domingo, 8 de dezembro de 2019

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) III


SÓ SE CHORA POR QUEM PARTE
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 20
 

Choremos por quem parte sem voltar
A ser presença viva à nossa mesa
E desse imenso reino da tristeza
Desça à terra num raio de luar.

Ausente, para sempre, em nosso olhar
Terá em nosso peito a fortaleza
Que guarda a delicada vela acesa
Da memória que brilha em seu altar.

De saudade será a sua imagem
Que se esvai como um barco na viagem
No denso nevoeiro, rumo ao norte.

Só quando a sua face tão inteira
Não nos assomar, sem que a gente queira
Só então foi levada pela morte.

DORMIRÁ NAS BERMAS DAS ESTRADAS
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 42

Dormirá pelas bermas das estradas
O sonho a que ninguém abrir o peito
Definhando ao pó sujo e tão desfeito
Onde passam pessoas apressadas.

Bastavam três palavras conversadas
Num olhar de amizade e de respeito
Pão e sopa na mesa e morno leito
Para o salvar de tão frias facadas.

Um sonho é uma riqueza sem dinheiro
Um impulso tão forte e tão inteiro
Que a vida se converte em "quero e posso!"

Num mundo tão ingrato e tão padrasto
Por vezes, quando tudo já foi gasto
O sonho é o sumo bem que ainda é nosso.

E OS TEUS OLHOS FICARAM MAIS DISTANTES
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 97

E os teus olhos ficaram mais distantes
Quando na luz da tarde se perdeu
O aceno da partida que doeu
Como nunca me tinha ferido antes.

Fiquei parado, ali, por uns instantes
Naufragando no mar que, então, desceu
Do meu olhar que a noite ao mundo deu
Habitada por gritos suplicantes.

Tu partiste e eu fiquei de mim ausente
O tempo corre e apenas sei que sinto
Que na terra já nada mais me importa,

Errante vou seguindo inconsciente
Perdido nos sopés de um labirinto
Como se em mim já fosse a vida morta.

QUE NEM UM RASTO FIQUE NO CAMINHO
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 122

Que nem rasto fique no caminho
Por onde me perdi, errando os passos
E os meus pés possam ter deixado traços
Quando avançavam sós e em desalinho.

Por mim acompanhado andei sozinho
Com glória diminuta e bens escassos
Cingi os grandes nadas com meus braços
Plantei agrura e quis colher carinho.

Em vão tentei encher meu ser de bem
Degustar o melhor que a vida tem
Mas o meu peito a graça não achou.

Fugaz e pouca foi a rainha vida
Uma estrela cadente que, perdida
Riscou o céu e logo se esfumou...

ANTE A VERDADE PURA E SEM DISFARCE
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 192

Ante a verdade pura e sem disfarce
Dos teus olhos interrogando os meus
O coração, nesse instante do adeus
Não logrou fazer mais do que entregar-se.

E vieram as lágrimas juntar-se
Nascidas dos meus olhos tão ateus
Ao enlace dos meus braços pigmeus
Onde o teu colo em dor veio aninhar-se.

O amor falou mais alto nessa hora
Em que tu desististe de ir embora
E voltaste a aquecer a nossa cama.

A lua deu lugar à luz do dia
Das trevas despontou uma alegria
E das cinzas nasceu uma outra chama.

E EU FUI TALVEZ FELIZ SEM O SABER
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 193

Eu fui talvez feliz sem o saber
Quando a felicidade eu procurava
E, cego, via em tudo o que encontrava
A negação do bem e do prazer.

Nessa busca ansiosa pelo ter
A minha energia dissipava
E impotente e incapaz não enxergava
Que o principal da vida é sempre o ser.

O Tempo deu-me a doce regalia
De ver agora claro o que eu não via
Que é quase sempre em vão o que sofremos.

Depois de uma procura tão a sós
Sei que a felicidade mora em nós
Se amarmos o que somos e o que temos.

DOS GESTOS COM QUE AMOR SE MANIFESTE
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés" p. 206

Dos gestos com que Amor se manifeste
De todos o sorriso é tão primeiro
Que sendo puro, aberto e verdadeiro
Parece a luz que vem do azul celeste.

Se de um sorriso o olhar se enfeita e veste
O nosso coração bate ligeiro
Parece o peito ser quente braseiro
E de rubor o rosto se reveste.

Quando o sorriso nasce nada é feio
E as almas ficam presas nesse enleio
Que tanta coisa diz sem dizer nada.

Ficam palavras presas na garganta
E aquela que de todas mais encanta
É no fundo da alma que é guardada.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.

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