Guido pertencera ao corpo (e corpo é o termo certo) de Polícias Especiais, de motocicleta Harley Davidson e chapeuzinho vermelho. Mesmo neste agrupamento de homens-touros, chegava a se destacar.
— O Guido é um trator — diziam seus colegas de corporação, num misto de orgulho e inveja.
Um "D-14" da Caterpillar, movido a gemada matinal, que não dispensava, e engrossado pela ginástica que todos os dias suportava para se pôr em condições de fraturar mandíbulas e clavículas, nas porradinhas que dava a cada batida pelos antros do crime.
Às cinco e meia, quando o sol apenas começava a botar a testa lá longe, quem chegasse à Praia do Inferno, já o encontrava em meio à centésima flexão. O preparo físico era sua obsessão, e tinha que ser assim, porque aí acabavam as virtudes. Do corpo para a mente a diferença era a do preto para o branco. Feito uma coisa que fosse parida por um bicho, em parceria com gente.
Diariamente media o bíceps e o tórax, crendo ainda ser possível aumentar aquela estupidez de musculatura, um centímetro que fosse.
A namorada não era maior do que uma menina. Um metro e cinquenta, medidos até com boa vontade, e o peso de um catálogo. Os amigos brincavam, chamando aquele namoro de "tentativa de homicídio", conceito que não podia ser encarado como mentiroso. Os dois, quando juntos, pareciam um PI traduzido: 3,1416. Ela era a vírgula. Ele a chamava de Tina, que Albertina — o nome da peça — lhe soava como nome de portuguesa.
— "Daquelas de perna cabeluda e mata no sovaco" — explicava aos colegas, entremeando as palavras da frase idiota com sorrisos alvares.
Guido podia fazer a folga de um guindaste do cais, mas não tinha capacidade cultural de substituir um bicheiro.
Do fim da PE em diante Guido passou a ser encontrado todas as noites — menos segunda, que era folga — à porta de uma boate, em Copacabana, onde o serviço era tão maneiro que o que mais lhe exigiam era, vez por outra, dar uns tapinhas nos fregueses. Mas era tapa em bêbado, não em bandido.
Se por um lado isso tranquilizava Tina e amansava a barra da vida de Guido, por outro foi desastroso.
Entrou na roda viva da vida do boêmio: acordava na hora do almoço, almoçava na hora do lanche, jantava na hora de dormir e dormia na hora de acordar. Esse ritmo de vida não favorece os músculos. E, daí, eles foram discretamente sendo expulsos pelas banhas que chegavam pedindo vaga. Principalmente os da barriga. Dois anos depois era outro. Como se lhe tivessem inflado, sabe-se lá por onde. Antes, Guido-touro; hoje, Guido-boi — homenagem póstuma à castração muscular.
No Beco da Fome, além da cervejinha acompanhando o ragu, já exigia "uma" para abrir o apetite. E deu de fumar. Deste modo, em 24 meses, não mais, o "D-14" se fez "D-8" ou menos.
Foi quando apanhou pela primeira vez.
Bigode era o apelido do que bateu. Era, igualmente, leão-de-chácara de uma boate — a única que não fechava às segundas-feiras.
Quando Tina pediu para ir a uma boate, Guido não a podia levar a outra. Folgava no dia em que apenas a boate do Bigode abria as portas. Não sei se os motivos foram bastante fortes para uma briga, mas o pau comeu.
— Você pensa que é o quê?
— Não folga, que eu te cubro.
— Tem que ser muito homem.
— Então vem, que tu encontra.
— Olha que eu te dou uma porrada.
— Dá uma, leva duas.
Ou não aconteceu o bate-boca. Mas — contou quem viu — de um momento para outro Guido fez referência à esposa do pai do Bigode, e o uppercut saiu. Seco, curto e grosso. Ponta de queixo. 135 quilos desabaram sobre o que na boate ainda insistiam em chamar de tapete com uma surpreendente ausência de barulho.
— Levanta o homem.
— Levantar como? Ele pesa uma tonelada.
— Que pancada!
— Pegou no queixo. E tu notou? Quando ele caiu nem fez barulho.
— Foi as banha que amorteceu.
Com esforço — quatro ajudando — foi levado para fora e depositado no banco da rua. Tina sentia-se culpada. Cuidou de arranjar explicação para a derrota inusitada.
— Ele te pegou desprevenido.
— Tu viu, né? — perguntou Guido numa demonstração de ter aceito a desculpa que a noiva inventara. — Eu vou pegar o Bigode, tu vai ver. E vou pegar "às traição", como ele me pegou, aquele safado.
Não fora nada "às traição", já que o bate-boca eliminava esta possibilidade. E, mesmo admitindo-se que não tivessem trocado palavras, é indiscutível que, a partir do momento em que se puseram frente a frente, com sangue nos olhos e beiços roxos, nada que acontecesse a seguir podia ser levado em conta de "às traição".
Foi lindo e triste, feito incêndio. O uppercut, de uma perfeição de Rocky Marciano, e a queda, parecia a de um prédio desabando. Lindo o soco, triste a queda.
— Ele merecia, pra deixar de ser folgado — já começou a comentar a voz do povo, o que nem era verdadeiro. Mas o mundo é uma selva: ao vencedor, os louros; ao vencido, as pedras.
— Não te falei sempre? É frouxão. Só tem tamanho e safadeza.
— Um amigo meu me contou que ele é mesmo meio covarde. Numa batida, na Favela do Esqueleto, um negrão engrossou com ele, e ele botou o galho dentro.
— Agora, o Bigode...
E os elogios ao vencedor deslizavam como se descessem de um tobogã de mil léguas.
Guido chorou. Olhava-se no espelho. "Como pode? Como é que um troço desse acontece? Tá certo isso? Num homem como eu alguém pode bater? Existe? Um cara parra como eu, levar uma bomba e cair? Cair? Mas isto não vai ficar assim".
Ficou de perfil para xingar a barriga, que já quase cobria a fivela do cinto. Estufou o tórax e já não percebeu a diferença — outrora marcante — dos músculos. Fez pose de Mr. América, e o bíceps parecia que se recusava a aparecer. Ali estava a razão.
— Estou fora de forma.
Era isso. E a boate era a responsável. A noite foi feita pra dormir, não para tomar conta de bêbado.
— Babá de cachaceiro, é isso o que eu sou!
E, além de parar com a bebida, uma decisão que só toma quem é homem!
— Vou parar com essa merda de cigarro.
Primeira providência: pedir as contas na boate. Foi ser massagista de um time de subúrbio. Depois a rentrée na Praia do Inferno, onde as flexões chegaram a ser duzentas. Não se soube mais dele no Beco da Fome, nem no Grego, da Barata Ribeiro. A barriga fugia, e o corpo voltava a ficar como o do tempo da PE. A cor que a noite deixa no rosto deu lugar a um saudável bronzeado. Parecia um cacique.
Foram seis meses de treinamento, repouso, vegetais, vitaminas, ginástica e pouco amor. Tina entendia que agora não podia ser mais todos os dias, mas apenas de vez em quando. O touro ia voltar à arena. Que viessem Dominguim e Manolete e Paco Camino e El Cordobés. Touro, na ponta dos cascos, com sangue na boca e fumaça nas narinas.
Não tinha contado nada a ninguém, e esta é a explicação, para que somente Tina soubesse que era chegada a hora da desforra.
Dormiu cedo na véspera. Pela manhã tomou uma gemada reforçada, almoçou rosbife e salada de batatas, pouco líquido, dormiu à tarde. Estava concentrado.
O táxi parou à porta da boate do Bigode, era meia-noite e bocadinho. Chegava à mesma hora em que chegara na noite fatal. Queria repetir tudo, igual. Até Tina estava com ele. Só que desta vez não ia pedir mesa, ia pedir revanche.
Olhou o porteiro, como se o simpático negrinho fosse um inimigo.
— Diga ao Bigode que o Guido está aqui. Diga que eu vim arrebentar-lhe os cornos.
— O Bigode tá de folga.
Pronto. Com essa ele não contava. Mas não foi esta pequena decepção que o arrefeceu.
— De araque. Nessa boate não tem folga.
— A boate não fecha, mas, às quartas, o leão é o Biju. Serve o Biju?
Não servia. O Biju, ele nem conhecia. Ele queria o Bigode, aquele filho das unhas do uppercut "às traição". Mas o Biju sabia quem ele era.
— Você não é o Guido, da PE? Prazer. Biju.
— Não tenho nada contra si. Eu vim aqui pra pegar o Bigode de pau. Cadê o Bigode?
— Ele folga às quartas.
— Onde ele mora?
— Na Rodolfo Dantas, perto de onde era o Jirau — explicou o negrinho porteiro.
— Então liga pra casa dele e diz que o Guido tá aqui. Diz que eu vim pra dar um cacete nele.
Não houve quem conseguisse tirar isso da cabeça do touro ferido. Nem pedido nem conselho. E tantos eram os conselhos e os pedidos, que a própria Tina já admitia a desistência como um bom negócio.
— Deixa isso pra lá, Guido.
— Me larga! — e empurrou a noiva sobre o balcão.
Já havia raiva, além do ranço, e isso era muito bom. Passava a mão no queixo seguidamente, como se esse gesto o ajudasse a lembrar o uppercut seco, curto e grosso. E bem que ajudava.
— Liga pro Bigode — ameaçou, segurando o negrinho da portaria pelo colarinho da farda. — Liga pro Bigode, antes que eu te dê uma bomba.
Foi o gerente quem telefonou.
Bigode dormia desde nove e meia da noite. Acordou quando o telefone chamava pela décima vez.
— Alô — disse a voz rouca e potente que açoitou os ouvidos do gerente.
— Bigode? Aqui é o Pacheco, da boate.
— Que é que manda, Seu Pacheco? O Biju faltou?
— Não. Biju tá aqui.
— Então, pra que tá me acordando?
O gerente explicou com medo, como se fosse ele o homem que procurava o leão.
— Diz pra ele voltar amanhã.
Com a mão trêmula, o gerente tapou o bocal do telefone e, falando baixo, transmitiu ao desafiante a sugestão do desafiado.
— Ele teve uma boa ideia. Disse pra você voltar amanhã.
Guido tomou o telefone da mão fria do gerente.
— Amanhã volta a sua velha. Se você é homem, como pensa que é, vem cá. Vem pra ser arrebentado, seu safado.
— Oh, Guido — falou manso o sonolento Bigode — eu tou dormindo! — e bocejou sincero, mostrando que não inventava.
— Tu tá tremendo.
— Esquece aquele negócio, procurava contemporizar o Bigode, homem que, no fundo, era bom, tanto que criava passarinhos. — Esquece aquilo, Guido. Eu tava de porre. Eu sou teu amigo, rapaz. Até parece!
— Meu amigo é os tomates. Vem, que eu vou te dar o troco.
— Guido, escuta, tu parece menino.
— E tu parece prostituta.
— Não tou a fim de brigar, meu velho.
— Teu velho é o cara que tu pensa que é teu pai. E quem falou que tu vai brigar? Tu vai apanhar nessa cara, pra deixar de ser folgado.
— Guido...
— Vem ou não vem, Maria Mijona?
Bigode não podia recuar.
— Tá OK. Vou tomar um banho e vou. Em meia hora tou aí.
— 15 minutos! — exigiu Guido, achando-se no direito de dar ele as ordens, na qualidade de desafiante.
— Vou ver o que posso fazer — prometeu Bigode.
Levantou-se, esticou os braços curtos e fortes, a patativa cantava, pensando que o dia nascera. Tinha água. Vestiu uma camisa de colarinho puído — camisa de briga como nós, que não brigamos, definimos — e foi.
Na calçada, uma plateia de Fla-Flu.
Tina comia um misto quente no bar ao lado da boate. A torcida dividida.
— Eu sabia que o Guido, um dia, ia "às forra".
— Quem não sabia?
— Fica falando aí. Tu até chegou a dizer que ele era bicha.
— Fala baixo, rapaz. Parece que tá fazendo comício.
— Eu sou mais o Bigode, quer valer uma Brahma?
— Tá falado.
— Meu amiguinho, o que vai voar de pena! Vê lá se não vai sobrar nada pra gente.
— Tu pensa que eu sou doido? Na hora do pau eu vou subir na marquise, pra ver de cima.
Guido estalava os dedos, comprimindo-os contra a palma da mão. Seis meses, meu nego! Sem farra, sem álcool, sem sexo. Ou quase sem. E, nesses seis meses, que ninguém esqueça de uns 15 dias de dieta macrobiótica. E o melhor é que pelo menos uns vinte caras que tinham presenciado a covarde agressão do Bigode estavam presentes. Viram o verso? Pois iriam ver o reverso.
Bigode veio de ônibus. O pagamento ainda não tinha saído.
Olhou para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Isto provava que não estava fora da sua razão. Podia até mostrar tranquilidade.
Os olhos do Guido faiscavam, como se fabricassem zarabatanas de fogo. O sanduíche de Tina descansou no balcão, e suas mãos se juntaram, num entrelaçamento de dedos que tanto podia ser prece como dúvida. Bigode parou a dois metros.
— Guido...
— Não tem papo.
Foi a última vez que Bigode tentou contemporizar, contornar aquela situação até certo ponto ridícula. Daí, fez o seguinte: caminhou, chegou pertinho e deu um uppercut. Um só, no queixo, Guido caiu como um Gabinete Francês: sem ruído.
A torcida não entendeu. Foi um impacto semelhante ao de um gol aos 10 segundos. O gerente abriu e fechou os olhos, querendo checar se estava mesmo acordado; o negrinho porteiro acendeu um Continental; Tina mordeu o sanduíche; e Bigode pegou o ônibus para voltar pra casa. Quando entrou no apartamento, a patativa dormia no poleiro. Sono mais tranquilo do que o de Guido, que se esparramava na calçada. Um sono de seis meses jogados fora.
Tina não o ajudou a acordar. Foi embora de táxi, dormir na casa da mãe. Para sempre, aliás.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.
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