sexta-feira, 7 de abril de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 4)

 



Hans Christian Andersen (A Criança e o Túmulo)

 
A casa estava coberta de luto, e nos corações reinava o pesar. O filho menor, um menino de quatro anos, a alegria e a esperança dos pais acabava de expirar.

É certo que ainda ficavam ao casal duas filhas, das quais a mais velha já ia ser confirmada; e que eram ambas meninas excelentes e bem-educadas. Mas o filho que se perde é sempre o mais querido, e além disso aquele era o menor - e um varão! Era uma provocação cruel.

As irmãs estavam tristes; e o desgosto dos pais ainda mais as comovia. O pai sofria grande abalo, mas a mãe, essa, achava-se completamente prostrada pela imensa dor.

Dia e noite tratara a criança doente, cuidara dela, andara com ela nos braços; sentira que aquele filhinho representava uma parte tão grande de si própria! Não podia compreender aquilo - que ele morrera, que ia ser posto num caixão, e repousar no túmulo... Entendia que  Deus não podia tirar-lhe aquele filho e, quando verificou que assim era na verdade, quando não lhe restou mas nenhuma dúvida, disse, na sua dor cruciante:

- Oh! É que Deus não sabe disso! É que ele tem aqui na terra servidores desalmados, que fazem as coisas à sua vontade, e não ouvem as preces de uma mãe!

Na sua grande dor ela se afastou de Deus. Vieram-lhe pensamentos sombrios, os pensamentos da morte, da morte eterna; ideias de que o homem é terra na terra, e que com ele tudo se acaba. E com semelhantes pensamentos, não achava apoio algum, não encontrava nada a que se amparar, e caiu no abismo do desespero.

Nos momentos  mais tristes, já não podia chorar. Não pensava nas meninas, nas filhas que lhe restavam. As lágrimas do marido caíam-lhe na fronte, mas a desditosa mãe nem olhava para ele. Todos os seus pensamentos estavam com o filho morto; todo o seu ser, toda a sua existência não tinha outro objetivo senão evocar as recordações da criança, ressuscitar cada um dos seus inocente ditos infantis.

Chegou a hora do enterro. A mãe passara as noites anteriores sem sono, mas naquela madrugada adormeceu por alguns instantes, dominada pelo cansaço. E foi nesse intervalo que levaram o caixão para uma sala mais distante; preparam-no lá longe, para que ela não ouvisse as marteladas.

Quando acordou, quis ver o menino, mas o marido disse-lhe com voz sufocada pelas lágrimas:

- Já fechamos o caixão: era preciso…

E a mãe, chorando alto, gritou:

- Se Deus se mostra duro comigo, por que haviam os homens de ser diferentes?

Sepultaram a criança. A mãe inconsolável ficou sentada ao lado das filhas; olhava para a porta , mas sem a ver. E seus pensamentos, dali em diante, já não tinham ligação alguma com o lar. Entregava-se à dor, que arrojava de um lado para outro, como as ondas do mar jogam com barco sem leme nem piloto. Passou assim  o dia do enterro, e que se seguiram foram do mesmo  modo cheios de mágoa sombria e pesada.

As filhas e o marido aflito observavam-na, com os olhos úmidos e cheios de tristeza; ela não ouvia as palavras de consolação - se é que alguma consolação lhe podiam oferecer aqueles que também se sentiam tão profundamente abalados.

Ela já não sabia o que era sono; e contudo seria ele, naquela situação, o seu  melhor amigo; mais que qualquer outra coisa poderia revigorar-lhe o corpo e apaziguar-lhe a alma. Persuadiram-na , ainda assim, a recolher-se, e ela ficava deitada, tranquila, como se dormisse.

Certa noite o marido observou-lhe a respiração e ficou persuadido de que ela finalmente encontrara repouso e alívio no sono. De mãos juntas rezou e pegou no sono, um sono profundo e benfazejo. Não viu pois quando a mulher se levantou, vestiu-se e saiu de casa de mansinho; queira ir ao lugar para onde iam, noite e dia, os seus pensamentos - o túmulo que encerrava o seu filho. Atravessou o jardim, depois os campos, tomando o trilho que levava ao cemitério, sem ninguém, a visse. Também ela não teria visto ninguém, porque só tinha olhos para o seu único objetivo.

A noite era esplêndida, cheia de estrelas;  o ar estava ainda suave, pois mal começara o outono.

Ela entrou no cemitério e parou em frente do pequenino túmulo, que parecia um grande ramalhete de flores perfumadas. Sentou-se e curvou a cabeça sobre a sepultura, como se pudesse, através da espessa camada de terra, ver o filhinho , cujo sorriso lhe aparecia tão nitidamente diante dos olhos e cuja expressão carinhosa, até no leito da dor, era inesquecível. E que olhar expressivo era o da criança, quando ela se inclinara, pegando-lhe na mão tão magrinha, que ele próprio já não podia erguer! E assim como sentava antes junto do leito, ficava agora ali  ao pé do seu túmulo.

 - Desejas descer até onde está teu filho? - perguntou uma voz perto dela.

Era uma voz que ressoava clara, profunda, e que lhe chegou até o coração. Ela ergueu os olhos e viu a seu lado uma mulher envolta em um manto preto, com o rosto embuçado num capuz. Por baixo deste conseguiu a mãe ver um rosto grave mas que inspirava confiança.

Os olhos brilhavam, no esplendor da juventude.

- Descer até onde está meu filho? - repetiu ela com voz suplicante e desesperada.

- Atreves-te a seguir-me? Sou a morte.

A mãe fez um gesto afirmativo.

Dir-se-ia que de repente as estrelas, lá nas alturas, tinham adquirido o brilho da lua cheia. Viu a mãe o esplendor das flores variegadas do túmulo, cuja camada de terra ia cedendo brandamente, suavemente, como um pano enfunado pelo vento. E ela ia descendo devagar, enquanto o vulto a cobria com o seu manto negro. Fez-se noite  e a noite da morte. A mãe ia caindo , caindo, penetrando em uma profundidade que a pá do coveiro não alcança. E o cemitério ia formando uma abóbada acima da sua cabeça.

Caiu a aba do manto e ela se  viu em uma sala enorme, vasta e acolhedora. Reinava ali um crepúsculo, mas apareceu-lhe imediatamente o filhinho, que se aconchegou a ela, sorrindo; e havia naquele sorriso tamanha beleza, como jamais lhe vira no rosto. Ela soltou uma exclamação que não foi ouvida, porque soava ao redor dela, ora muito perto, ora muito longe , e de novo perto, uma música magnifica, que ia subindo em um suave crescendo; nunca lhe tinham chegado aos ouvidos sons assim beatíficos! Vinham de trás da espessa cortina negra como a noite, que separava a sala do grande país da Eternidade.

– Mamãe querida, minha mamãe!

Ela ouvia a voz do filho, a voz conhecida e adorada…

E um beijo se seguia a outro beijo, e ela sentia uma felicidade infinita. E a criança apontou para a cortina escura:

- Não há na terra tanta beleza, mãe! Estás vendo? Vês a todos eles, mãe? Ah! Isto é que é felicidade!

Mas a mãe nada via no ponto que a criança lhe mostrava - nada , a não ser a noite sombria. É que via com olhos terrenos, não como a criança que Deus já chamara para si. Também só ouvia a melodia da musica, os sons; não entendia a letra, não ouvia as palavras em que deveria crer.

- Agora posso voar, mãe! Voar com todas as outras crianças alegre, voar para Deus. Eu gostaria tanto de ir... mas se choras assim talvez eu me perca! E eu gostaria tanto de ir! Tu me deixarás voar, não é , mãe? Daqui a pouco te reunirás lá comigo, mãe!

- Fica, oh! fica aqui! Só um instantinho... Quero somente te olhar mais uma vez.

E beijava e acariciava a criança.

Mas ouviu que a chamavam lá de cima; chamavam-na pelo nome, com voz queixosa. Que seria aquilo?

- Estás ouvindo, mãe? É o pai quem te chama.

E instantes depois ela ouviu gemidos; parecia choro de crianças. e o menino disse de novo:

- São as minhas irmãs... Tu não te esqueceste delas, não, mãe?

E a mãe lembrou-se dos que deixara lá em cima. Sentiu em grande pavor. Olhou para a sala, onde passavam sempre vultos e mais vultos, voando. Pareceu-lhe que  conhecia alguns  dos  que andavam pela sala da Morte, em busca da cortina negra, por detrás da qual desapareciam. Iriam também passar por ali o marido e as filhas? Não isso não: seus chamados e seus suspiros vinham de cima. De repente disse o menino:

- Mãe! Mãe! Agora repicando os sinos do Céu... Está nascendo o sol!

E derramou-se sobre a criança uma luz arrebatadora. A mãe sentia que ia subindo... De repente sentiu frio. Levantou  a cabeça e viu que estava deitada no cemitério, sobre a sepultura do filho.

Mas naquele sonho Deus iluminara o seu entendimento. A mãe dobrou os joelhos e rezou:

- Ó Senhor, meu Deus, perdoa-me ter desejado deter uma alma eterna na sua viagem! Perdoa-me ter esquecido dos meus deveres para com os vivos, que me deste nesta Terra!

E depois dessas palavras seu coração ficou aliviado. Surgiu o sol. Um passarinho cantava acima da sua cabeça, e os sinos da igreja repicavam, anunciando o oficio de manhã. Tudo o que a cercava se tornou sagrado para o seu coração. Agora conhecia o seu Deus,  conhecia os seus deveres e, cheia de saudade, correu para casa. Curvou-se sobre o marido, que ainda dormia. seu beijo ardente e cheio de fervor acordou-o. Dos lábios do casal brotaram palavras vindas do íntimo do coração. Ela era agora forte e meiga, como  a mais meiga das esposas. Vinha dela uma fonte de consolação:

- Deus faz tudo sempre pelo melhor!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1859.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LII

“PAIRA NO AMBÍGUO DESTINAR-SE”    

Paira no ambíguo destinar-se 
Entre longínquos precipícios, 
A ânsia de dar-se preste a dar-se 
Na sombra vaga entre suplícios,

Roda dolente do parar-se 
Para, velados sacrifícios, 
Não ter terraços sobre errar-se 
Nem ilusões com interstícios,

Tudo velado, e o ócio a ter-se 
De leque em leque, a aragem fina 
Com consciência de perder-se... 

Tamanha a flama e pequenina 
Pensar na mágoa japonesa 
Que ilude as sortes da Certeza. 
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“PAISAGENS, QUERO-AS COMIGO”

Paisagens, quero-as comigo.
Paisagens, quadros que são...
Ondular louro do trigo,
Faróis de sóis que sigo,
Céu mau, juncos, solidão...

Umas pela mão de Deus,
Outras pelas mãos das fadas,
Outras por acasos meus,
Outras por lembranças dadas...

Paisagens... Recordações, 
Porque até o que se vê 
Com primeiras impressões 
Algures foi o que é, 
No ciclo das sensações. 

Paisagens... Enfim, o teor 
Da que está aqui é a rua 
Onde ao sol bom do torpor 
Que na alma se me insinua 
Não vejo nada melhor.
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“PÁLIDA, A LUA PERMANECE”

Pálida, a Lua permanece
No céu que o Sol vai invadir.
Ah, nada interessante esquece.
Saber, pensar - tudo é existir.

Mas pudesse o meu coração
Saber à tona do que eu sou
Que existe sempre a sensação
Ainda quando ela acabou…
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“PÁLIDA SOMBRA ESVOAÇA”

Pálida sombra esvoaça
Como só fingindo ser
Por entre o vento que passa
E altas nuvens a correr.

Mal se sabe se existiu,
Se foi erro tê-la visto,
Sombra de sombra fluiu
Entre tudo de onde disto.

Nem me resta uma memória.
É como se alguém confuso
Se não lembrasse da história.
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“PARECE ÀS VEZES QUE DESPERTO”

Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?

A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.

E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?

Entendo, como um carrossel;
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...)
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“O PESO DE HAVER O MUNDO”

Passa no sopro da aragem 
Que um momento o levantou 
Um vago anseio de viagem 
Que o coração me toldou. 

Será que em seu movimento 
A brisa lembre a partida, 
Ou que a largueza do vento 
Lembre o ar livre da ida? 

Não sei, mas subitamente 
Sinto a tristeza de estar 
O sonho triste que há rente 
Entre sonhar e sonhar.
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“PASSAVA EU NA ESTRADA PENSANDO IMPRECISO”

Passava eu na estrada pensando impreciso, 
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso 
Agradou-lhe a cara toda.

Bem sei, bem sei, sorrirá assim 
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim... 
Que mais posso eu querer?

Não sou nesta vida nem eu nem ninguém, 
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém 
Ainda que por acaso.

Fonte:
Poesias em Domínio Público

Lima Barreto (As teorias do dr. Caruru)

O sábio dr. Caruru da Fonseca despertou naquele dia com o humor igual com que despertava em todos os outros.

Mme. Caruru ainda ficou na cama, muito certa de que a Inácia daria o café ao seu ilustre marido. Era este uma sumidade em matéria de psiquiatria, criminologia, medicina legal e outras coisas divertidas.

Tinha, na nossa democracia, por ser sumidade e doutor, direito a exercer quatro empregos.

Era lente da Escola de Medicina, era chefe do Gabinete Médico da Polícia, era subdiretor do Manicômio Nacional e também inspetor da Higiene Pública.

Caruru tinha mesmo publicado várias obras, entre as quais se destacava Os caracteres somáticos da degenerescência (segundo o qual características físicas seriam estigmas demarcados de degenerescência física e moral) — livro que fora muito gabado pelo estilo saborosamente clássico. Um crítico disse:

O milagre que, no seu livro, conseguiu o dr. Caruru obter, foi exprimir ideias e concepções modernas com a sã e enérgica linguagem dos quinhentistas e mesmo dos seus antecessores. Seguiu, portanto, André Chénier, que desejava fazer poesias modernas com versos antigos. Cito de memória. Não há como louvar etc.

Caruru, como esperava a sua dorminhoca mulher, foi logo servido do café pela dedicada Inácia e não tardou que lhe viessem os jornais.

Leu o primeiro que lhe caiu sob os olhos e quase teve um ataque quando deu com um “controlava”.

— Que gente! — disse de si para si. — Estão a esbodegar esta maravilhosa língua.

Apanhou outro, desprezou a parte política e correu ao noticiário policial. Deparou-se-lhe a seguinte notícia:

Ontem, ao atravessar a avenida Central, foi acometido de um ataque o pintor Francisco Murga, morrendo repentinamente. Murga, que era ainda moço, pois contava pouco mais de trinta anos, estreou-se com grande brilho há uns dez anos passados, tendo obtido o prêmio de viagem* e tudo fazia crer que ele continuaria a dar-nos obras-primas, ou quase isso, como foi o seu primeiro quadro, O banzo. Entretanto, tendo se entregado à mais desordenada boemia, tal não fez, embora não deixasse sempre de produzir etc. etc.

O dr. Caruru exultou. Que caso! Devia ser um exemplar típico de dipsomaníaco, de degenerado superior e ele, o doutor, como chefe do Gabinete da Polícia, ia ter o seu cadáver às ordens, para bem verificar as suas teorias mais ou menos à Lavater ou Gall.** A diferença entre ele e estes dois últimos é que Caruru encontrava seguros indícios do caráter, da inteligência etc. dos indivíduos em todas as partes do corpo.

O doutor pediu mais uma xícara de café e não se pôde conter:

— Gertrudes! — gritou para a mulher. — Tenho hoje um caso excelente. 

A mulher apareceu em trajes matinais e ele narrou toda a sua alegria. Caruru vestiu-se e correu à faculdade. Aos primeiros estudantes que lá apareceram, Caruru os convidou para irem ao necrotério verificar a certeza das asserções que fazia no seu célebre livro, escrito no estilo de Rui de Pina*** e, por pouco, que não o era no da Notícia de partição. Foram estudantes de medicina, de farmácia, de dentista e até uma dama que estudava para parteira.

Chegado que foi ao necrotério, o dr. Caruru armou-se de uma bateria de compassos graduados, de uma porção de réguas, de todo um arsenal de instrumentos de antropométrica e começou a preleção diante do cadáver:

— Meus senhores. Estamos certamente diante de um caso típico de degenerado...

A sua linguagem falada era diferente da escrita. Ele escrevia clássico ou pré-clássico, mas falava como qualquer um de nós.

— O indivíduo que está aqui, bêbedo incorrigível, vagabundo, incapaz de afeições, de dedicações, vai demonstrar com as injeções que lhe vou fazer, a verdade das minhas teorias. Vejamos os pés...

Caruru armou-se de uma das tais réguas, enquanto um servente chorava.

Aplicou-a aos pés do defunto e, pouco depois, exclamou triunfante:

— Vejam só! O pé direito mede quase mais um centímetro que o esquerdo. Não é o que eu dizia? É um degenerado! Essa assimetria dos pés...

O servente que chorava interrompeu-o:

— Vossa Excelência só por causa dos pés do senhor Murga não pode dizer isto. Ele não nasceu assim.

— Como foi então?

— Fui seu amigo e devo-lhe muitos favores. Eu conto a Vossa Excelência...

“Seu” Murga teve um tumor no pé direito e foi obrigado a andar com chinelo num pé, durante cerca de dois meses, enquanto o esquerdo estava calçado. Naturalmente aquele aumentou enquanto o outro ficava parado. Foi por isso.
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Notas:
*Prêmio concedido a artistas da Academia que lhes permitia viajar à França ou à Itália para aprimorar a formação. O prêmio foi instituído durante o Segundo Reinado.

**Joahann Kaspas Lavater (1741-1801) foi um teólogo e filósofo suíço e Franz Joseph Gall (1758-1828), um médico e anatomista alemão.

***Rui de Pina (1440-1522) foi cronista oficial de d. João II.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Publicado originalmente em 1915.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Varal de Trovas n. 579

 

Alba Christina Campos Netto (Ricardo voltou)

Não esperava mais que Ricardo voltasse. Ricardo que preencheu tantas horas da minha vazia meninice, brincando comigo, me fazendo rir, me contando histórias, enquanto eu, inocente e sem perspectiva, ouvia a vitrola, ou me imaginava estrela de cinema. Ricardo sempre perto, embalando os meus sonhos, contando casos, me levando doces. E eu, por meu lado, na minha inocência útil, fazendo com que Ricardo encontrasse o seu amor ao lado da namorada que era minha vizinha. Era por ela que Ricardo vinha à minha casa. Não por mim. Não por minha solidão. Por ela. Por Marieta.

Ele trazia a irmã, a Lúcia, para ficar comigo enquanto ele e a Marieta namoravam. Era belo ...Eu achava lindo. Os dois juntinhos, eu e a Lúcia observando. Mas não deu certo. Brigaram. Marieta foi embora de nossas vidas.

Mas como tudo tem ciclos, um dia Ricardo apareceu com nova namorada. Irmã da minha amiga, a Joyce. Achei mais lindo ainda. Só que o que eu não sabia, era por que eu achava tudo lindo. No fundo eu amava Ricardo. E amava tanto que começava a amar as mulheres que ele amava.

E essa agora, como era mesmo o nome? Irene, se não me engano. Não lembro, nem quero lembrar. Fui até assistir ao casamento dele. Era um amor bonito, puro, segundo a Joyce. Mas eu não sei porque, Ricardo começou a se fixar no meu pensamento. Não sabia na época, pelo menos.

Acompanhava todos os passos da Joyce, das irmãs dela, da Irene, mas o que eu queria mesmo era saber do Ricardo - O seu sorriso, os seus olhos, a maneira de me tratar, quando me encontrava, tinha sempre uma palavra de carinho: aquela menina que ele conheceu pequena, que era para ele uma irmãzinha. Eu adorava, sem saber que, no fundo, eu não estava nem um pouco a fim de ser irmãzinha...

Os tempos passaram. Lá se vão uns quarenta anos. E agora Ricardo voltou. Teve aventuras, teve dissabores, não está mais com a Irene, que se transformou na Mabel, que não era nem um pouco parecida com a Marieta, e que não tinham nada a ver comigo.

Não pensei que Ricardo voltasse. Nem tampouco que voltasse com tanta impetuosidade sobre o meu sonho, sobre a minha emoção. Foi como um sonho. Um dia acordei e vi Ricardo ao meu lado. Não saiu do meu lado o dia todo. Fiquei menina de novo, rejuvenesci, amei Ricardo na minha imaginação. Pensei que desta vez ele ficaria. Não... não podia. É tarde. Era melhor que fosse embora. Era melhor esquecer. Mas como? Pensar noutra coisa, noutros Ricardos? Não foi possível. Ele quis ficar.

Deixei. Consenti. Sonhei de novo. Sonhei com ele junto a mim, me amando como agora eu sei que gostaria que ele me amasse. Deixei que ele tomasse conta dos meus dias, dos meus pensamentos, dos meus sonhos, das minhas fantasias. Fiquei horas ao lado dele sonhando, esperando.

Só então soube que ele procurava a Ângela. Ângela, era esse o nome. E chamei Ângela. Mais uma vez eu fui a ponte para o amor de Ricardo. Não era mais a menininha que ele tratava como irmã, não era mais a amiga da irmã, não era, nem mesmo fui, a namorada, a amante, a mulher que ele procurava. Eu era o caminho para que ele se encontrasse. E levei Ricardo até Ângela. Fiz o encontro dos dois, deixei que se amassem, que se unissem, que não se separassem.

Fiquei com eles vários dias, até ter certeza de que realmente Ricardo tinha encontrado a mulher de sua vida.

Nunca mais, Ricardo, nunca mais me procure. Sei que não sou para você, que você não é para mim. Você foi somente a minha fantasia, o meu amor imaginário, a segurança de uma época triste e solitária, quando ninguém, mas ninguém mais além de você, podia casar com os meus pensamentos. Seja feliz. Sejam felizes. Ângela, adoro você que encontrou Ricardo num momento certo, num momento bom para ele, para você, para mim. Deixe que a vida faça vocês dois um exemplo de felicidade e amor para quem quer que os veja, como estão sendo para mim.

Às vezes me sinto em Ângela, às vezes me imagino com Ricardo como se fosse Ângela, ou Ângela fosse eu. Assim me recupero um pouco das frustrações que a vida me trouxe. Mas sei que amanhã, que daqui uns dias, quando não mais estiver com a garganta me apertando tanto, vou poder falar, cantar, dizer a todos que estou muito feliz. Cheguei a meu destino. Ricardo voltou. E eu dei a ele um destino que não era, de nenhum modo, o meu.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 22

Ao ver mamãe de joelhos,
mãos postas, que olhar bonito!
Eu vi, quem crer nos conselhos
do silêncio do infinito!
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Busca-me com passos certos,
que esta busca não te cansa;
porque, meus braços abertos,
te esperam desde criança!
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Cada flor que tu semeias
aos desafetos e irmãos,
se perfuma almas alheias,
põe perfume em tuas mãos!
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Decidiste impor intrigas,
mas a distância, sem voz...
Diz que é melhor nossas brigas
que esse silêncio entre nós!
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Do lar que nasci um dia,
guardo ensinos naturais,
da riqueza que existia
na pobreza de meus pais!
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Essa angústia, que te abraça
e, que tanto te angustia...
Esquece-a, que a angústia passa,
como passa a luz do dia!
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Fui nauta!... E, entre os mais tristonhos,  
pescava nos lagos meus,
tentando pescar meus sonhos,
no lago dos olhos teus!
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Lágrima, essência que habita,
nos esconderijos da alma;
de pranto, é dor infinita,
do riso, essência que acalma!
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Na ausência de teus carinhos,
sem tua voz que me acalma,
abrem-se incertos caminhos
na contramão de minha alma!
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Não quero prata nem ouro,
nem falsos lauréis nem glória;
basta-me o simples tesouro
de honrar meu nome na história.
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No teu olhar tão risonho,
que escondes dos olhos meus,
tens a tinta do meu sonho
no verde dos olhos teus!
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Nunca te iludas com nada;
prepara tuas defesas...
Por sob a cinza apagada,
pode haver brasas acesas!
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O grande poeta é aquele,
que por tudo quanto deixa...
Nem leva mágoa com ele,
nem dele, ninguém se queixa!
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O velho outono, é aquarela
que, aos poucos, perdendo a cor,
deixa a velhice mais bela,
sábia, e mais rica de amor!
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Peço sempre, humildemente,
diante do altar todo dia,
que a luz se faça presente
no olhar do cego de guia!
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Pedi a Deus, um conselho:
Dá-me a humildade da lua,
que sorri diante do espelho
de qualquer poça da rua!
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Por mais que a maldade busque
me ofuscar da crença, a luz...
Não há maldade, que ofusque
a fé que trago na cruz!
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Por que não me estende as mãos,
aurora do meu sonhar,
pondo luz nos sonhos vãos
que a vida não quis me dar?!...
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Por timidez e, indeciso,
passo a vida a mendigar,
uma esmola do sorriso
que há na luz do teu olhar!
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Por tua ausência em meu leito,
essa dor que me corrói,
se não dói mais no teu peito,
mas, no meu peito, ainda dói!
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Quando a mãe, nos aconselha,
a seguir com passos certos,
nossa vida se assemelha
ao bem, de braços abertos!
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Relógio, por quem tu choras?
teu bater tão triste assim,
mastiga o sono das horas,
das noites que não têm fim!
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Se a empatia, por encanto,
não requer lei, nem decreto,
por que ela se esconde tanto
nos espigões de concreto!...
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Se a saudade é um desafio,
até defendo a saudade,
quando consola o vazio
de quem vive na orfandade!
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Se o filho tropeça e cai,
ou simplesmente escorrega...
Minha angústia, por ser pai,
mede a aflição da mãe cega!
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Se os sonhos que tu conduzes,
contêm da treva, o negror,
põe candelabros de luzes
nas reticências do amor!
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Vi no riso da criança
e no olhar triste e profundo,
os encantos da esperança
e os desesperos do mundo!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Nilto Maciel (Colombo e as Carícias)

Desnorteados, Colombo e sua jangada vagavam pelo mar das tempestades. O sol há muito se metera nas profundezas das águas. Nenhuma estrela indicava rumos.

Era esperar pelo pior. Horas e dias de perdição, fome e sede. Depois a morte.

E o jangadeiro adormeceu.

As correntes, entanto, levavam a jangada ao reino do deus-dará. E antes do amanhecer aportou numa remota ilha. Encalhou na praia.

Com o sol no rosto, Colombo despertou. O barulho das ondas quebrando e o sossego da jangada pouco diziam. Não se lembrava ainda do desespero de horas atrás. E nem quis pensar.

Sem delongas, levantou-se e pulou para a terra. Sim, lembrava-se de tudo e se sabia salvo. O mar não o sepultara daquela vez.

Exultante, andou para lá e para cá. Pensou até em rabiscar umas figuras na areia. Talvez umas letras. Ser menino de novo. Construir uns castelos enormes, cheios de torres.

Súbito, parou. Ora, aquilo só podia ser uma ilha, terra nova, desconhecida dos homens. Maravilha! Voltaria ao Ceará e anunciaria ao mundo a sua descoberta. Iria aos jornais, às rádios, às televisões. Até ficaria famoso.

Enquanto sonhava, uns indivíduos o cercaram.

— Quem é você?

— De onde veio?

— O que quer aqui?

Colombo disse ser de paz, etc. Tão pacífico que não portava armas e andava só.

— Sou apenas um jangadeiro.

Os nativos da ilha terminaram encantados dele. E, para não o verem partir, destruíram a jangada.

Porém Colombo queria voltar à mulher, aos filhos e companheiros do mar. Aquela ilha não o encantava. Muito menos seus habitantes.

E, numa noite sem lua, meteu-se no mar e se pôs a nadar. Batia os braços com sofreguidão. Um dia chegaria ao Ceará.

No entanto, as braçadas do nadador fugitivo logo se transformaram em socos. E a vítima deles, coitada!, talvez sonhasse carícias.

Aos gritos, a mulher de Colombo acordou.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Estante de Livros (Diário de um pároco de aldeia, de Georges Bernanos)


Sinopse: 
Escrito em 1934 e publicado em 1936, este romance confessional traça o doloroso itinerário espiritual de um jovem sacerdote, pobre e doente, enviado para uma terriola habitada por uma sociedade pragmática, descrente de fé e de cristandade. Neste cenário começa a luta contra a penetração do mal com armas como a humildade, o sofrimento e a solidão.

A história, em tom confessional, descreve a vida de um jovem padre católico na paróquia de Ambricourt, no norte da França, quase divisa com a Bélgica. A vida do padre é marcada por um câncer no estômago e pela falta de fé da pequena população local.

Comentários: 
Uma grande obra é aquela que agrega conhecimentos sobre a realidade e aumento de consciência da condição humana. Diário de um pároco de aldeia faz isso com magistral propriedade. Mais que isso, ultrapassa esses propósitos e nos dá uma verdadeira demonstração de fé, cristianismo e santidade e uma aula verdadeiramente filosófica. É uma história comovente, muito bonita e maravilhosa, contada com grande maestria literária. Entretanto, não é um livro fácil de ler porque é um livro com sentido filosófico onde a personagem central está argumentando em torno de ideias e o leitor moderno não está mais acostumado com isso.

O nosso herói é um jovem padre, cujo nome nós não sabemos e que registra em seu diário a vida angustiante que leva numa paróquia de interior. A obra denuncia como o Cristianismo está sendo transformado em rotina no mundo moderno, simbolizada pelo padre na aldeia de Ambricourt. No fundo, a história retrata a morte simbólica do mundo.

O livro começa com o padre descrevendo como é a vida na sua paróquia. O tempo todo se tem a impressão de que o padre está lutando contra um caso perdido, como se àquele lugar não pudesse ser recuperado.

Minha paróquia é uma paróquia como todas as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Eu dizia ontem ao pároco de Norenfontes: o bem e o mal devem ficar em equilíbrio nelas, só que o centro da gravidade está lá embaixo, bem lá embaixo. Ou se preferir, os dois se sobrepõem nelas sem se misturar como dois líquidos de densidades diferentes. O padre riu na minha cara. Ele é um bom sacerdote, muito benevolente, muito paternal, e que no arcebispado passa até por incréu, um pouco perigoso. Suas tiradas fazem a alegria das casas paroquiais, e ele as reforça com um olhar que ele gostaria que fosse vivo, e que acho tão gasto e cansado que sinto vontade de chorar.

Minha paróquia é devorada pelo tédio, essa é a palavra certa. Como todas as outras paróquias. O tédio a devora diante de nossos olhos e não há nada que possamos fazer. Talvez um dia destes sejamos contagiados, e descubramos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.”

Há algo de errado na sociedade e que acaba influindo na vida do pároco. E como o padre é jovem, os problemas são maiores, as dúvidas são maiores, e os sonhos são grandes. O problema está no grande abismo que separa o pároco entre o que ele sonhou ser e o que a aldeia espera que ele seja, e o que ele consegue ser, na prática.

Ele é um pároco numa cidade de gente descrente, gente cínica, gente ferozmente pragmática. Ele não tem nenhum colega de profissão que o ajude de verdade, porque todos eles estão apenas tentando transformá-lo em um ser tão cínico quanto eles. Em última análise, ficou sozinho e completamente solitário nessa vida.

“Eu me dizia então que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente, é preciso refletir um pouco para se dar conta disso, não é uma coisa que se perceba imediatamente. É uma espécie de poeira. A pessoa vai e vem, sem a ver, respira essa poeira, come e bebe essa poeira, e ela é tão fina que nem faz barulho quando é mordida. Mas basta parar um momento e ela torna a cobrir o rosto e as mãos da pessoa. É preciso se agitar sem parar a fim de sacudir essa poeira de cinzas. Por isso mesmo, o mundo se agita muito.”

Este tédio que o padre descreve, é algo que não se percebe que acontece, uma espécie de poço invisível, um estado de coisas profundo e estabelecido, que não se consegue mexer. É como a poeira com a qual as pessoas se acostumam e com a qual não conseguem lidar. Este é mais ou menos o clima que se estabeleceu ali na paróquia do nosso herói.

O padre acha que a sua própria vida não tem mistério algum e o diário que ele se utiliza é um exercício para anotar as coisas que acontecem, com sinceridade que ele tem com ele mesmo.

SENTIDO DA OBRA:
1. A obra é um estudo sobre a santidade. O padre vai morrendo ao longo da história e há um sentido simbólico por trás disso.

2. O mote da obra é o confronto entre a conformidade e inconformidade.

3. O autor nos mostra o paradoxo entre espiritualismo e pragmatismo. O padre de Ambricourt simboliza o espiritualismo, enquanto o padre de Torcy e o senhor deão, seu superior, simbolizam o pragmatismo.

CONCLUSÃO:
A obra busca despertar a consciência de que o pragmatismo está sufocando o espírito do cristianismo.

Fonte:
Anatoli Oliynik. Anatoli: um blog cultural

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Tertúlia da Saudade 03: Milton S. Souza

 

Arthur de Azevedo (O chapéu)

O Ponciano, rapagão bonito,
Guarda-livros de muita habilidade,
Possuindo o invejável requisito
De uma caligrafia
A mais bela, talvez, que na cidade
E no comércio havia,
Empregou-se na casa importadora
De Praxedes, Couceiro & Companhia,
Casa de todo Maranhão credora,
Que, além de importadora, era importante,
E, se quebrasse um dia,
Muitas outras consigo arrastaria.

Do comércio figura dominante,
Praxedes, sócio principal da casa,
Tinha uma filha muito interessante.
O guarda-livros arrastava-lhe a asa.

Começara o romance, o romancete
Num dia em que fez anos
E os festejou Praxedes co'um banquete,
Num belo sítio do Caminho Grande,
Sob os frondosos galhos veteranos

Que secular mangueira inda hoje expande.
A mesa circular, sem cabeceira,
Rodeando o grosso tronco da mangueira,
Um belíssimo aspecto apresentava:
Reluzindo lá estava
O leitão infalível,
Com o seu sorriso irônico,
Expressivo, sardônico.
Sabeis de alguma coisa mais terrível
Do que o sorriso do leitão assado?
E nos olhos, coitado!
Lhe havia o cozinheiro colocado
Duas rodelas de limão, pilhéria
Que sempre faz sorrir a gente séria.
Dois soberbos perus de forno; tortas
De camarão, e um grande e majestoso
Camorim branco, peixe delicioso,
Que abre ao glutão do paraíso as portas;
Tainhas ouríchocas recheadas,
Magníficas pescadas,
E um presunto, um colosso,
Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso,
Tiras estreitas de papel dourado.

Compoteiras de doce, encomendado
A Calafate e a Papo Roto; frutas;
Vinho em garrafas brutas.
Amêndoas, nozes, queijos, o diabo.
Que se me meto a descrever aquilo,
Tão cedo não acabo!

O Ponciano fora convidado:
Quis o velho Praxedes distingui-lo.
Fazia gosto vê-lo
Convenientemente engravatado,
De calças brancas e chapéu de pelo,
E uma sobrecasaca
Que estivera fechada um ano inteiro
E espalhava em redor um vago cheiro
De cânfora e alfavaca.

Mal que o viu, Gabriela
(Gabriela a menina se chamava)
Lançou-lhe uma olhadela
Que a mais larga promessa lhe levava...
Como que os olhos dele e os olhos dela
Apenas esperavam
Encontrar-se; uma vez que se encontravam,
De modo tal os quatro se entendiam
Que, com tanto que ver, nada mais viam!

Apesar dos perigos,
Por ninguém o namoro foi notado.
Pois que o demônio as coisas sempre arranja.
Praxedes, ocupado,
Fazia sala aos ávidos amigos;
A mulher de Praxedes, nas cozinhas,
Inspecionava monstruosa canja
Onde flutuavam cinco ou seis galinhas
E um paio, um senhor paio,
E os convivas, olhando de soslaio
Para a mesa abundante e os seus tesouros
Não tinham atenção para namoros.
Quando todos à mesa se assentaram,
Ele e ela ficaram
Ao lado um do outro... por casualidade,
E durante três horas, pois três horas
Levou comendo toda aquela gente,
Entre as frases mais ternas e sonoras
Juraram pertencer-se mutuamente.
Quando na mesa havia só destroços,
Cascas, espinhas, ossos e caroços,
E o café fumegante
Circulou, - nesse instante,
Eram noivos Ponciano e Gabriela.

- Como, perguntou ela,
Nos poderemos escrever? Não vejo
Que o possamos fazer, e o meu desejo
É ter notícias tuas diariamente.
Respondeu ele: - Muito facilmente:
Quando a casa teu pai volta à noitinha
Traz consigo o Diário, por fortuna;
Escreverei com letra miudinha,
Na última coluna,
Alguma coisa que ninguém ler possa
Quando não esteja prevenido. - Bravo!
Que bela ideia e que ventura a nossa
Porém se esse conchavo
Serve para me dar notícias tuas,
Não te dará, meu bem, notícias minhas. -
Mas não esteve com uma nem com duas
O namorado, e disse:
- Temos um meio. - Qual? Não adivinhas?
Teu pai usa chapéu. . - Sim... que tolice! -
- Ouve o resto e verás que a ideia é boa;
Um pedacinho de papel à-toa
Tu meterás por baixo da carneira
Do chapéu de teu pai; dessa maneira
Me escreverás todos os dias... - úteis.
Oh!, precauções inúteis!
Durante um ano inteiro
O pai ludibriado
Serviu de inconsciente mensageiro
Aos amores da filha e do empregado.
- Até que um dia (tudo é transitório,
Até mesmo os chapéus) o negociante
Entrou de chapéu novo no escritório.

Ponciano ficou febricitante!
Como saber qual era o chapeleiro
Em cujas mãos ficara o chapéu velho?
Muito inquieto, o brejeiro
Ao espírito em vão pediu conselho;
Dispunha-se, matreiro,
A sair pelas ruas, indagando
De chapeleiro em chapeleiro, quando
O chapeleiro apareceu!... Trazia
O papelinho que encontrado havia!
Atinara com tudo o impertinente
E indignado dizia:
- Sou pai de filhas!... venho prontamente
Denunciar uma patifaria!
O hipócrita queria
Mas era, bem se vê, cair em graça
A um medalhão da praça.

O pai ficou furioso, e, francamente,
Não era o caso para menos; houve
Ralhos, ataques, maldições, etcetera;
Mas, enfim, felizmente
Ao céu bondoso aprouve
(O rapaz tinha tão bonita letra!)
Que não fosse a menina pro convento,
E a comédia acabasse em casamento.
Ponciano hoje é sócio
Do sogro, e faz negócio.
Deu-lhe uma filha o céu
Que é muito sua amiga
E está casa não casa;
Mas o ditoso pai não sai de casa
(Aquilo é balda antiga)
Sem revistar o forro do chapéu.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Artur de Azevedo. Contos em verso. Publicado originalmente em 1898.