sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Diogo Bernardes (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 12) 1


[1]

À borda d’um ribeiro, que corria
Por meio d’um florido, e verde prado,
O triste pastor Délio debruçado
Sobre um tronco de freixo assim dizia:

Ah, Marília cruel, quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Quem fez um coração desenganado
Amar coisa que tanto aborrecia?

Que foi daquela fé, que tu me deste?
Que foi daquel' amor que me mostraste?
Como se mudou tudo tão asinha?

Quando tua afeição n’outro puseste,
Como te não lembrou que me juraste
Que não serias nunca senão minha?

[2]

Ando, senhora minha, cá temendo
Se vós em mim cuidais, que cuidareis
Que vos não amo quanto mereceis,
Pois vivo tantos dias não vos vendo:

Ai triste, que da morte me defendo
Com esperar que cedo me vereis
Tal, que logo em mim conhecereis
Que, se vivo sem vós, vivo morrendo.

Faltando este remédio, d’outro modo
A triste vida não se valeria
Contra o mal que lhe ordena a saudade:

Mas quando verei eu, senhora, o dia
Que veja em vossos olhos meu bem todo,
E vós vejais nos meus esta verdade?

[3]

Da branca neve, e da vermelha rosa
O Céu de tal maneira derramou
No vosso rosto as cores, que deixou
A rosa da manhã mais vergonhosa.

Os cabelos (d’amor prisão formosa)
Não d’ouro, que ouro fino desprezou,
Mas dos raios do Sol vo-los dourou,
Do que Cíntia também anda invejosa.

Um resplendor ardente, mas suave,
Está nos vossos olhos derramando
Que o claro deixa escuro, o escuro aclara;

A doce fala, o riso doce, e grave
Entre rubis, e perlas lampejando
Não tem comparação por coisa rara.

[4]

Marília, que do Céu à terra dada
Foste, por glória sua, e nosso espanto,
Que verso louvará, que novo canto,
Formosura tão nova, e desusada?

Qual serena manhã alva, e rosada
Foi nunca tão formosa, ou qual Sol tanto
O mundo alumiou, Marília, quanto
Teus olhos, onde Amor tem sua morada?

Se estrelas, Lua, Sol sua beleza
Perdem diante ti, que desenganos
De perlas, de rubis, de neve, e rosas!

Enfim em ti juntou a natureza
Quanto reparte em mil, e em mil anos
Com mil, e mil, e todas mui formosas.

[5]

Nas águas du’a fonte um dia olhava
O seu rosto, Marília, doutras cheio,
Entregue a mil suspeitas d’um receio,
Que amor em seus amores lhe ordenava.

Mansas águas (dizia) mal cuidava
Em tão ledo começo, e ledo meio,
Que visse um fim tão triste, e tão alheio
Do bem, que do meu bom ver esperava.

De lágrimas fingidas me deixei
Vencer, triste de mim! não suspeitando
Que fossem deste amor injusto preço:

Agora, que me vou desenganando,
Bem vedes vós em mim, que me tornei
Tal, que vendo-me em vós, não me conheço.

[6]

Horas breves de meu contentamento
Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos visse tornadas, tão asinha,
Em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres, que fundei no vento,
O vento as levou já que as sustinha,
Do mal, que me ficou, a culpa é minha,
Que sobre coisas vãs fiz fundamento.

Amor com rosto ledo, e vista branda
Promete quanto dele se deseja,
Tudo possível faz, tudo segura:

Mas des (1) que dentro d’alma reina, e manda,
Como na minha fez, quer que se veja,
Quão fugitivo é, quão pouco dura.

[7]

Depois de tantos dias mal gastados,
Depois de tantas noites mal dormidas,
Depois de tantas lágrimas perdidas,
Tantos suspiros vãos, vãmente dados;

Como não sois vós já desenganados,
Desejos, que de coisas esquecidas
Quereis remediar minhas feridas,
Que amor fez sem remédio, ou os meus fados?

Se não tiveres já experiência
Das sem-razões d’amor, a quem servistes,
Fraqueza fora em vós a resistência:

Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Os quais não curou tempo, nem ausência
Que bem dele esperais, desejos tristes?

[8]

Que doido pensamento é o que sigo,
Após que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mim, que não me entendo,
Nem o que calo sei, nem sei que digo.

Pelejo com quem trata paz comigo,
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pretendo?
Quem do meu próprio mal me fez amigo?

Porque, se nasci livre, me cativo?
E se o quero ser, por que não quero?
Como me engano mais com desenganos?

Se já desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo
Esperando algum bem em tantos danos?
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Glossário:
(1) Cíntia – equivalente romano a Diana, era filha de Zeus e Latona, e irmã gêmea do Apolo. Homero refere-se a ela como Ártemis Agrótera, Potnia Theron: "Ártemis das terras selvagens, Senhora dos Animais". Os acadianos acreditavam que Ártemis era filha de Deméter, deusa da agricultura. É deusa da lua, da caça, dos animais selvagens, da região selvagem, do parto e da virgindade e protetora das meninas Ela às vezes era conhecida como Cíntia (Cynthia), a partir de sua cidade natal no monte Cinto. (wikipedia)
(2) Des - o mesmo que desde.

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