(antiga fábula chinesa)
Neste mundo sempre houve muita coisa bonita para se ver. Dentre elas, destacava-se a corrida de barcos-dragão que se realizava em Su-Chian, no quinto dia da quinta lua. Cada embarcação levava esculpido no lenho um dragão de escamas verdes e douradas; as balaustradas tinham enfeites de flores laqueadas e estandartes de seda bordados. Da popa saía uma espécie de trampolim de madeira, onde ia sentado um rapazote perito em acrobacias. Exibia-se em belos movimentos rítmicos, chegando, por vezes, a dobrar a tábua até fazê-la tocar a água, dando a impressão, a cada instante, de que ia mergulhar. Esses rapazes eram treinados desde crianças e alguns deles, por sua perícia, eram disputados a peso de ouro pelos diversos proprietários dos barcos-dragão.
Dentre os melhores, o mais hábil era, sem dúvida, A-Tuan, belíssimo rapagão órfão de pai.
Aconteceu que, durante uma daquelas festas, A-Tuan perdeu de fato o equilíbrio e foi cair no rio que o tragou, fechando sobre ele suas águas. Imediatamente, os nadadores mais destros mergulharam em sua busca. Mas, por mais fundo que mergulhassem, nem sequer o avistaram. Voltaram à tona resfolegantes e desiludidos: não fora possível salvá-lo.
Era preciso avisar a velha Chiang, mãe de A-Tuan, do ocorrido. Acabrunhados, os proprietários dos barcos-dragão foram em comitiva procurá–la. A pobre mulher chorou muito. Só o que trazia consolo ao seu coração aflito era a dor sincera que demonstravam todos e o pensamento de que seu filho fora amado por muitos.
A-Tuan, porém, não morrera: no instante em que cairá n’água (e não saberia explicar como lhe tivesse acontecido, perdera o equilíbrio, excelente acrobata que era) sentira-se agarrado por duas mãos que o puxavam para o fundo. A água se erguera ao redor dele, alta como uma muralha, e ele percebeu que podia respirar perfeitamente. Recobrando uma certa serenidade, A-Tuan pôde ver um castelo. No centro de um salão imenso, um homem com um elmo na cabeça estava sentado num trono.
— Este é o Príncipe Dragão, anunciou uma voz às costas de A-Tuan; ajoelhe-se diante dele.
O olhar do príncipe, pousado em A-Tuan, irradiava benevolência.
— Você é um rapaz de rara habilidade: pode entrar a fazer parte do grupo "Ramos de Salgueiro".
Foi tudo o que lhe disse. Depois, A-Tuan sentiu-se transportado por seu acompanhante invisível para longe do palácio, até um recinto cercado de amplos pavilhões. Ali chegados, seu acompanhante fê-lo subir à varanda do pavilhão leste, de onde saiu, toda sorridente, uma velha senhora.
— Esta é a Senhora Sie, disse a voz de sempre, e vai ser sua mestra.
A senhora sentou-se na varanda e chamou por alguém. A-Tuan viu aparecerem lá de dentro diversos rapazolas que não teriam mais de treze ou quatorze anos. Cumprimentaram A-Tuan e foram muito amáveis com ele.
— Agora vamos mostrar a A-Tuan a "dança do relâmpago" e a "dança do vento", disse a senhora Sie.
Logo se ouviu o rufar de tambores e o bimbalhar de pratos de cobre e a dança começou. Era algo indescritível, digna dos gênios. Quando se restabeleceu o silêncio, a senhora Sie chamou para perto de si A-Tuan, com a intenção de lhe ensinar os passos da dança. Ele, porém, não a deixou falar.
— Mande recomeçar a música e eu lhe darei uma amostra do que sei.
Assim que a primeira nota ecoou na esplanada, A-Tuan começou a dançar. Todos o fitavam atônitos, prendendo a respiração, e a velha senhora Sie explodiu em frenético bater de palmas.
— Magistral! exclamou, possuída de entusiasmo. A sua perícia iguala à de Flor de Verão!
Não sabendo quem era Flor de Verão, A-Tuan não estava em condições de apreciar plenamente o elogio. Compreendeu, porém, que a velha senhora lhe admirava a arte e deu-se por satisfeito.
No dia seguinte, o Príncipe Dragão recrutou, para serem examinados, os vários grupos de bailarinos, que foram reunidos ao pé de uma escadaria, num pátio muito grande. Os primeiros a serem examinados foram os duendes. Tinham rosto de menino e corpo de peixe; e dançavam batendo com força num prato de cobre, que produzia ruído de trovão. A cada bater de prato, pulavam tão alto que saíam da água e chegavam a tocar a abóbada celeste, de onde faziam cair um chuvisco de estrelas.
A seguir, foi a vez das "Passarinhas". Eram todas donzelas formosas e elegantes que dançavam acompanhando-se numa espécie de flauta. Pouco a pouco, ao redor delas, foi-se
aplacando o fragor das ondas, foram-se enregelando as águas até que tudo se transformou num mundo de cristal translúcido. Finda a dança as águas voltaram a mover-se com o ruído de sempre, enquanto as donzelas iam colocar-se eretas e imóveis ao pé da escadaria.
Veio depois o grupo das "Andorinhas", raparigas muito jovens, que dançavam agitando as mangas compridas de suas vestes. Na cabeça, traziam uma guirlanda de flores perfumadas. Vestiam uma roupagem azul e preta, de duas caudas, lembrando andorinhas. Uma, entre as demais, esvoaçava como se tivesse asas. De suas vestes desprendiam-se, ondulando ao vento e sobre as ondas, botões de flores multicores que, vagando daqui para acolá, acabaram por cobrir todo o pátio. Terminada a dança, foi-se juntar às companheiras ao pé da escada.
A-Tuan, que estava ali perto, tomou-se de encantos por ela. Quis saber quem era e os de seu grupo, admirando-se de que ainda não a conhecesse, exclamaram:
— Quem havia de ser senão Flor de Verão!
A-Tuan não teve tempo de retrucar, pois, nesse ínterim, o Príncipe Dragão chamara o grupo dos "Ramos de Salgueiro” e era chegada a sua vez de dançar.
A dança foi tão perfeitamente executada quanto as outras. O príncipe elogiou A-Tuan por sua diligência em aprender e por sua destreza em executar o que aprendera. Deu-lhe de presente uma faixa toda de escamas de ouro para prender o cabelo. Nela estava incrustada, bem no centro, uma esplêndida pérola que, à luz do luar, tinha o fulgor de uma estrela.
A-Tuan agradeceu o presente e apressou-se em juntar-se aos companheiros, junto à escadaria. Erguendo os olhos, viu posto nele o olhar meigo de Flor de Verão; mas, intimidado, não fez um gesto nem disse uma palavra.
A um sinal do Príncipe Dragão, todos os grupos puseram-se a desfilar em boa ordem, voltando, cada qual, ao seu próprio pavilhão. A-Tuan e Flor de Verão mal tiveram tempo de trocar um olhar de despedida e depois perderam-se de vista.
A-Tuan não esquecia a linda dançarina. De tanto pensar nela, de tanto sentir a sua falta, acabou adoecendo. Perdeu o apetite e o sono. Em vão a velha senhora Sie fazia-o beber poções milagrosas. A-Tuan estava cada dia mais magro e definhava. Os olhos encovados e tristes, perderam o brilho. Só a pérola que resplandecia em sua fronte lhe iluminava o semblante opaco.
Ninguém atinava com a causa do mal que o oprimia. A velha senhora afligia-se por estarem às vésperas de uma festa da mais alta importância em que todos os grupos iriam exibir-se.
— Está-se aproximando a festa do Príncipe dos Rios e A-Tuan continua dessa maneira. O que havemos de fazer com ele?
Nesse pé estavam as coisas, quando, certa noite, um rapaz pertencente ao grupo dos duendes foi visitar A-Tuan. Sentou-se na beira da cama e puseram-se os dois a conversar disto e daquilo.
— Será possível que ninguém descobre o motivo da tua doença? perguntou, a certa altura, o visitante, com um sorriso matreiro.
— Ninguém entende nada, respondeu A-Tuan, com um fio de voz.
— Flor de Verão não teria, por acaso, algo a ver com tudo isto?
— O que te faz pensar assim?
— O fato de Flor de Verão padecer do mesmo mal, retrucou o duende a rir. Quem me contou foi uma rapariga do grupo das andorinhas.
A essas palavras, A-Tuan ergueu-se na cama.
— Meu amigo, não haveria um jeito de eu me encontrar com Flor de Verão?
— Talvez haja.
— Ó, por favor, você que sabe tudo a meu respeito, diga-me o que devo fazer.
O duende fitou-o, pensativo; depois acrescentou:
— Não vai ser fácil: teremos de percorrer um longo caminho e, no fim, nem é certo que cheguemos a encontrá-la.
— Mas por que é que é tão difícil assim ver Flor de Verão? perguntou A-Tuan.
— O Príncipe Dragão a mantém sob estrita vigilância. Como viu, é uma dançarina incomparável e ele tem medo de perdê-la.
— E como havia de perdê-la?
— Alguém poderia raptá-la e levá-la de volta à terra. De fato, ela tem muitas saudades da terra, apesar de ser tão querida aqui.
— Pois eu sinto o mesmo e gostaria de poder dizer o que sinto à Flor de Verão.
A-Tuan insistiu tanto, rogou tanto que o duende, por fim, se rendeu. Decidiu-se a agir e perguntou logo:
— Pode andar?
— Com algum esforço, posso.
Auxiliado pelo rapazinho, A-Tuan saiu do quarto. Percorreram diversas galerias que pareciam entalhadas em cristal até chegarem a uma porta. O duende abriu-a e passaram os dois por ela. Depois de mil e uma viravoltas, encontraram outra porta, que o duende abriu, também. A-Tuan viu, com estupor, que se encontravam num bosque todo de árvores de magnólia, tão altas que era impossível ver até onde chegavam. As folhas eram grandes como esteiras e as flores eram como gigantescos chapéus de sol. As pétalas caídas jamais haviam sido removidas e formavam, no chão, uma camada fofa e macia, da espessura de dez colchões sobrepostos.
O duende mandou que A-Tuan se sentasse.
— Descanse enquanto espera, que eu já volto.
— A-Tuan obedeceu e ficou à espera. Estava ansioso, tinha a sensação de que o duende se demorava eternamente.
Entretanto, não eram decorridos mais que alguns instantes, quando, mudo de surpresa, viu, surgir, ali onde o duende desaparecera, uma donzela de rara beleza, que o fitava, sorrindo com timidez. Era Flor de Verão! Foi dos mais felizes o encontro dos dois: confiaram um ao outro toda a história de suas vidas. Flor de Verão contou que, certo dia, quando navegava pelo rio, na embarcação de seu pai, curvando-se sobre as águas frescas e cantando, sentira que a puxavam para o fundo. Fora coisa de segundos: logo após, estava na presença do Príncipe Dragão.
— Todo o mundo me trata muito bem; são todos bondosos comigo, disse ela a suspirar, mas eu tenho saudades de minha família e só penso em voltar para a terra.
— Eu também, disse A-Tuan com lágrimas nos olhos; eu também penso em minha mãe e na dor que há de ter sofrido por me crer morto. Mas não tenho esperança de fugir daqui.
— Nem eu tampouco, disse Flor de Verão chorosa. Muito menos agora, às vésperas de uma festa tão importante: redobraram a vigilância. Receio não poder mais vê-lo antes do dia das danças.
Com efeito, assim foi. Os ensaios mantinham atarefadíssimos todos os grupos de dançarinos. Na verdade, porém, desde o dia em que se haviam encontrado, tanto Flor de Verão como A-Tuan recobravam as forças. E puderam dançar de novo. Era preciso, porém, recuperar o tempo perdido e disso se encarregou a senhora Sie. Infatigável, fazia-os exercitarem-se dia e noite e os mantinha sob tão rigorosa vigilância que não lhes deixou um minuto sequer para novo encontro.
Chegou o dia da festa. Conduzidos pelo Príncipe Dragão, todos os grupos se encaminharam para a grande esplanada onde teriam lugar as danças em honra do Príncipe dos Rios, O espetáculo foi deslumbrante. O Príncipe dos Rios ficara impressionado com a prestigiosa habilidade de A-Tuan: porém, a graça indizível de Flor de Verão fora o que o subjugara.
Findas as festividades, os dois príncipes trocaram gentilezas e dádivas, Depois, todos voltaram a seus pavilhões. Todos, exceto Flor de Verão e mais outra bailarina do grupo das "Passarinhas", que foram destacadas para morar no palácio do Príncipe dos Rios, onde iriam ensinar dança às damas da corte.
Imensa foi a dor de A-Tuan. Suspirara tanto por aquele dia, na esperança de ter uns momentos de folga! Esteve a ponto de adoecer de novo. Fez de tudo para convencer a velha senhora Sie a mandá-lo também para o palácio do Príncipe dos Rios, mas ela sacudia a cabeça, sem nem ao menos uma resposta.
Passaram-se, assim, alguns meses. Certo dia, uma infausta notícia espalhou-se pelos pavilhões.
— Sabem da novidade? Flor de Verão subiu para o grande terraço do castelo do Príncipe dos Rios e se afogou!
A coisa parecia inacreditável. Como poderia alguém, vivendo no fundo do rio, afogar-se?
A-Tuan atormentava-se com a ideia do desaparecimento da moça.
— Estamos tão habituados a viver no fundo d’água que a água é o nosso elemento. No entanto, Flor de Verão subiu ao terraço superior do palácio e se afogou! Não posso acreditar!
— A verdade, repetiam-lhe os amigos, é que ninguém mais a viu.
A-Tuan, no auge do desespero, arrancou da cabeça a faixa de escamas de ouro e a fez em pedaços: foi buscar suas vestes mais ricas e as reduziu a frangalhos. Depois, para acalmar a dor de seu coração, quis voltar para o meio das flores de magnólia, onde ele e Flor de Verão se haviam encontrado.
Seguiu pelas galerias, atravessou a primeira porta, foi adiante, até encontrar a segunda. Abriu-a e ei-lo no bosque. Pareceu-lhe que seu coração parasse de bater, tão viva era a lembrança de seu primeiro e último encontro com Flor de Verão.
Depois de muito caminhar, de repente, se viu às fraldas de uma muralha altíssima, à qual estava apoiada uma escada que parecia não ter fim. A-Tuan comprovou, com estupor, que a muralha era formada pelas águas do rio, de tal maneira solidificada que jamais alguém poderia atravessá-la. Trepou rápido escada acima. Chegou a alcançar a altura das magnólias e foi subindo, subindo, até ultrapassá-las...
"Sabe-se lá onde vai ter esta escada!" dizia consigo. "Estou exausto, não aguento mais! Se esta subida não tem fim, vou rolar lá para baixo de cansaço."
Subitamente, a escada terminou. E, um pouco mais acima, terminava a muralha também. A-Tuan trepou alguns metros mais, até galgar o muro e, de lá, atirou-se do outro lado. Ao voltar a si da vertigem provocada pela queda, tentou nadar. Viu, com surpresa indizível, que o sol resplandecia sobre sua cabeça e que as águas do rio se estendiam em volta dele. Estava livre! Estava de novo na terra! Louco de alegria, deixou-se levar pela correnteza e, ora nadando, ora boiando, chegou à margem.
— Ei, você aí, gritou-lhe um pescador que lançava a sua rede; de onde vem?
— A minha jangada naufragou e não sei exatamente onde estou.
— De que aldeia és?
— De Su-Chian.
— Pode julgar-se um rapaz de sorte: não está longe. Só tem que chegar à curva do rio, que atravessa o vale.
A-Tuan agradeceu e- saiu correndo na direção indicada. Não tinha a mínima ideia do tempo que estivera ausente. Parecia-lhe que a estação do ano era a mesma de quando caíra no lago.
De repente, descortinou sua aldeia natal. Com passo mais compassado, refreando a emoção, chegou à casinhola onde nascera e se criara. Estava já quase a entrar, quando ouviu, lá de dentro, uma voz jubilosa que dizia:
— Senhora Chiang, seu filho está aqui!
A-Tuan estacou. Aquela voz, embora só uma vez a tivesse ouvido, ficara-lhe para sempre no coração. Não, não era possível que se enganasse!
De fato, lá estava, para recebê-lo à soleira da porta, junto a sua velha mãe, Flor de Verão, que lhe sorria com olhos brilhantes de alegria.
Contou-lhe que, lá no palácio do Príncipe dos Rios, sentia-se morrer de melancolia. Pensara, então, que, talvez, subindo ao telhado mais alto, pudesse avistar o pavilhão onde vivia A-Tuan e saudá-lo de longe. Às escondidas, fora ao terraço, mas, ao espichar o pescoço para enxergar mais longe, perdera o equilíbrio e caíra. Mas, tal como acontecera com A-Tuan, a queda, em lugar de arrastá-la para o fundo, fizera-a boiar nas águas do rio. Fora recolhida por uma jangada que passava e, tendo sabido que sua família perecera num naufrágio, dera o nome da mãe de A-Tuan, para cuja casa a haviam acompanhado.
A velha senhora Chiang chorara de comoção, ao saber que o filho vivia. Depois, derramara novas lágrimas ao pensar que jamais o tornaria a ver. Flor de Verão, porém, tinha muita esperança. E os fatos vieram-lhe dar razão.
Casaram-se em meio à alegria geral. Dançaram para o encantamento de todos os presentes que se desfizeram em elogios.
Só o Príncipe Dragão, tendo perdido seus melhores dançarinos, por muito tempo viveu acabrunhado e inconsolável.
Neste mundo sempre houve muita coisa bonita para se ver. Dentre elas, destacava-se a corrida de barcos-dragão que se realizava em Su-Chian, no quinto dia da quinta lua. Cada embarcação levava esculpido no lenho um dragão de escamas verdes e douradas; as balaustradas tinham enfeites de flores laqueadas e estandartes de seda bordados. Da popa saía uma espécie de trampolim de madeira, onde ia sentado um rapazote perito em acrobacias. Exibia-se em belos movimentos rítmicos, chegando, por vezes, a dobrar a tábua até fazê-la tocar a água, dando a impressão, a cada instante, de que ia mergulhar. Esses rapazes eram treinados desde crianças e alguns deles, por sua perícia, eram disputados a peso de ouro pelos diversos proprietários dos barcos-dragão.
Dentre os melhores, o mais hábil era, sem dúvida, A-Tuan, belíssimo rapagão órfão de pai.
Aconteceu que, durante uma daquelas festas, A-Tuan perdeu de fato o equilíbrio e foi cair no rio que o tragou, fechando sobre ele suas águas. Imediatamente, os nadadores mais destros mergulharam em sua busca. Mas, por mais fundo que mergulhassem, nem sequer o avistaram. Voltaram à tona resfolegantes e desiludidos: não fora possível salvá-lo.
Era preciso avisar a velha Chiang, mãe de A-Tuan, do ocorrido. Acabrunhados, os proprietários dos barcos-dragão foram em comitiva procurá–la. A pobre mulher chorou muito. Só o que trazia consolo ao seu coração aflito era a dor sincera que demonstravam todos e o pensamento de que seu filho fora amado por muitos.
A-Tuan, porém, não morrera: no instante em que cairá n’água (e não saberia explicar como lhe tivesse acontecido, perdera o equilíbrio, excelente acrobata que era) sentira-se agarrado por duas mãos que o puxavam para o fundo. A água se erguera ao redor dele, alta como uma muralha, e ele percebeu que podia respirar perfeitamente. Recobrando uma certa serenidade, A-Tuan pôde ver um castelo. No centro de um salão imenso, um homem com um elmo na cabeça estava sentado num trono.
— Este é o Príncipe Dragão, anunciou uma voz às costas de A-Tuan; ajoelhe-se diante dele.
O olhar do príncipe, pousado em A-Tuan, irradiava benevolência.
— Você é um rapaz de rara habilidade: pode entrar a fazer parte do grupo "Ramos de Salgueiro".
Foi tudo o que lhe disse. Depois, A-Tuan sentiu-se transportado por seu acompanhante invisível para longe do palácio, até um recinto cercado de amplos pavilhões. Ali chegados, seu acompanhante fê-lo subir à varanda do pavilhão leste, de onde saiu, toda sorridente, uma velha senhora.
— Esta é a Senhora Sie, disse a voz de sempre, e vai ser sua mestra.
A senhora sentou-se na varanda e chamou por alguém. A-Tuan viu aparecerem lá de dentro diversos rapazolas que não teriam mais de treze ou quatorze anos. Cumprimentaram A-Tuan e foram muito amáveis com ele.
— Agora vamos mostrar a A-Tuan a "dança do relâmpago" e a "dança do vento", disse a senhora Sie.
Logo se ouviu o rufar de tambores e o bimbalhar de pratos de cobre e a dança começou. Era algo indescritível, digna dos gênios. Quando se restabeleceu o silêncio, a senhora Sie chamou para perto de si A-Tuan, com a intenção de lhe ensinar os passos da dança. Ele, porém, não a deixou falar.
— Mande recomeçar a música e eu lhe darei uma amostra do que sei.
Assim que a primeira nota ecoou na esplanada, A-Tuan começou a dançar. Todos o fitavam atônitos, prendendo a respiração, e a velha senhora Sie explodiu em frenético bater de palmas.
— Magistral! exclamou, possuída de entusiasmo. A sua perícia iguala à de Flor de Verão!
Não sabendo quem era Flor de Verão, A-Tuan não estava em condições de apreciar plenamente o elogio. Compreendeu, porém, que a velha senhora lhe admirava a arte e deu-se por satisfeito.
No dia seguinte, o Príncipe Dragão recrutou, para serem examinados, os vários grupos de bailarinos, que foram reunidos ao pé de uma escadaria, num pátio muito grande. Os primeiros a serem examinados foram os duendes. Tinham rosto de menino e corpo de peixe; e dançavam batendo com força num prato de cobre, que produzia ruído de trovão. A cada bater de prato, pulavam tão alto que saíam da água e chegavam a tocar a abóbada celeste, de onde faziam cair um chuvisco de estrelas.
A seguir, foi a vez das "Passarinhas". Eram todas donzelas formosas e elegantes que dançavam acompanhando-se numa espécie de flauta. Pouco a pouco, ao redor delas, foi-se
aplacando o fragor das ondas, foram-se enregelando as águas até que tudo se transformou num mundo de cristal translúcido. Finda a dança as águas voltaram a mover-se com o ruído de sempre, enquanto as donzelas iam colocar-se eretas e imóveis ao pé da escadaria.
Veio depois o grupo das "Andorinhas", raparigas muito jovens, que dançavam agitando as mangas compridas de suas vestes. Na cabeça, traziam uma guirlanda de flores perfumadas. Vestiam uma roupagem azul e preta, de duas caudas, lembrando andorinhas. Uma, entre as demais, esvoaçava como se tivesse asas. De suas vestes desprendiam-se, ondulando ao vento e sobre as ondas, botões de flores multicores que, vagando daqui para acolá, acabaram por cobrir todo o pátio. Terminada a dança, foi-se juntar às companheiras ao pé da escada.
A-Tuan, que estava ali perto, tomou-se de encantos por ela. Quis saber quem era e os de seu grupo, admirando-se de que ainda não a conhecesse, exclamaram:
— Quem havia de ser senão Flor de Verão!
A-Tuan não teve tempo de retrucar, pois, nesse ínterim, o Príncipe Dragão chamara o grupo dos "Ramos de Salgueiro” e era chegada a sua vez de dançar.
A dança foi tão perfeitamente executada quanto as outras. O príncipe elogiou A-Tuan por sua diligência em aprender e por sua destreza em executar o que aprendera. Deu-lhe de presente uma faixa toda de escamas de ouro para prender o cabelo. Nela estava incrustada, bem no centro, uma esplêndida pérola que, à luz do luar, tinha o fulgor de uma estrela.
A-Tuan agradeceu o presente e apressou-se em juntar-se aos companheiros, junto à escadaria. Erguendo os olhos, viu posto nele o olhar meigo de Flor de Verão; mas, intimidado, não fez um gesto nem disse uma palavra.
A um sinal do Príncipe Dragão, todos os grupos puseram-se a desfilar em boa ordem, voltando, cada qual, ao seu próprio pavilhão. A-Tuan e Flor de Verão mal tiveram tempo de trocar um olhar de despedida e depois perderam-se de vista.
A-Tuan não esquecia a linda dançarina. De tanto pensar nela, de tanto sentir a sua falta, acabou adoecendo. Perdeu o apetite e o sono. Em vão a velha senhora Sie fazia-o beber poções milagrosas. A-Tuan estava cada dia mais magro e definhava. Os olhos encovados e tristes, perderam o brilho. Só a pérola que resplandecia em sua fronte lhe iluminava o semblante opaco.
Ninguém atinava com a causa do mal que o oprimia. A velha senhora afligia-se por estarem às vésperas de uma festa da mais alta importância em que todos os grupos iriam exibir-se.
— Está-se aproximando a festa do Príncipe dos Rios e A-Tuan continua dessa maneira. O que havemos de fazer com ele?
Nesse pé estavam as coisas, quando, certa noite, um rapaz pertencente ao grupo dos duendes foi visitar A-Tuan. Sentou-se na beira da cama e puseram-se os dois a conversar disto e daquilo.
— Será possível que ninguém descobre o motivo da tua doença? perguntou, a certa altura, o visitante, com um sorriso matreiro.
— Ninguém entende nada, respondeu A-Tuan, com um fio de voz.
— Flor de Verão não teria, por acaso, algo a ver com tudo isto?
— O que te faz pensar assim?
— O fato de Flor de Verão padecer do mesmo mal, retrucou o duende a rir. Quem me contou foi uma rapariga do grupo das andorinhas.
A essas palavras, A-Tuan ergueu-se na cama.
— Meu amigo, não haveria um jeito de eu me encontrar com Flor de Verão?
— Talvez haja.
— Ó, por favor, você que sabe tudo a meu respeito, diga-me o que devo fazer.
O duende fitou-o, pensativo; depois acrescentou:
— Não vai ser fácil: teremos de percorrer um longo caminho e, no fim, nem é certo que cheguemos a encontrá-la.
— Mas por que é que é tão difícil assim ver Flor de Verão? perguntou A-Tuan.
— O Príncipe Dragão a mantém sob estrita vigilância. Como viu, é uma dançarina incomparável e ele tem medo de perdê-la.
— E como havia de perdê-la?
— Alguém poderia raptá-la e levá-la de volta à terra. De fato, ela tem muitas saudades da terra, apesar de ser tão querida aqui.
— Pois eu sinto o mesmo e gostaria de poder dizer o que sinto à Flor de Verão.
A-Tuan insistiu tanto, rogou tanto que o duende, por fim, se rendeu. Decidiu-se a agir e perguntou logo:
— Pode andar?
— Com algum esforço, posso.
Auxiliado pelo rapazinho, A-Tuan saiu do quarto. Percorreram diversas galerias que pareciam entalhadas em cristal até chegarem a uma porta. O duende abriu-a e passaram os dois por ela. Depois de mil e uma viravoltas, encontraram outra porta, que o duende abriu, também. A-Tuan viu, com estupor, que se encontravam num bosque todo de árvores de magnólia, tão altas que era impossível ver até onde chegavam. As folhas eram grandes como esteiras e as flores eram como gigantescos chapéus de sol. As pétalas caídas jamais haviam sido removidas e formavam, no chão, uma camada fofa e macia, da espessura de dez colchões sobrepostos.
O duende mandou que A-Tuan se sentasse.
— Descanse enquanto espera, que eu já volto.
— A-Tuan obedeceu e ficou à espera. Estava ansioso, tinha a sensação de que o duende se demorava eternamente.
Entretanto, não eram decorridos mais que alguns instantes, quando, mudo de surpresa, viu, surgir, ali onde o duende desaparecera, uma donzela de rara beleza, que o fitava, sorrindo com timidez. Era Flor de Verão! Foi dos mais felizes o encontro dos dois: confiaram um ao outro toda a história de suas vidas. Flor de Verão contou que, certo dia, quando navegava pelo rio, na embarcação de seu pai, curvando-se sobre as águas frescas e cantando, sentira que a puxavam para o fundo. Fora coisa de segundos: logo após, estava na presença do Príncipe Dragão.
— Todo o mundo me trata muito bem; são todos bondosos comigo, disse ela a suspirar, mas eu tenho saudades de minha família e só penso em voltar para a terra.
— Eu também, disse A-Tuan com lágrimas nos olhos; eu também penso em minha mãe e na dor que há de ter sofrido por me crer morto. Mas não tenho esperança de fugir daqui.
— Nem eu tampouco, disse Flor de Verão chorosa. Muito menos agora, às vésperas de uma festa tão importante: redobraram a vigilância. Receio não poder mais vê-lo antes do dia das danças.
Com efeito, assim foi. Os ensaios mantinham atarefadíssimos todos os grupos de dançarinos. Na verdade, porém, desde o dia em que se haviam encontrado, tanto Flor de Verão como A-Tuan recobravam as forças. E puderam dançar de novo. Era preciso, porém, recuperar o tempo perdido e disso se encarregou a senhora Sie. Infatigável, fazia-os exercitarem-se dia e noite e os mantinha sob tão rigorosa vigilância que não lhes deixou um minuto sequer para novo encontro.
Chegou o dia da festa. Conduzidos pelo Príncipe Dragão, todos os grupos se encaminharam para a grande esplanada onde teriam lugar as danças em honra do Príncipe dos Rios, O espetáculo foi deslumbrante. O Príncipe dos Rios ficara impressionado com a prestigiosa habilidade de A-Tuan: porém, a graça indizível de Flor de Verão fora o que o subjugara.
Findas as festividades, os dois príncipes trocaram gentilezas e dádivas, Depois, todos voltaram a seus pavilhões. Todos, exceto Flor de Verão e mais outra bailarina do grupo das "Passarinhas", que foram destacadas para morar no palácio do Príncipe dos Rios, onde iriam ensinar dança às damas da corte.
Imensa foi a dor de A-Tuan. Suspirara tanto por aquele dia, na esperança de ter uns momentos de folga! Esteve a ponto de adoecer de novo. Fez de tudo para convencer a velha senhora Sie a mandá-lo também para o palácio do Príncipe dos Rios, mas ela sacudia a cabeça, sem nem ao menos uma resposta.
Passaram-se, assim, alguns meses. Certo dia, uma infausta notícia espalhou-se pelos pavilhões.
— Sabem da novidade? Flor de Verão subiu para o grande terraço do castelo do Príncipe dos Rios e se afogou!
A coisa parecia inacreditável. Como poderia alguém, vivendo no fundo do rio, afogar-se?
A-Tuan atormentava-se com a ideia do desaparecimento da moça.
— Estamos tão habituados a viver no fundo d’água que a água é o nosso elemento. No entanto, Flor de Verão subiu ao terraço superior do palácio e se afogou! Não posso acreditar!
— A verdade, repetiam-lhe os amigos, é que ninguém mais a viu.
A-Tuan, no auge do desespero, arrancou da cabeça a faixa de escamas de ouro e a fez em pedaços: foi buscar suas vestes mais ricas e as reduziu a frangalhos. Depois, para acalmar a dor de seu coração, quis voltar para o meio das flores de magnólia, onde ele e Flor de Verão se haviam encontrado.
Seguiu pelas galerias, atravessou a primeira porta, foi adiante, até encontrar a segunda. Abriu-a e ei-lo no bosque. Pareceu-lhe que seu coração parasse de bater, tão viva era a lembrança de seu primeiro e último encontro com Flor de Verão.
Depois de muito caminhar, de repente, se viu às fraldas de uma muralha altíssima, à qual estava apoiada uma escada que parecia não ter fim. A-Tuan comprovou, com estupor, que a muralha era formada pelas águas do rio, de tal maneira solidificada que jamais alguém poderia atravessá-la. Trepou rápido escada acima. Chegou a alcançar a altura das magnólias e foi subindo, subindo, até ultrapassá-las...
"Sabe-se lá onde vai ter esta escada!" dizia consigo. "Estou exausto, não aguento mais! Se esta subida não tem fim, vou rolar lá para baixo de cansaço."
Subitamente, a escada terminou. E, um pouco mais acima, terminava a muralha também. A-Tuan trepou alguns metros mais, até galgar o muro e, de lá, atirou-se do outro lado. Ao voltar a si da vertigem provocada pela queda, tentou nadar. Viu, com surpresa indizível, que o sol resplandecia sobre sua cabeça e que as águas do rio se estendiam em volta dele. Estava livre! Estava de novo na terra! Louco de alegria, deixou-se levar pela correnteza e, ora nadando, ora boiando, chegou à margem.
— Ei, você aí, gritou-lhe um pescador que lançava a sua rede; de onde vem?
— A minha jangada naufragou e não sei exatamente onde estou.
— De que aldeia és?
— De Su-Chian.
— Pode julgar-se um rapaz de sorte: não está longe. Só tem que chegar à curva do rio, que atravessa o vale.
A-Tuan agradeceu e- saiu correndo na direção indicada. Não tinha a mínima ideia do tempo que estivera ausente. Parecia-lhe que a estação do ano era a mesma de quando caíra no lago.
De repente, descortinou sua aldeia natal. Com passo mais compassado, refreando a emoção, chegou à casinhola onde nascera e se criara. Estava já quase a entrar, quando ouviu, lá de dentro, uma voz jubilosa que dizia:
— Senhora Chiang, seu filho está aqui!
A-Tuan estacou. Aquela voz, embora só uma vez a tivesse ouvido, ficara-lhe para sempre no coração. Não, não era possível que se enganasse!
De fato, lá estava, para recebê-lo à soleira da porta, junto a sua velha mãe, Flor de Verão, que lhe sorria com olhos brilhantes de alegria.
Contou-lhe que, lá no palácio do Príncipe dos Rios, sentia-se morrer de melancolia. Pensara, então, que, talvez, subindo ao telhado mais alto, pudesse avistar o pavilhão onde vivia A-Tuan e saudá-lo de longe. Às escondidas, fora ao terraço, mas, ao espichar o pescoço para enxergar mais longe, perdera o equilíbrio e caíra. Mas, tal como acontecera com A-Tuan, a queda, em lugar de arrastá-la para o fundo, fizera-a boiar nas águas do rio. Fora recolhida por uma jangada que passava e, tendo sabido que sua família perecera num naufrágio, dera o nome da mãe de A-Tuan, para cuja casa a haviam acompanhado.
A velha senhora Chiang chorara de comoção, ao saber que o filho vivia. Depois, derramara novas lágrimas ao pensar que jamais o tornaria a ver. Flor de Verão, porém, tinha muita esperança. E os fatos vieram-lhe dar razão.
Casaram-se em meio à alegria geral. Dançaram para o encantamento de todos os presentes que se desfizeram em elogios.
Só o Príncipe Dragão, tendo perdido seus melhores dançarinos, por muito tempo viveu acabrunhado e inconsolável.
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