pseudo-amnésia lhe apresentava. Um encontro que não se deu? Uma fuga do não-sei-o-quê? Uma briga? E depois a bebida...

Por que, Senhor, ali estava a velar a sonolenta noite, a acompanhar as silenciosas horas da fria madrugada? Já estava, por certo, cansado de encontrar as mesmas esquinas, saudar os mesmos postes. Seus olhos dormitavam alternadamente, exaustos por um longo dia. Finalmente entregou os pontos. Deixou-se vencer pelo sono, pela fadiga.
                                  ...

De um sobressalto ergueu-se assustado pelo som das buzinas e com as bruscas freadas dos ônibus que já cuspiam seus passageiros aqui e ali. O sol já se fazia alto. Soberano e altaneiro.

O seu ontem deixou de existir. Estava refeito - refeito? - para um novo dia...

Fonte:
Recanto das Letras, 22/05/2015.

Antonio Cabral Filho (9. Colar de Trovas) Tema: Educação


01
A educação  almejada
ganha espaço  e  ressonância,
se a semente for plantada
*no Jardim da nossa infância.*
Abílio  Kac (RJ)


02
No jardim da nossa infância
louvável foi a educação,
com muito amor e constância
*eu guardo  no coração!...*
Luiz Cláudio (RN)

03

Eu guardo no coração
um sentimento profundo.
Pois na minha educação,
*tenho toda paz do mundo.*
Neiva Fernandes (RJ)

04
Tenho toda paz do mundo
enquanto potencial,
o bem se torna fecundo
*no campo educacional.*
Gilberto Cardoso (SC)

 05
No campo educacional
serei eterno aprendiz,
esse ato fenomenal
*um anjo sempre me diz!...*
Luiz Cláudio (RN)

06
Um anjo sempre me diz ,
que devemos sempre amar.
Então  para ser feliz,
*o amor vou compartilhar!*
Gleyde Costa Campos (RJ)

07
O amor vou compartilhar
com a minha felicidade.
Para sempre vou te amar
*e ser feliz de verdade.*
Neiva Fernandes  (RJ)

08
Vou ser feliz de verdade,
agradeço a professora,
que ensinou-me a liberdade,        
*pela luz libertadora.*
Antônio Cabral Filho (RJ)

09
Pela luz libertadora
eu conjuguei o verbo amar,
minha eterna professora
*me incentivava estudar!....*
Luiz Cláudio (RN)

10
Me incentivava a estudar
para que eu pudesse um dia,
aprender e me formar
*naquilo que eu mais queria.*
Adriano Bezerra (RN)

11
Naquilo que eu mais queria
estava entrar na sala,
onde eu sempre poderia
*captar uma culta fala.*
Prof. Roque (RS)

12
Captar uma culta  fala,
provinda de muito humor,
sempre regozija e embala,
*o aprimorar com valor.*
Agostinho Rodrigues (RJ)

13
O aprimorar com valor
faz parte da educação,
ensinar com mais calor
*com muita dedicação.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

14
Com muita dedicação
nos fazemos ensinar.
Feitos com coração
*todos irão desfrutar.*
Madalena Cordeiro (ES)
15
Todos irão desfrutar
de um Brasil mais consciente
do respeito a se mostrar,
*com educação latente.*
Oliveira Caruso (RJ)

16
Com educação latente
do adulto e da criança,
o país vai para a frente
*e se renova a esperança.*
Antonio Francisco Pereira (MG)

17
E se renova a esperança
que dias melhores  virão;
nos deixando  para  sempre,
*uma bonita lição.*
Neiva Fernandes (RJ)

18
Uma bonita lição

de  educação cidadã;
justiça e humanização,
*à mulher concidadã.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

19
A mulher concidadã

que leva o país avante,
sua luta não é vã
*a educação é constante.*
Aurineide Alencar (RJ)

20
A educação  é  constante

onde existe sentimento;
com alegria incessante
*surgida do pensamento.*
Neiva Fernandes (RJ)

21
 Surgida do pensamento

de uma mestra abençoada,
nosso aperfeiçoamento:
a educação almejada.
Antonio Cabral Filho (RJ)
TROVAS DO FECHAMENTO

A
*Surgida do pensamento*

e por Deus abençoada,
todo meu contentamento
*a educação almejada!*
Neiva Fernandes (RJ)
B
*Surgida do pensamento*
uma ideia desejada;
todos tenham cem por cento,
*a educação almejada.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

C
*Surgida do pensamento,*
de uma mestra abençoada,
nosso aperfeiçoamento:
*a educação almejada*.
Antônio Cabral Filho (RJ)
D
*Surgida do pensamento,*
ideia realizada.
Vou dar graças no momento,
*a educação almejada !*
Gleyde Costa (RJ)

Fonte:
Trovadores do Brasil

Vinicius de Moraes (O Camelô do Amor)


Parai tudo o que estais fazendo, homens de gravata e sem gravata, funcionários burocráticos e deambulantes, mercadores e fregueses, professores e alunos, íncubos e súcubos - e escutai o que eu vos tenho a dizer.

Chegai-vos a mim e vinde ver toda a beleza que estou vendendo a preço de banana! Homens da Cifra e da Sigla, de Toga e de Borla-e-Capelo, de Fardão e de Sobrepeliz: esquecei por um momento vossas conjunturas e aproximai-vos de olhar sincero e coração na mão.

É favor suspender por alguns minutos a partida. Senhor Juiz Armando Marques! Conserva-te assim, o pé no ar, meu bom Pelé, qual fantástico dançarino. Feras da Seleção: atenção! Alerta, aviadores do Brasil! Capitães de mar: estamos no ar!

A postos, emissoras em cadeia! Câmaras de cinema e televisão: ação! Estações de rádio e radioamadores: ligai os receptores! Atenção, Intelsat quatro... três... dois... um... Aqui fala o poeta, o jogral, o menestrel, o grande Camelô do Amor!

O Amor tonifica o cabelo das mulheres, torna-os vivos e dá-lhes um brilho natural. Mise en plis? Só de Amor! nada melhor que divinos cafunés para as moléstias do couro cabeludo!

Olhos opacos? Amores fracos! Olhos sem brilho? Amor-colírio! Olhos sem cor? Amor! O Amor branqueia a córnea, acende a íris, dilata as pupilas cansadas. E ainda dá as mais belas olheiras naturais. Dois beijos, dois minutos: dois olhos claros de veludo!

O Amor limpa de rugas a fronte das mulheres, elimina os pés-de-galinha e acrescenta lindas covinhas ao sorriso. Tende sempre em mente: o Amor coroa as mulheres de pesados diademas invisíveis. Amai, coroas! A mulher que ama reinventa o Paraíso. A mulher que é amada move-se majestosamente!

O Amor pitanguiza o nariz das mulheres, torna-os frementes, com delicados tiques, particularmente nas asas. Narizes gordurosos, com propensão a cravos e espinhas? Muitas, muitas festinhas contra o nariz amado!

O Amor horizontal é melhor e não faz mal. Bocas rosadas, frescas, palpitantes? Beijos de amor constantes! As bocas mais beijadas são mais bem lubrificadas. Só isso dá à sua boca o máximo!

Qual Nardem, qual Rubinstuff ! - morte às pomadas! Pomadas, cremes, só de Amor, amadas! Pele jovem e macia? Amai, se possível, todo dia: e ante o esplendor de vossa pele há de ruborizar-se a madrugada.

Juventude noite e dia? - Carne sem banha! Ela tem mais freguesia? - Sempre se banha! Aliás, uma coroa - Que coisa boa! Bem que ela tem seu lugar. E... sabor de loucura!
O Amor estimula extraordinariamente a higiene bucal, pois como todos sabem, a água-e-sal é o composto químico da saliva, que consequentemente se ativa, impedindo a halitose e tornando a carícia palatal!

Se é de Amor, é bom! Não sabe aquela que não põe desodorante? Perdeu o marido e hoje não pega nem amante ... Sim, cuide o subextrato de suas asas, anjo meu, mas nada de exagero ... Uma axila sem cheiro pode levar um homem ao desespero. E não bobeie, não dê bola, não se iluda: um homem ama uma axila cabeluda! Siga o exemplo da mulher italiana: não usa lâmina e é mulher superbacana. Ponha um tigre debaixo do braço!

E basta de pastas, ó tu que levas o leite contigo - bom até a última gota! Se amares, o sangue circulará melhor em tuas glândulas mamares, e consequentemente terás seios sinceros, autodidatas, substantivos! Algo mais que o Amor lhe dá...

Casamento serve bem ao grande e ao pequeno. Serve bem à beça! Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que viaja ao lado seu. Pois, no entretanto, eu lhe digo: quase ela fica a perigo... Salvou-a um justo himeneu. Alivia, acalma e reanima! Todo homem que chega em casa deve levar beijos mil: da mãe e da menininha. E como é bom ter seu amor junto ao corpo... É a pausa que refresca... Quem a casar se mete, repete!

Um mínimo de cirurgias plásticas, dietas patetas e essas ginásticas fantásticas... Vivei e amai ao Sol! Para aquele que ama, vossos senões são poesia. Nada mais lindo que as feiurinhas da mulher amada!

Por isso, eu grito aqui: regulador? - besteira! A saúde da mulher está em ser boa companheira. Não há pílula para a percanta que se preza. Seja mulher! conserve o seu sorriso! valha o quanto pesa! Use o auge da bossa e namore o quanto possa: na praça, na praia, no prado - no banco que está ao seu lado!

Eu sempre digo, e faço figa do que diga seu melhor, muito melhor que óleo de fígado. Porque, além de excitar o metabolismo basal, para o vago-simpático é o tônico ideal!

Eis seu mal: não amar. Daí, decerto, a causa dessas suas tonteiras, dessas náuseas... Ame king-size! E se lembre sempre o espetáculo começa quando a senhora chega! Quem não é o maior tem que ser o melhor! Por isso, espere um pouco, por favor... E repita comigo, assim... A-m-o-r!

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 131

Atenção: Aos assinantes que recebem as postagens em seu e-mail
Desconsidere o Varal de Trovas n. 131 de ontem, onde haviam erros em minha trova, observado pela irmã Carolina Ramos e considerem o varal abaixo, com a trova do Mestre Assis substituindo a minha, mas dentro do mesmo tema. 

Sinclair Pozza Casemiro (O Homem da Enxada)


Este causo é verdadeiro e eu mesma presenciei. Bem, não é que tenha presenciado a história no momento do acontecido, da aparição. Mas eu estava lá, ouvi no outro dia os depoimentos ainda calorosos e sôfregos da Dora, da Santine. E participei daquela magia, daquele friozinho assustador e gostoso que dá na gente pelas histórias de assombrações. Foi na terceira peregrinação da COMCAM no Caminho de Peabiru, na fazenda São Jorge, da casa da Penha. Penha é uma senhora maravilhosa, bondosa, generosa, dadivosa, alegrosa, osa...osa...osa. Ela é esposa (ôsa) do administrador da Fazenda, trabalha no postinho de saúde da fazenda, atende a todos com carinho, dedicação e, além disso tudo, é mãe acolhedora e amiga. Bem, não sei como sobra espaço, mas ela é tudo isso e muito mais. Mentira, sei sim: energia é como sentimento, quanto mais você dá, você divide, mais tem, mais se multiplica.

Pois muito bem: a gente foi se alojar, no segundo dia de peregrinação, na fazenda São Jorge, tudo organizado janta, banho, pouso e café da manhã por dona Penha. Os quitutes, os causos, o clima da fazenda, de amizade, etc, etc, a meditação do Amani e tal, tudo isso, nem precisa descrever. É só imaginar o melhor. Na hora de dormir, tinha a igreja, a escola e as casas. Era só cada um escolher o seu cantinho pra relaxar e sonhar.

Teve um timinho que escolheu, de pronto, a igreja. Claro, mais protegidos, seguros. E tinha uma novidade nessa peregrinação: o casal Santine e Déferson, que estavam de lua-de-mel, haviam se casado naquela semana. E gente boa tava ali: ele e ela prestativos, dedicados, amorosos. Também quiseram ficar na igreja. A igreja era, de fato, um encanto: pequenininha, limpinha, organizadinha, bem arrumada. Penha tinha mesmo pensado em tudo para receber bem os peregrinos.

Depois da janta, das visitas, dos causos, das orações, das fotos, da contemplação ao luar, etc, etc, o recolhimento. E, depois do recolhimento, o sono pesado, afinal, foram 16 km mais ou menos de caminhada e pra quem estava de apoio, um dia de tensão e preocupação que, graças a Deus, tinha terminado maravilhosamente bem. Pra completar, bem que faltava mesmo algum "inusitado". E ele aconteceu.

Depois do primeiro sono, longo e pesado, um e outro precisava ir no matinho. Tudo bem. Rotina. Mas, o casalzinho foi junto. E ele a protegendo sempre, é claro. Quando eles já estavam quase de volta, ele se apavora:

– Santine, olha lá...

– Olha o quê, morzinho? Onde?

– Ali, um homem com uma enxada... de branco... carpindo...

– Onde? Meu Deus! Onde, homem?

– Ali...

E apontava, os dois olhando para o mesmo ponto, ele vendo tudo e ela, nada.

– Morzinho, cê tá sonhando... num tem nada ali.

– Tem sim... Ele tá carpindo, de branco... Olha!

Mas ela não viu, mesmo. Olhou para o marido, ele estava atônito, incontrolado. Olhou para o homem da enxada, de branco e não viu nada. E ele desistiu de mostrar, ela não via mesmo. Começaram a voltar, devagarinho, de fato, alcançaram a porta da igrejinha, entraram. Quase não conseguiam contar o que aconteceu, não o que viram, pois quem viu foi só o marido.

Quem estava na igrejinha ficou em pânico. A Dora, que estava estourando de vontade, catou o cobertor e o colchão que estavam no chão, abaixo do altar, logo na frente, mas buscou ainda um lugar mais santo, mais protegido: debaixo, bem debaixo da mesa do altar. Mesmo estourando, nem quis saber de ir lá fora. Não sei como se arranjou, ela não conta. Só diz que encobriu cabeça, corpo, tudo que pôde, rezou, rezou até de manhã cedo...

De manhã cedo, outra história, São Jorge do céu!

Quando eles contaram pro povo da equipe de apoio, a Eloah, que cuidava do pouso dos peregrinos, falou:

– Não te falei, Sirlene? Eu escutei, de madrugada, uma chinela arrastando lá fora... e chegou até a porta da casa e bateu, deu uns toques... Não te falei? Não era ninguém!

Nessas alturas, mais gente havia ouvido as chinelas se arrastando e os toques à porta, de madrugada... Dona Penha chamou num canto alguns desses narradores:

– Gente, vou pedir um favor... Não espalhem. Esse homem da enxada vem assustando muita gente por aqui, mesmo. Ele chega, de branco, arrasta chinela, dá umas carpidinhas... e sai. Não espalhem que vocês também viram, senão as pessoas daqui ficam mais aterrorizadas ainda. Uns dizem que foi matado... Outros dizem que é alma penada, que matou muita gente... A gente não sabe dizer o que é. Nem reza adianta. Por favor, não espalhem.

Pois é... agora, quem quiser acreditar...

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do Coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri). Campo Mourão/PR: Singrafm 2005.