Chuva. Da janela, observava o tempo. As nuvens escureceram rápido, engolindo a montanha mais próxima. O vento varria o capinzal, sacudia as árvores, invadia o avarandado, arremessava gotículas prateadas na parede frontal do casarão.
Alheia às momentâneas intempéries, divagava. Deixava-se molhar pelos respingos. Era agradável perceber-se vulnerável. Cada gota escorrida era como um dedo molhado acariciando-lhe a epiderme solitária de afetos.
O vento aumentou de Intensidade, a chuva agora era um chicote cristalino de infinitas pontas... Cerrou as básculas, acendeu a lamparina, dirigiu-se ao quarto na intenção de ressonhar a fantasia interrompida.
Reparou uma monótona e repetitiva goteira caindo do telhado. Pôs sob ela uma bacia, estendeu a mão buscando senti-la. Lá fora, a água descia morro abaixo em grossas torrentes, barrenta, impetuosa. Saltava o barranco e explodia na terra.
O barulho da chuva descendo nas calhas, o rumor do vento assobiando carências e medos, a goteira intermitente no recipiente improvisado, a cascatinha explodindo prata na solidão das pedras e os úmidos e avassaladores respingos deram-lhe um súbito prazer, fizeram-na, sôfrega, comprimir os seios num louco suspiro de posses não possuídas.
Sonhava-o.
Caboclo... queimado pelo sol rural... olhos sedutoramente amendoados, felinos espreitando a presa, garras afiadas, quentes nas suas coxas na varanda, boca vulcânica, língua de chama no seu pescoço... réptil sem veneno acariciando-lhe os ouvidos trôpegos de murmúrios ardentemente dislálicos...
Sentiu todos os tremores num só arrepio.
Lanhou o travesseiro como se fora as costas dele, apertou-o entre os seios, ventre e perna, com volúpia, olhos cerrados, embevecida pela improvável possibilidade de tê-lo...
Bateram.
Pôs-se de pé num salto, as mãos ajeitando o vestido, cobrindo o peito seminu, mexendo nos grampos - um na boca mordida. Tentou recompor-se.
Abriu a porta do quarto quase refeita do êxtase solitário, dissimulando uma trôpega naturalidade, disfarçando a prazerosa tontura provocada por uma incontrolável carência afetiva.
- O que foi? - perguntou sonolenta.
- Alguém lá fora - respondeu a irmã mais velha - pede pousada até a chuva passar.
- Quem? - Não conheço, disse que veio de longe, a cavalo.
- Espera que eu vou ver.
Encaminhou-se à sala, entreabriu a janela, os cabelos soltos no ombro nu sob a camisola.
O moço aguardava. Abriu a minúscula portinhola de vidro, Olhou-o cautelosamente. Perscrutou-lhe o perfil com atenção... Tremeu dos pés à cabeça.
Impossível! ...mas aquele homem era o caboclo que sonhara naqueles instantes pregressos, filhos de uma nebulosamente passional eternidade.
Entreabriu, a custo, a porta de madeira maciça.
- Moça... galopei a noite inteira na chuva... estou com muito frio... será que a senhora poderia...
O homem não completou a última frase.
A jovem e sôfrega mulher não disse c nem poderia dizer nada... o ímpeto não deixaria.
Num átimo, apenas deixou-se mergulhar na sedução do abismo daquele peito molhado pela chuva que súbita e providencialmente aumentara.
Aquela noite chuvosa seria longa... maravilhosamente longa.
Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro entregue pelo escritor.
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