terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Monteiro Lobato (Fábulas) A Formiga Boa – A Formiga Má


I – A formiga boa

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé de um formigueiro. Só parava quando cansada; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas*.

Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu

– tique, tique, tique...

Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina*.

– Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.

– Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...

A formiga olhou-a de alto a baixo.

– E que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?

A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:

– Eu cantava, bem sabe...

– Ah!... – exclamou a formiga recordando-se. – Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

– Isso mesmo, era eu...

– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.

A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

II – A formiga má

Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.

Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo.

A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde se abrigar, nem folhinhas que comesse.

Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou – emprestado, notem! – uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o permitisse.

Mas a formiga era uma usurária* sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.

– Que fazia você durante o bom tempo?

– Eu... eu cantava!

– Cantava? Pois dance agora, vagabunda! – e fechou-lhe a porta no nariz.

Resultado: a cigarra ali morreu enrijecida pelo frio; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste.

É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?

Os artistas – poetas, pintores, músicos são as cigarras da humanidade.
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– Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. – Vovó nos leu aquele livro do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve.

Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História Natural, mas de Moral.

– E tanto é assim – disse ela – que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam.

– Isso não! – protestou Emília. – Não há animalzinho, bicho, formiga ou pulga que não fale. Nós é que não entendemos as linguinhas deles.

Dona Benta aceitou a objeção e disse:

– Sim, mas nas fábulas os animais falam a nossa língua e na realidade só falam as linguinhas deles. Está satisfeita?

– Agora, sim! – disse Emília muito orgulhosa com o triunfo. – Conte outra.

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Glossário
Tulha - é um local onde se guardam os cereais, alimentos.
Paina é uma fibra natural semelhante ao algodão, oriunda dos frutos da paineira. É usado como enchimento para colchões e travesseiros.
Usurária - Agiota; aquela que empresta dinheiro com usura, com juros muito altos.

 Fonte:
 Monteiro Lobato. Fábulas.

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