Peguei o papel, a caneta e sentei-me ao lado da máquina, disposta a escrever. A hora da compulsão não pode ser desperdiçada, que as coisas que vêm nem sempre voltam.
O Natal aproximava-se. Época em que as mãos femininas, solicitadas em demasia, deixavam-se levar pela absorvência dos afazeres domésticos, a ver escapar por entre os dedos o tempo roubado às repousantes fugas do espírito. Antes que a exaustiva faina do limpar, arrumar, coser, enfeitar e servir, começasse, permitia-me algumas concessões, como se criar e escrever fossem guloseimas antecipadas.
A máquina engoliu a folha de papel, devolvendo-a imaculada do outro lado do rolo, vítima indefesa da agressividade tecnológica a ser acionada pelos meus dedos. O hábito de escrever quase sempre diretamente à maquina, desta vez fora relegado. Decidia-me pelo rascunho. O pretendido conto natalino merecia especial esmero.
Procurava a ponta, o resto viria por si. Teria de ser um conto realmente muito especial, que falasse daquela noite azul, de sublimidade mágica. Única, sem igual! Noite plena, cheirando a incenso, com sussurros de vozes angelicais veladas por emoção indescritível a ser perturbada apenas pelo balido dos cordeiros, pelo coruscar de miríades de estrelas e o ruflar de asas de arminho. Noite em que até as pedras, mudas e frias, pareceriam ter ganho vida, personificadas ao toque do momento redentor. Momento ímpar, profundamente decisivo para o futuro da humanidade! Noite de paz! De paz absoluta!
Ah... eu queria um conto que falasse da chegada do Menino Deus e que o perfume da humildade O apresentasse feliz em Seu leito de palhas, envolto em panos rústicos, acalentado pela insignificância, docilmente assumida, daquele jumento de orelhas longas e pela ruminante meiguice de uma vaquinha mansa.
Mas para isso, eu queria, com urgência, verbo de ouro e pena brilhante para descrever com fidelidade a inocência do sono do Menino-Luz, velado pela ternura da Mãe-Pureza e pela nobre solicitude do Esposo castíssimo, lídimo modelo de bondade e compreensão!
Ah… sim. Eu queria escrever não um conto qualquer, vivenciado por personagens banais do dia-a-dia, mas, algo transcendental, que há muito fervilhava em minha cabeça, sem encontrar fórmula ideal... nem palavras dignas, dentro daquela perfeição que a mim mesma, pretensiosamente, impunha.
E, afinal... a frustração inevitável: — eu queria... sim, eu queria tanto... e tanto exigia de mim que, definitivamente acabei por não escrever coisa alguma!
Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.
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