segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Affonso Celso (Caráter Mineiro)


CAPÍTULO 1

Grandes dificuldades deparava outrora ao governo de Minas Gerais a arrecadação das rendas públicas nas coletorias do sertão.

Não havia ainda estradas de ferro que se incumbissem de cobrar impostos de trânsito e consumo.

As enormes distâncias, os meios primitivos de transporte, a falta de recursos pelo caminho, tornavam sumamente árdua a remessa de somas avultadas por parte daquelas agências remotas para a tesouraria da capital.

Municípios há (Minas, não se ignora, excede a França em extensão) apartados de Ouro Preto centenas de léguas, e léguas de beiço, como lá chamam, isto é, sobrelevando de um apêndice as comuns.

Imaginai veredas aspérrimas, talhadas às vezes em matas espessas; constantemente morros a galgar e a descer; por única dormida, ranchos mal cobertos de sapê; rios sem pontes invadeáveis à menor chuva; atoleiros extensos, onde corre  gente o risco de se afogar em lama; carência absoluta de conforto; necessidade, não raro, de realizar a pé excursões que te prolongam por meses a fio; — e tereis aproximada ideia dos embaraços práticos para se fazer chegar, há anos, com segurança à repartição central as taxas fiscais apuradas nas aludidas localidades sertanejas.

Na impossibilidade de remeter as quantias pelo correio, pois os estafetas lutavam com os óbices indicados, nem lhe sendo dado igualmente servir-se de processos bancários, até então ali não usados, utilizava-se para aquele encargo o governo mineiro das praças do corpo de polícia provincial.

Dois ou três soldados de confiança recebiam a incumbência de percorrer as estações de certa zona longínqua, cobravam o dinheiro e voltavam com ele, depois de ausências de ordinário bastante longas.

Nunca se observou um desvio.

Mostra a estatística ser Minas Gerais uma das regiões do mundo, onde em mais diminuta escala se registram atentados contra a propriedade.

Delitos e delinquentes apontam-se lá, como em toda a parte.

Mata-se por ciúme, em razão de rixas ao jogo, honra de família, questões de terras, excessos alcoólicos nas festas populares.

Mas raríssimos os furtos e os roubos. Atestam o curioso fato os dados oficiais.

Possui uma companhia inglesa no arraial do Morro Velho, perto de Sabará, rica mina de ouro, de cuja exploração colhia ainda há pouco tempo resultados extraordinários.

Manipulado no lugar da extração, o precioso metal era, em seguida, remetido, em barras, no dorso de mulas até ao ponto terminal da estrada de ferro ou das diligências, e daí expedido ao Rio de Janeiro para a exportação.

A tropa que o conduzia, composta de meia dúzia de bestas, guiava-a um único tropeiro, auxiliado por um menino, avô e neto, dizia-se. A viagem durava dias.

Consoante a pontualidade britânica, efetuava a tropa o percurso em datas fixas, geralmente conhecidas.

E atravessava sítios totalmente despovoados, pousava em pontos isolados e certos, chegando sempre a seu destino na época previamente marcada, carregada de arrobas e arrobas de ouro.

Conheciam-na todos os viandantes com quem cruzava. Pelo número dos animais, calculavam precisamente a quantidade transportada, pois sabiam o que cada um podia levar. E, vendo desfilar tantas riquezas, murmuravam, como se consultassem uma folhinha:

— São tantos do mês. Aí vai a tropa do Morro Velho levando tanto de ouro...

O fato repetiu-se por lustros ininterruptamente.

Nunca sucedeu uma demora, um contratempo, um extravio.

Tomariam por doido quem externasse o receio de um assalto a mão armada.

Outro caso significativo:

Os viajantes do Serro e Diamantina para o Rio tornavam-se muito notados em Minas pelo modo como arreavam os seus animais, a boa qualidade destes e a rapidez com que caminhavam, acompanhados de pajens com libré, chapéu de oleado o copo do prata preso à corrente do mesmo metal que traziam a tiracolo.

Sabia-se também que aqueles viajantes eram sempre portadores de avultadas somas em brilhantes, ouro em pó ou trabalhado, numerário para encomendas etc.

No ano de 1860 ou 1861, subia um deles a serra de Ituverava por entre horrível tempestade, quando um raio, caindo sobre a comitiva, fulminou-o, a ele, um dos pajens e todos os animais.

O camarada, único sobrevivente, ficou desacordado.

Voltando a si, horas depois, largou a pé para Ouro Preto, não muito perto do local da catástrofe, chegando alta noite.

Ia dar parto às autoridades do ocorrido.

Só na tarde do dia seguinte compareceram no sítio do sinistro o juiz de ausentes, escrivão e policiais.

Junto aos dois cadáveres velavam pessoas miseráveis que residiam ou ranchos do sapo convizinhos.

Nas canastrinhas intactas encontrou-se para mais de mil contos de reis.

Nos bolsos do negociante as chaves das canastrinhas e grande quantia em papel; nas algibeiras do pajem dinheiro miúdo.

O morto, além disso, conservava no dedo magnífico anel de brilhantes, bem como os botões de camisa feitos da mesma pedra preciosa.

Como procurador fiscal, o pai de quem escreve estas linhas tomou conhecimento da arrecadação que a família declarou exatíssima.

Estes traços criaram merecida legenda em torno da probidade mineira.

Ilimitada a confiança que inspiravam ao antigo comércio da Corte os tropeiros de Minas, famosos pelos seus trajes e pela fidelidade com que solviam seus compromissos e levavam ao destinatário, sem a menor garantia material ou legal para o remetente, centenas de contos de réis.

Mas nenhum episódio dá do caráter mineiro ideia tão completa, como o que passo a narrar, episódio perfeitamente autêntico em todas as suas circunstâncias, salvo um ou outro pormenor alterado pela tradição.

CAPÍTULO 2

Sem embargo do referido quanto à segurança pública, assinalaram-se esse ano alguns fatos de depredação numa das mais afastadas comarcas de Minas Gerais.

Choças e fazendas haviam sido vítimas de saqueio.

Mais de um viajante fora trucidado em emboscada, para se lhe rapinar a bagagem.

Alarmou-se a população. As autoridades investigaram, e verificou-se tratar-se de cinco ou seis estrangeiros, que tinham formado uma quadrilha de salteadores.

Tomaram-se providências e os atentados cessaram. Mas nenhum dos bandidos caíra nas mãos da justiça.

Escondidos nos matos, onde difícil seria persegui-los, aguardavam naturalmente que arrefecesse o zelo policial para de novo entrarem em ação.

Em torno deles, arquitetou a imaginação popular uma lenda.

Cochichava-se que mantinham relações com cúmplices e protetores, habitantes de influentes povoações.

Haviam já decorrido meses depois do último delito, sem que a respectiva impressão se tivesse ainda esvaído, quando dois soldados e um cabo do corpo de polícia começaram a perlustrar a região infestada a coligir o produto de impostos antigos.

Três homens decididos e esforçados, escolhidos a dedo para a perigosa comissão.

Levavam consigo não pequena quantia. Viajavam a pé, bem armados, com as possíveis cautelas.

O dinheiro, conduzia-o o cabo num saco de couro, amarrado por meio de correias às costas.

No último ponto em que se detiveram, muita gente aconselhou-os a não prosseguirem sem reforço de companheiros e de armas.

Iam cortar comprido ermo mal afamado, — desfiladeiros sinistros.

Com a despreocupação e imprevidência habituais ao nosso povo a nada atenderam.

E partiram.

Partiram; e ninguém soube mais notícia deles.

Como não chegassem ao lugar a que se destinavam no prazo devido, começaram a circular boatos de que haviam sido atacados e mortos durante o trajeto.

Oito dias, quinze dias, um mês, dois, o nada de informações.

Avultou e tomou visos de veracidade a suspeita do crime.

A administração deliberou medidas extraordinárias para descobrir a verdade. Numerosas escoltas, coadjuvadas espontaneamente por bandos de particulares, percorreram em todos os sentidos a estrada pela qual os desaparecidos deveriam ter passado.

Organizou-se minucioso sistema de rigorosa pesquisa.

Afinal, após aturado esforço, orientados por uns corvos, encontraram num recôncavo da espessura, entre densa vegetação, dois cadáveres completamente putrefatos.

Difícil averiguar-lhes os traços. Entretanto, pelas roupas e vários sinais, convenceram-se de que um dos corpos era o do cabo e o segundo o de um dos soldados.

Sumira-se o terceiro.

Em roda, vestígios inequívocos denunciavam renhida luta. Pouco distante dos cadáveres achou-se dilacerado e vazio o saco de couro que continha o dinheiro.

Dias depois, toparam mais longe, no fundo de um precipício, com o outro corpo.

Irreconhecível este, de tão decomposto.

De tal feitio enlameada e consumida a roupa, que nenhum esclarecimento deparou.

Não havia dúvida: acometidos por uma horda de ladrões — os estrangeiros certamente, — superiores em número, as três praças tinham sucumbido no cumprimento do dever.

Uma delas, gravemente ferida, tentara fugir e expirara longe dos camaradas.

O dinheiro, cerca de cem contos, fora roubado.

A despeito das mais severas diligências empregadas para capturar os assassinos, nada se conseguiu.

O acontecimento produziu intensíssima sensação.

Mas, com o correr dispersador do tempo, apagou-se a pouco e pouco da memória pública.

Sucessos de maior monta preocupavam as atenções. Iniciara-se a guerra do Paraguai, exigindo do Brasil enormes sacrifícios de homens e de fortunas. O estrépito dos preparos bélicos abafava qualquer outro rumor.

Um ano depois, subsistia apenas dos três soldados massacrados duvidosa lembrança, como de um obscuro drama do passado, mais imaginário do que real.

CAPÍTULO 3

Já quase ninguém se recordava lucidamente do ocorrido, quando, certa manhã, apresentou-se no palácio do governo em Ouro Preto um homem sujo, aspecto selvagem, crestado do sol, o cabelo e a barba em triste estado.

Esse homem declarou à sentinela que queria falar sem demora ao presidente da província.

Recusou-se a princípio o alto funcionário; mas o desconhecido tanto insistiu, afirmando ter comunicações importantes a lhe fazer, que por fim foi admitido no gabinete oficial.

— Sou Manuel Cruz, praça de polícia, — murmurou achegando-se do administrador. — Cumprindo as ordens do meu falecido cabo, venho entregar em mão própria a vossa excelência os cem contos que arrecadamos no sertão.

Atônito, o presidente não compreendia.

— Explique-se, — exclamou com surpresa e mau humor.

Então o recém-chegado narrou com simplicidade a sua trágica e gloriosa história.

Era o terceiro dos soldados incumbidos da cobrança.

Ao entrarem na região deserta, onde o assalto dos bandidos podia ter lugar, dissera-lhe o cabo:

— “Todos sabem que o dinheiro vai comigo dentro do saco de couro. Pois tome lá você o cobre e esconda-o debaixo da roupa, eu fico com o saco vazio. Se formos atacados, eu e o camarada defenderemos com unhas e dentes o saco, para fingir que a soma aí está. Enquanto eles estiverem ocupados conosco, você trate de escapulir. Arranje as coisas de maneira a só entregar a chelpa ao presidente da província. A mais ninguém, olhe lá. E Deus o ajude.”

Realizou-se o que o cabo previra. Uma tarde, achavam-se arranchados por precaução em plena mata e preparavam a comida, quando foram agredidos pelos malfeitores.

Fizeram-lhes face o cabo e o companheiro com inaudito denodo. O estratagema do saco surtiu efeito. Sequiosos de se apoderarem desse saco, que os soldados defendiam ardentemente, não deram fé os agressores no portador da quantia, o qual, graças às trevas incipientes, conseguiu fugir.

Correra perigos indescritíveis, pois os assassinos, trucidados os outros e conhecido o embuste, saíram-lhe furiosos ao encalço.

Sem comer nem beber, passara dias e dias escondido em furnas, rastejando alta noite como um réptil, evitando as sendas batidas, com infinitos cuidados, curtindo incríveis privações.

Efetuara assim milagrosamente estupendo percurso. Mas cumprira à risca a ordem do seu cabo. Ali punha o maço de notas intacto. Quisesse o Sr. presidente ter a bondade de contar para verificar si estava certo.

O presidente quedara estupefato. Afinal inquiriu:

— Mas o terceiro cadáver que se achou? Bem se vê que não era o seu, como se assegurou.

— Era naturalmente o de um dos ladrões que nós baleamos logo no princípio da festa, — respondeu Manuel Cruz.

— E você sabia que o mundo inteiro supunha o dinheiro roubado e você morto?

— Desconfiava. Contava mesmo com essa crença para chegar até aqui, sem maior incômodo.

— Bem, concluiu o presidente, — você praticou uma bonita ação. Há de ser recompensado. E, voltando-se para o ordenança que da porta assistia à cena:

— Acompanhe este homem ao Tesouro Provincial para que ele deixe lá a quantia e se lhe passe recibo.

Aí o soldado agastou-se:

— Ora, excelentíssimo! — bradou. Pois eu andei duzentas léguas sozinho com o dinheiro e preciso agora de guia para ir ali a dois passos... Mande por outro que eu estou cansado e lá não vou. A ordem do meu cabo era entregá-lo a vossa excelência pessoalmente. Já o fiz. Se acha que o meu serviço vale alguma coisa, mande dar a minha baixa. Tenho mulher e filhos. Não os vejo há mais de 14 meses e eles pensam que eu morri. São muito pobres. Preciso trabalhar um pouco para a família. Passe vossa excelência muito bem.

E saiu desabridamente, batendo com a porta, depois de haver atirado os cem contos para cima de uma mesa.

Fonte:
Poeteiro (revisão ortográfica Iba Mendes)

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