sábado, 14 de dezembro de 2019

Rachel de Queiroz (Direito e Avesso)

    
Conheci uma moça que escondia como um crime certa feia cicatriz de queimadura que tinha no corpo. De pequena a mãe lhe ensinara a ocultar aquela marca de fogo  e nem sei que impulso de desabafo levou-a me falar nela; e creio que logo se arrependeu, pois me obrigou a jurar que jamais repetiria a alguém o seu segredo. Se agora o conto é porque a moça é morta e a sua cicatriz já estará em nada, levada com o resto pelas águas de março, que levam tudo.

Lembrou-me isso ao escutar outra moça, também vaidosa e bonita, que discorria perante várias pessoas a respeito de uma deformação congênita que ela, moça, tem no coração. Falava daquilo com mal disfarçado orgulho, como se ter coração defeituoso fosse uma distinção aristocrática que se ganha de nascença e não está ao alcance de qualquer um,

E aí saí pensando em como as pessoas são estranhas. Qualquer deformação, por mais mínima, sendo em parte visível do nosso corpo, a gente a combate, a disfarça, oculta como um vício feio. Este senhor, por exemplo, que nos explica, abundantemente, ser vítima de divertículos (excrescências em forma de apêndice que apareceram no seu duodeno), teria o mesmo gosto em gabar-se da anomalia se em lugar dos divertículos tivesse lobinhos pendurados no nariz? Nunca vi ninguém expor com orgulho a sua mão de seis dedos, a sua orelha malformada; mas a má formação interna é marca de originalidade, que se descreve aos outros com evidente orgulho.

Doença interna só se esconde por medo da morte — isto é, por medo de que, a notícia se espalhando, chegue a morte mais depressa, Não sendo por isso, quem tem um sopro no coração se gaba dele como de falar japonês.

Parece que o principal impedimento é o estético. Pois se todos gostam de se distinguir da multidão, nem que seja por uma anomalia, fazem ao mesmo tempo questão de que essa anomalia não seja visivelmente deformante. Ter o coração do lado direito é uma glória, mas um braço menor que o outro é uma tragédia. Alguém com os dois olhos límpidos pode gostar de impressionar uma roda de conversa, explicando que não enxerga coisíssima nenhuma por um daqueles límpidos olhos, e permitirá mesmo que os circunstantes curiosos lhe examinem o olho cego e constatem de perto que realmente não se nota diferença nenhuma com o olho são. Mas tivesse aquela pessoa o olho que não enxerga coalhado pela gota-serena, jamais se referiria ao defeito em público; e, caso o fizesse, por excentricidade de temperamento sarcástico ou masoquista, os circunstantes bem- educados se sentiriam na obrigação de desviar a vista e mudar de assunto.

Mulheres discutem com prazer seus casos ginecológicos; uma diz abertamente que já não tem um ovário, outra, que o médico lhe diagnosticou um útero infantil. Mas, se ela tivesse um pé infantil, ou seios senis, será que os declararia com a mesma complacência?

Antigamente havia as doenças secretas, que só se nomeavam em segredo ou sob pseudônimo. De um tísico, por exemplo, se dizia que estava “fraco do peito”; e talvez tal reserva nascesse do medo do contágio. que todo mundo tinha. Mas dos malucos também se dizia que “estavam nervosos’’ e do câncer ainda hoje se faz mistério — e nem câncer e nem doidice pegam.

Não somos todos mesmo muito estranhos? Gostamos de ser diferentes — contanto que a diferença não se veja. O bastante para chamar atenção, mas não tanto que pareça feio.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Nenhum comentário: