sábado, 28 de dezembro de 2019

Luiz Poeta (Canção de Ninar Estátuas)


Ao se virar, o sangue correu-lhe gélido e impetuoso pelos capilares. Sentiu, estarrecido, o olhar da estátua abismando-se no fundo de suas nebulosas e trêmulas retinas. Conteve o temor inicial e pouco a pouco foi retomando o fôlego. Cerrou e baixou a vista instintivamente, mas levantou-a de maneira tímida e naturalmente cautelosa, tentando resistir àquela metafísica provocação óptica tão... absurdamente humana.

Então, aconteceu a metamorfose... os olhos de bronze foram mudando gradativamente de cor. A princípio eram marrons, depois vermelhos, turquesa, violeta... azuis... expressiva e profundamente azuis... Ele fitava-os boquiaberto. O coração batia-lhe descompassado. O conflito intensificou-se: o corpo da estátua adquiriu movimentos. Suas mãos apoiadas num cajado mexiam-se suavemente. O tórax inflou na primeira respirada e os lábios simularam um tênue sorriso.

Boquiaberto, o transeunte deixou-se cair pesadamente no banco da praça. E a móvel escultura encaminhou-se para ele - o metal das roupas esvoaçando-se no vento, os cabelos de estanho caindo-lhe sobre os olhos... azulíssimos.

O homem afunilou-se no próprio estupor.

A estátua bem próxima - para sua conclusão de autoconsciência esquizofrênica, indagou solenemente:

- Como vai, companheiro?

Ele não ousou responder. Vítreas pelo terror, suas trôpegas pupilas pousaram abruptamente naquela imagem metálica que se movimentava e completava sua fala:

- Há algum tempo eu o tenho observado. Sei de todos os seus movimentos. Cataloguei-os todos no meu arquivo de silenciosas reflexões sobre a vida humana - no meu ângulo de visão, é claro. Colocaram-me neste pedestal olhando eternamente o jardim, privando-me do contato ocular com o portão principal que dá para esta praça. E exatamente por vê-lo sentar-se neste banco à minha frente todos os dias, vê-lo colher flores ou mexer com as cutias… ou ainda arremessar pedrinhas ou grãos de cereais nas águas do lago, bulindo com os peixes, é que eu conheço cada atitude sua, cada movimento ínfimo que seja; até essa sua mania de coçar os cotovelos. Eles são diários, sabia? ... há algum tempo, inclusive, senti que estava ficando estrábico, porque quando o senhor se afastava para o lado oposto à minha visão, o interesse em acompanhá-lo era tanto, que meus olhos quase viravam para a direita ou para a esquerda, onde quer que passasse ou estivesse. Há algumas pessoas que vêm para este lado do parque, mas poucas têm a sua sensibilidade. A maioria delas passa indiferente aos aspectos bucólicos deste jardim. Ficam aqui alguns instantes olhando para o relógio ou consultando o celular, depois retiram-se absurdas e inexpressivas como vieram. Por isso é que eu saí da minha inércia para conversar com você - permita-me, com todo respeito, chamá-lo assim. O que acha disto? Se o incomodo, desculpe-me o atrevimento - eu me estatualizo ou me estatifico (não sei que neologismo usar)... senão... conversaremos.

O homem continuava perplexo, enlevado. Não conseguia compreender aquilo. A estátua, apesar dos olhos fundos e azuis, tinha o corpo todo de bronze, embora se movimentasse e falasse surpreendentemente. Os cabelos finíssimos como capilares metálicos, caía-lhe sobre a testa brilhante sob os raros raios de sol que atravessavam a frondosidade das árvores.

A insistência o convenceu.

- ...mas... como?

- Como... - a estátua intrigava-o mais ainda, parecendo provocá-lo.

- Como você consegue falar?

- Ora como... tenho boca, língua, aparelho fonador e respiração, só isso.

- Mas...você é uma estátua!

- E daí ? Nunca ouviu uma estátua falar?

- Mas é claro que não... é antifísico, fictício, louco, sei lá...

- Como louco? Você não está me vendo, ouvindo, falando comigo?

- É evidente que estou.

- Então? Por que louco ?

- Ora, porque isto é irreal, é fantástico, extrafísico, sei lá!

- Eu não acho tão extraordinário assim. Sou uma estátua, e o que isto tem de tão inusitado? Privar-me-ão do direito de ser entendido só porque não tenho massa celular, encefálica, neuronial?

- Não é bem assim... afinal, de onde veio você?

- Vim da fundição, naturalmente. Fizeram-me de bronze, ferro, estanho. Quiseram-me com esta cara, este busto, estas roupas espalhafatosas, até atemporais. Quando fui feito, meu jeito já era anti-época. Este vestuário já não condizia com a realidade deste século.

- Pela inscrição no seu pedestal, parece que você foi um... poeta!

- Não sei, não me consultaram.

- Como? Você não sabe quem foi?

- Não. Não sei.

- Mas isto é ridículo: transformar o minério bruto em quem se queira,

- É, se assim não fosse, eu não seria nada.

- Mas as pessoas o conhecem como poeta...

- Como estátua.

- E a sua inscrição no pedestal?

- Ninguém a lê. Não se importam nem com letreiros luminosos, quanto mais com uma tola inscrição. Esse povo parece que nunca teve uma história.

- Não é possível., mas você há de ter sido alguém.

- Meu espírito sim.

- Quê? Não vai me dizer que você é um espírito?!

- Não, eu apenas tenho alma. Respiro, inspiro, aspiro... você não está vendo? Além do mais, só creio no que toco, nunca no que vejo.

- Ah... espera aí... ou eu pirei ou estou vendo você. Posso tocar sua mão?

- Claro. É honroso cumprimentá-lo,

- Engraçado, sua mão é de bronze entretanto parece humana... como é que isto pode acontecer?

- Agora você me pegou.

- Sabe dona... estátua... você representa o passado, você é um milagre que contraria a ciência e a metafísica ao mesmo tempo... não me lembro de nenhum livro mítico, científico ou bíblico que fale de um fato estranho como o seu... posso até ter lido algo a respeito, mas estou vendo e tocando você! Você tem corpo, movimento e uma inscrição que diz que você foi um poeta que, aliás, só falta declamar!

- Evidentemente que sou o que minha forma representa. Minha imagem é tão filosófica como sua concepção de si mesma...

- Filosófica coisa nenhuma! Eu estava passando como sempre faço: observando os pássaros, mexendo com as cutias, colhendo flores para enfeitar minha sala...

– Assobiando...

- Assobiando?

- É, cavalheiro... assobiando, Ou você não sabe que assobia enquanto anda?

- Eu assobio?

- Assobia sim senhor. Um assobio até meio chatinho, monocórdico... porque é sempre a mesma melodia.

- Melodia? Mas...de que música ?

- Ora, sei lá... uma estátua velha fincada no meio de uma praça não tem tempo de sair andando por aí para pesquisar acordes de uma música repetitiva como a sua.

- Ah, já sei, é uma música de ninar.

- Parece mesmo. E por que você a assobia sempre?

- Bem, na verdade eu nem sabia que a assobiava todos os dias, mas acho que é uma maneira de lembrar minha avó.

- Ela cantava essa música pra você dormir?

- Todas as noites.

- E onde foi isso? Quando?

- Bem, já faz uns oitenta anos. Eu era bem pequeno ainda. Lembro que minha avó ia comigo à praça... comprava-me algodão-doce, pipoca e amendoim torradinho e sentava-se sempre em um banco de concreto como este aqui, em frente a uma estátua… ué?!… mas a estátua era você! a praça… a praça era esta! … meu Deus… o que está acontecendo comigo?

– Estranho, muito estranho… embora esteja há bastante tempo nesta praça, não me lembro de você com sua avó…

– Mas claro, como ia de lembrar? Eu era um menino.

– É, isto não me havia passado pela cabeça. Mas… sua avó… como era ela?

– Bonita. Muito bonita. Os homens a cortejavam, faziam reverências com acenos de cartolas… lembro-me de um que sentou-se junto conosco exatamente neste banco, falou coisas de estátuas que eu não compreendia bem, enquanto eu me deitava no colo de minha avó e acabava adormecendo sob as notas musicais da canção de ninar. Uma tarde, entretanto, quando despertei, minha avó estava recostada com a cabeça tombada, os olhos abertos extremamente azuis fitando eternamente o céu… o moço que falava sobre estátuas tinha sumido… deixou-me só com ela, com a vovó…

A estátua olhava-o afetuosa e profundissimamente humana e seus olhos eram dois abismos azulíssimos  dentro daquela face metálica, e ele sentiu-se envolver por uma calma tão grande, tão abstramente absurda e boa como a canção de ninar de sua avó…

Tropeçando na sonolência dos fonemas, balbuciou que as estátuas não falam nem têm olhos azuis… nem tampouco se movem… enquanto uma lânguida nuvem descia sobre seus oitenta e cinco anos… o azul dos olhos da estátua transformaram-se gradativamente num abismo celestial e seu espírito bom resvalou suavemente, doce como uma pétala branca que se solta impelida pelo delicado peso de uma minúscula e gelada gota de orvalho… e ele voou, elevando-se serenamente no vento manso daquela tarde,

Na manhã seguinte, num alegre burburinho de pardais e pombos na praça, um menininho gritou alegre e curioso:

– Vovó… aquela estátua se mexeu! Eu vi, vovó! Eu vi ela se mexer! Vem ver, vovó!

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Nenhum comentário: