terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Carolina Ramos (Não Acredito!...)


Germano não perdia a pose, nem quando as circunstâncias tudo faziam para baixar-lhe a crista! Numa dessas, invadiu a casa do amigo, tarde de sábado, sem avisar e sem pedir licença.

— Oi, Rui, preciso, com urgência de uns ''cobres" e sei que posso contar com tua a amizade de sempre.

Constrangido, o dono da casa invadida, esboçou uma tentativa de defesa — Olha, cara, as coisas, também, não andam nada bem para o meu lado, mas...

Bastou aquele mas... reticente. Brecha perfeita por onde se infiltrou a nova investida do amigo:     
— Aguenta aí, Rui! Não é nada demais... falta tão pouco... uns quinze mangos devem bastar. Só quinze, cara... Isto não faz falta a ninguém! Tá bom?! — Germano continuou, convincente:

— Sabe como é, Rui, casei, e, não demorou muito, começaram as confusões de sempre... a velha questão nora-e-sogra, sabe como é… E agora, minha mulher decidiu que não quer saber de morar com minha mãe! De jeito nenhum! E a coisa entre as duas tá pegando feio! Não tive outro jeito! Pra não tomar partido, tive de comprar, às pressas, um apê minúsculo, dois quartos, sala e cozinha. Um ninho!… E ainda estou pagando o consórcio do Gol… sabe como é, Rui… e, o pior é que o apê tem que ser mobiliado... e mobília custa um bocado!...

Germano ignorou a perplexidade do amigo e, foi em frente. Esfregando polegar e indicador de modo significativo, levantou as sobrancelhas, no aguardo da definição. Ante o mutismo do amigo voltou a insistir, incisivo: — Então, Rui, posso contar com os quinze "mangos"? Devolvo logo, logo... Logo que puder. Pago até juros... se você quiser!

Rui engoliu em seco. Não lhe passaram em branco as reticências, antecedentes àquele "Logo que puder", vinculadas à promessa de reembolso. Na cabeça preocupada, sucediam-se cálculos apressados. Cortes hipotéticos de despesas menos urgentes, na esperança de não ter de chegar àquelas pequenas aplicações das sobras suadas, pingadas dos apertos de cada dia, o que, de antemão, sabia inevitável. Sangrar as anêmicas economias e, mais uma vez, adiar sonhos, sempre adiados, seria a única solução mais próxima e viável de não falhar com o amigo.

Foi assim, que, a compra do carro, (tão útil!) mais uma vez, foi parar no fim da pauta. A viagem, da segunda lua-de-mel, acalentada com carinho pelo casal, para compensar a primeira, que nunca acontecera, viu-se postergada para quando... só Deus poderia saber!

As férias da filha... Não! As férias da filha, não! Estas eram sagradas! Intocáveis! Prêmio pelas boas notas no colégio! A filha cumprira a sua parte! A dele, seria cumprida também! Dente por dente!

E, aí, lembrou-se do dentista. Bem... o dentista poderia esperar mais um pouco... não tinha dente doendo... e não iniciara ainda o tratamento...

Enfim... sem aqueles chorados quinze mil, nada, poderia ser completado! O próprio orçamento da família, planejado com minúcias, seria insuficiente, mas... não havia escolha. Germano não desistia e, a dívida seria quitada a curto prazo, como ele afirmara.

O sopro ameno da amizade já apagara da memória de Rui as inquietantes reticências da frase do amigo.

– Tá bom, Gê, tá bom. Amanhã cedo, passo pelo banco. Tenho umas economiazinhas e vou tentar uma ajeitada para descolar tua grana. Volta amanhã à noite.

Mãos cerradas, soco afetivo das falanges... e o costumeiro ritual entre amigos selou a despedida, seguida de cordial abraço.

O tempo correu célere, dia após dia... mês após mês. O fim do ano chegou com roupagens natalinas e lista de compras inadiáveis. A promessa de ressarcimento da dívida permanecia esquecida, como bola furada, largada num canto da memória preguiçosa de Germano. Nem mesmo o cartão de Boas Festas, enviado pelo amigo, para fazer-se lembrado, mereceu resposta.

O orçamento familiar, de Rui ressentia-se. E ainda diziam não haver inflação! O amigo, nem aí! Ausente do mapa e das responsabilidades assumidas!

Mas, o pior ainda estava para vir. Chegou, intempestivamente, pela mão de um Oficial de Justiça. Rui revirava, nas mãos indignadas, a Intimação recebida em virtude das promissórias não quitadas pelo "amigo" e por ele, otário, endossadas, em confiança, por ocasião da compra do malfadado apartamento! A ação movida contra o fiador batia-lhe à porta.

Rui desesperou-se! A incômoda situação clamava por um ponto final. Decidido, sem aviso e sem pedir licença, pouco depois, acionava com vigor a campainha do apartamento de Germano, que, sem esconder a irritação, o atendeu pelo interfone, reagindo com veemência à cobrança:

— Ora, meu caro, então é assim?! Eu lhe disse. Rui, que o reembolsaria quando pudesse... e ainda não posso! E logo você, meu padrinho de casamento, vem à minha porta, as vésperas do Natal, bancar o cobrador, de cara fechada, pedindo de volta o dinheiro que me emprestou numa boa?! Ora, vejam só! E ainda tem coragem de me pedir ajuda para safar-se da justiça! Não acredito!! Juro que não acredito!!!

Perplexo, Rui congelou! Nem abriu a boca para responder! E... responder o que?!!

— O final da história fica por conta do leitor! Eu paro por aqui.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

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