quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Trova 227 - Nemésio Prata (Fortaleza/CE)


Dalton Trevisan (Cemitério de Elefantes)

“O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.”

Cemitério de Elefantes, de Dalton Trevisan, publicado em 1964, reúne contos do autor, onde coloca em destaque histórias que, de um lado, se passam no contexto rural, com personagens à margem do mundo moderno, refletindo um universo fundado em valores patriarcais, e, de outro, a temática urbana, representada em um de seus contos mais famosos - Uma Vela para Dario - que representa a degradação da morte em um ambiente urbano. Dario passa mal, morre e é roubado sem que ninguém o ajude. A multidão assiste durante horas a sua agonia, movida pela curiosidade, sem um traço de piedade. É um anônimo, assim como a multidão que o cerca.

Dalton Trevisan já se tornou uma figura mítica no círculo literário brasileiro. Ganhador de dois Prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, que dividiu com Bernardo Carvalho em 2003, não dá entrevistas, não comenta sua obra, não suporta a imprensa, não cede o número de telefone, não se deixa ser fotografado – as poucas imagens em circulação foram tiradas às escondidas, num flagra de seus passeios diários à livraria de um amigo. Tornou-se célebre a história de seu primeiro Jabuti, em 1960, por Novelas nada exemplares, que não foi receber. Sua famigerada obra, Vampiro de Curitiba, de 1965, rendeu-lhe o apelido do título, tal sua excentricidade e enclausuramento. É advogado, dono de uma fábrica de vidros, e um dos melhores contistas brasileiros da atualidade.

O estilo de Trevisan é inconfundível: conciso, simples, direto, sintético; não faz rodeios e diz (exatamente) o que tem de ser dito. Sua produção constitui-se principalmente de contos, mas escreveu romances (alguns do princípio da carreira, hoje renegados pelo autor, que não guarda deles um exemplar sequer, e o único publicado A polaquinha, de 1985) e nos últimos anos sua sinteticidade atingiu o ápice com o haicai, que compõe dois de seus livros. Sua obra já teve traduções para o inglês, espanhol, italiano, alemão, polonês e sueco. A temática é constituída de um intenso realismo urbano, tendo como cenário a cidade de Curitiba, cujos moradores são os protagonistas, em seus momentos mais alarmantes e, ao mesmo tempo, cotidianos. É o cotidiano universalizante, que poderia se passar (e se passa!) em qualquer outro lugar, o cotidiano das relações inter-pessoais, dos choques de temperamentos, dos casamentos mal-sucedidos, dos infernos particulares, do mundo carnívoro. A complexidade dos temas choca-se com a abordagem direta, e a sutileza fica por conta da escolha das palavras ou de uma imagem esclarecedora.

Em Cemitério de Elefantes não é diferente. Olhamos pela fechadura, ao invés de escutar através das paredes. Dalton coloca o leitor dentro da sala de estar de uma família curitibana (ou mais freqüentemente, dentro de seu quarto), e conta os segredos que ficam escondidos dos vizinhos. A cena por vezes se passa em quadros, e a briga de marido e mulher torna-se uma poça de sangue no chão da cozinha num mudar de linha. A esposa que vira prostituta, o morto abandonado na calçada, a casa indiferente a seus moradores moribundos, a mocinha que cai na armadilha indecente do velho, a filha no orfanato decadente, a briga de rua do marido ciumento, entre outras situações indesejavelmente comuns, são vistas de perto, perto demais, pelo leitor de Trevisan. É a desgraça da humanidade aproximada dos olhos, sem intermediários. A obra recebeu o segundo Prêmio Jabuti da carreira do autor, em 1965, e também o Prêmio Fernando Chinaglia.

Nesse mesmo livro, o conto - Cemitério de Elefantes - traz ao leitor um mundo de seres situados à margem do chamado "mundo oficial". Simbolizando a categoria marginal dos personagens, os bêbados vivem à beira do rio e são alimentados pelos pescadores. Um duplo sentido é estabelecido: bêbados e elefantes são a imagem viva do peso, da lentidão, da falta de jeito e, ao mesmo tempo, aceitam resignadamente um destino irrefutável.

Vejamos alguns contos da obra:

Uma vela para Dario

Conto narrado em terceira pessoa. É a estória de Dario, um cidadão comum que passa mal na rua e agoniza.

Vem por uma esquina e encosta-se numa parede. Alguns passantes perguntam se não está bem, mas Dario já não tem forças para responder, escorre pela parede e sua boca se enche de espuma.

Um rapaz o ajuda, desapertando suas roupas, seu cachimbo apaga e Dario rouqueia feio junto às bolhas de espuma que lhe surgem da boca.

As pessoas que passam se acercam da cena e um senhor gordo repete que Dario caíra e deixara cair seu guarda chuva e seu cachimbo, que já não mais estão ali.

Arrastam-no para um táxi, mas ninguém quer pagar a corrida. Cogita-se em chamar uma ambulância e Dario já não tem seus sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Dario continua à mercê daqueles que o cercam e alguém fala da farmácia, mas é no outro quarteirão e pelo seu peso, as pessoas desistem de levá-lo. É abandonado em frente a uma peixaria.

Aparece mais um que se prontifica a ajudá-lo sugerindo que lhe examinem os papéis. Ele é revistado e ficam sabendo quem ele é, mas ninguém resolve nada.

Chega a polícia e a cena é cercada de uma multidão de curiosos. Dario é pisoteado e o guarda não pode identificar o seu cadáver. Ainda lhe resta a aliança de ouro que Dario só conseguia tirar molhando com sabonete.

"A polícia decide chamar o rabecão". "A última boca repete — Ele morreu, ele morreu."

Há uma dispersão, quando as pessoas observam agora a um defunto. Um senhor piedoso aproxima-se e arruma o corpo da maneira que pode, ajeitando a cabeça sobre o paletó enrolado e cruzando as mãos sobre seu peito. A multidão termina por se espalhar e Dario, incógnito, agora só representa mais um cadáver, um indigente sem valor no meio da rua. A narrativa coloca as pessoas da cena como que indiferentes em sua rotina, diante do cadáver: "Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos."

Fecha-se a estória sem que a esperança de humanidade seja possível. Só o gesto de um menino salva a morbidade do desfecho. Dario é completamente saqueado e abandonado. "Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver". "Fecha-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra sem o paletó e o dedo sem aliança. O toco de vela apaga-se..."

Cemitério de Elefantes

Narrativa em terceira pessoa. Nos fala sobre um grupo de bêbados de Curitiba, que vivem à Meca do que a cidade os oferece. "Curitiba os considera animais sagrados, provê as suas necessidades de cachaça e pirão."
Eles vivem à margem do rio Belém, nos fundos de um mercado de peixes onde existe um velho ingazeiro. Aí onde vivem, os bêbados são felizes. Se contentam com as sobras, mas quando aperta a fome vão até o mangue para assar caranguejo e também se fartar dos frutos ingazeiro.

Os personagens são comparados a elefantes, o que dá um ar grotesco às suas formas e maneiras. "Elefantes Malferidos, coçam as perebas sem nenhuma queixa..."

Pedro, João, o Cai N’água, Jonas, Chico Papa-Isca; todos bêbados moribundos a procura de simplesmente sobreviver aos restos do mangue; cada qual com seu lugarzinho reservado. São todos uns dorminhocos e quando acordam ninguém se pergunta onde é que foi o amigo que está ausente. "E se indagassem para levar-lhe Margaridas do banhado, quem saberia responder?"

Vivem entregues ao curso das horas e às, intempéries do local precário onde se instalam. "...escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira". "A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes."

Quando cai um fruto de ingazeiro se despertam rolando no pó e o ganhador se farta de olhos plenos de satisfação. As disputas não geram brigas, quando muito discussões à distância. Neste "cemitério" não existe violência.

Assim os bêbados elefantes, vão vivendo, suportando suas doenças, e suas dificuldades. Não existe ninguém em especial, nenhum destaque de algum personagem.

No final a metáfora da narrativa deixa para o leitor a conclusão da saga dos bêbados elefantes.

"Cospe na água o caroço preto do ingá, os outros não a interrogam: presas de marfim que apontam o caminho são as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar."

Duas Rainhas

Narrado em terceira pessoa, é a estória de duas irmãs, pra lá de gordas, que vivem juntas e não conseguem parar de comer e engordar.

Augusta reclama de Rosa, "A Rosa é muito tirana" por ela ter desfeito os seus noivados. Mas o último dos três noivos conquista a Augusta e apesar da irmã opor-se instalaram-se na casa dos pais.

Glauco, proíbe Augusta de ir aos bailes e não deixa que ela o acompanhe até o portão. Ficam fechados o tempo todo dentro do quarto e Rosa reclama com sua mãe " — Já se viu (...) que pouca-vergonha?"

O marido quase não dorme, enquanto observa Augusta que ronca. Ela perde alguns quilos e Rosa engorda.

Saem para fazer compras e Rosa é confundida como se estivesse grávida.

Com isso, Glauco começa a beber.

"— Você tem vergonha de mim — choraminga Augusta."

"— Se ao menos evitasse bolinha no vestido."

Rosa tripudia pois não acreditava no casamento da irmã.

Glauco briga com a irmã, com o sogro e a sogra. As irmãs continuam sempre nas gulodices e anunciando o regime para o dia de amanhã. Têm sonhos com bichos, Augusta adora um elefante branco. Uma tarde explode o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram Rosa em prantos. Glauco investiu e derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

"— Minha rainha das pombinhas!"

Augusta só quer morrer e agora as duas ficam no quarto de casal e o marido no quarto de hóspedes. Bebe feito condenado enquanto as irmãs engordam mais. Reclamam da magreza de Glauco:

"Viu o Glauco? — Magro que dá pena (...)

— Não sei onde está com a cabeça.

— Gente magra é tão feia!"

"Contemplam-se orgulhosas..."

Acaba o conto as irmãs juntas, apoiando uma em cada janela da casa e prometendo que amanhã farão regime.

"— Amanhã dia de regime (...) — Que tal pedacinho de goiabada? (...)"

"Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os joelhos."

Trechos escolhidos de outros contos

"...Às festinhas de família, comparece o irmão Agenor, preferido do pai. José volta bêbado de madrugada. A mãe traz-lhe comida, ele se queixa, coçando a barba: O menino de ouro vem aí, Dão o carrão pra ele. O menino querido sai de carro. E o bichão aqui não tem nada. Depois sou eu que eu vivo à custa do Chiquinho.

- Respeite o pai, meu filho.

- Quem, o Chiquinho? Que se dê o respeito para as negas dele."

("O Caçula" - Cemitério de Elefantes)

"Bebeu no botequim: ali não havia homem. E cuspiu no soalho. Ai de quem protestou...Invadiu a casa do velho Felipe. Derrubou cadeira, bradava nome feio contra a sogra. Aos gritos pulava com a faca na mão. Discutiu como velho, tirou o paletó para brigar. Conseguiu Felipe que lhe entregasse a garrafa. Miguel estranhou a sogra e lhe passou uma rasteira, sentada no chão com as pernas de fora.

Felipe acudiu a velha, que gemia muito. Com a machadinha de picar lenha, Miguel desferiu três golpes que foram desviados . O sogro alcançou a garrafa e o derrubou com uma pancada na cabeça. Partiu-se o vidro e gritou o velho:

- Acertei uma boa...

Ergueram-se as duas mulheres. Era pequeno e magrinho, só quando bebia perigoso e muito ligeiro.

Amparado, Miguel caminhou até o quarto. Ainda se voltou para resmungar palavrões contra o sogro. Na cama balbuciou alguns nomes. Foi se arruinando ao ponto de perder a fala. De madrugada saiu-lhe na boca uma espuma branca. Pela manhã, conduzido ao hospital, morria sem conhecer a mulher que lhe sustentava a cabeça no colo. Quando o desceram da carroça ficou um pouco de sangue no vestido amarelo de Elira."

("Questão de Família" - Cemitério de Elefantes)

"O desgosto do velho Tobias é o filho: a medonha carinha vermelha de mongolóide.

- É tarado - desculpa-se e corrige - Doente de nascença.

- Um bicho em criança, andava de quatro, a língua de fora; aos pulos subia na árvore com a agilidade de mico. Amarrado com os cachorros no fundo do quintal. Escapando, arrastava a coleira pela rua - uma correria entre as crianças. Cabeça bem pequena, nariz purpurino, um guincho selvagem. Aos vinte anos, engolia as palavras - a língua uma ostra que não engolia.

- A omba oou...

- A pomba voou. Mais que as surras de correia do pai, domesticava-o a paciência amorosa de Dona Zica. No sábado apara-lhe as unhas e dá um cigarrinho para que aceite o barbeiro; inquieto na cadeira , três talhos no pescoço atarracado."

("Beto" - Cemitério de Elefantes)

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/c/cemiterio_de_elefantes
http://www.institutohypnos.org.br/?p=654

Lúcio Saretta (O Vendedor de Cocadas)

Lembro-me ainda do dia em que jurei a bandeira. Já faz bastante tempo, mas uma das figuras que, assim como eu, “escapou” do serviço militar ficou gravada na minha memória. Isso aconteceu provavelmente pelo fato do cara estar usando uma blusa branca com mangas cheias de franjas, tipo aquelas usadas pelos caubóis dos filmes de antigamente. A aparência estranha do rapaz completava-se nas feições do rosto. Os ossos do maxilar eram saltados e a sua dentadura de alguma forma teimava em escapar para fora da boca, como se fossem presas de um vampiro. Realmente, não era uma criatura bonita de se olhar.

Os anos foram passando e eu, vez por outra, avistava o sujeito pelas ruas da cidade, sempre do mesmo jeito, carregando pés-de-moleque em uma grande cesta de vime para vender. Sentia pena pela sua pobreza, pela sua triste condição de andarilho e falta de sorte melhor na vida. É bem verdade que eu, nas duas décadas que se passaram desde o momento em que solenemente (e um pouco apavorados) declaramos nosso compromisso de lutar pela pátria no caso de alguma emergência, não fiz nada de extraordinário, além de concluir uma faculdade e trabalhar em um ramo bem diferente daquele para o qual estudei durante quatro anos, sem obter fortuna nem um ótimo salário. Entretanto, a visão do vendedor de cocadas sempre foi algo chocante, uma lembrança viva e incômoda das desigualdades sociais que existem no mundo, da falta de oportunidades que se abate sobre uma porção de gente. Estranhos desígnios do destino... Por que ele teve que enfrentar essa infausta realidade enquanto eu, nascido em berço de ouro, tive uma juventude confortável?

Um dia, tomei coragem para abordar o meu ex-futuro-colega de farda. Seu ponto de descanso, estrategicamente escolhido entre as caminhadas com a pesada cesta embaixo do braço, é a pequena praça que fica na frente das garagens da prefeitura, ali na rua Visconde de Pelotas, em Caxias do Sul. Com seus bancos de cimento e a sombra farta das árvores, o local decerto rende alguma venda ao rapaz, tendo em vista o grande número de funcionários públicos que por ali passa. Como a praça faz parte do meu caminho para o trabalho, não tive problemas em alcançar meu intuito. O vendedor de cocadas mal conseguia falar, quando eu lhe perguntei o preço do pé-de-moleque levantou a ponta do indicador como quem diz “um real”. Talvez o rapaz estivesse embriagado, ou tivesse uma debilidade mental qualquer (não vamos esquecer que ele foi dispensado do quartel).

Enquanto me afastava dali, tendo adquirido um pé-de-moleque, comecei a pensar sobre aquela situação. De uma certa forma, mais uma vez eu me parecia com o cara. Senão, vejamos. Além do fato de termos jurado a bandeira juntos, dependemos da boa vontade de alguma alma generosa para vender nossas guloseimas. Os doces que eu faço são os livros, digamos assim. Como escritor, encontro uma avalanche de dificuldades para progredir. São os livreiros que te ignoram, editoras que não te dão resposta sobre originais enviados para análise, a mídia que se fecha. As próprias escolas, onde deveria reinar o intuito de ensinar, negam oportunidades para o escritor local mostrar o seu trabalho. Afinal, um dos anseios do escritor é cativar os mais jovens, cumprindo seu papel de cidadão e ajudando na criação de uma sociedade melhor. Se houvesse estímulo e caminhos para incentivar a leitura e, consequentemente, a educação, talvez não houvesse a pobreza que produz vendedores de cocada e tantos outros sub-empregos.

A verdade é que são muitas portas fechadas para quem começa (embora no meu caso já com três títulos na praça) e poucas portas abertas. A torre de marfim do bom-gosto cultural e as engrenagens do “show business” literário vão te colocar numa espécie de limbo, do lado de fora da festa, olhando para dentro sem poder entrar. E assim vamos vivendo, ganhando merrecas de amigos, parentes e conhecidos que solidários compram nossos livros. É claro que a estrada é árdua e longa, o ramo da literatura é como qualquer outro, o trabalho tenaz vale mais do que o talento puro e simples.

O artista que se preza, contudo, deve perseverar com seus projetos, valorizando sua própria identidade criativa, sem desistir nunca. Nem que seja vendendo as obras no afã das ruas, dentro de uma mochila, ao modo de um doceiro mambembe, com sua cesta cheia de cocadas e ilusões.
Fonte:
Artistas Gaúchos.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 667)


Uma Trova de Ademar  

Com minha alma amargurada,
envolto em meu sofrimento,
passo inteira a madrugada
jogando versos ao vento...

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Pela seca, esmorecido,
abandono o meu rincão.
No meu rosto entristecido
há mais água que no chão.

–Vanda Alves/PR–

Uma Trova Potiguar


Pensei que estavas brincando
no momento em que partiste,
e só acreditei quando
notei o mundo mais triste!

–José Lucas de Barros/RN–

Uma Trova Premiada


2007 - Ribeirão Preto/SP
Tema - LIVRO - 3º Lugar


Faça do livro, criança,
a rota dos sonhadores.
O livro é o barco que alcança
o porto dos vencedores.

–Rita Mourão/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


As praias, que são tão belas
quando o sol as incendeia,
transformam-se em passarelas
feitas de espumas e areia.

–Orlando Brito/MA–

U m a P o e s i a


Olho a tela do tempo e me torturo
vejo o filme do meu inconsciente,
meu passado maior que o meu presente
meu presente menor que o meu futuro;
se a velhice é doença eu não me curo
que os três males que ataca um ancião
são carência, desprezo e solidão,
e é difícil escapar dessa trindade;
se eu pudesse comprava a mocidade
nem que fosse pagando a prestação.

–Geraldo Amâncio/CE–

Soneto do Dia

MEU SONETEAR.
–Dedé Monteiro/PB–


Não soneteio tão bem como dizes
mas quando o faço, quando soneteio
faço-o ansioso por deixar felizes
almas que sonham sem qualquer receio.

Faço-o seguindo as mesmas diretrizes
de alguém que pisa num plantio alheio
cheio de brotos, cheio de raízes
e um espantalho a vigiar no meio.

Esse plantio são os dois quartetos
que, atravessados, juntam-se aos tercetos,
campo minado não cruzado ainda.

Se cruzo intacto, sem que nada exploda,
minha alegria se esparrama toda
e eu mesmo aplaudo a minha peça finda.

Ármuco Frondosa – Árvore Multicultural Comemorativa (21 de Setembro, em Formiga/MG)

No próximo dia 21 de Setembro – DIA DA ÁRVORE será realizada a “ÁRVORE DO LIVRO” – “um momento literário voltado para o mundo mágico da leitura”.

Acontecerá na Praça da Matriz São Vicente Férrer de oito da manhã às dezessete horas da tarde.

O evento é realizado pela Prefeitura por meio de sua Secretaria de Educação e Bibliotecas Públicas de Formiga.

A convite e em homenagem a este dia especial, estarão participando deste evento a “ÁRMUCO FRONDOSA – Árvore Multicultural Comemorativa” – um estande especialmente montado pelas entidades ACADEMIA FORMIGUENSE DE LETRAS – AFL, CLUBE LITERÁRIO MARCONI MONTOLI – CLMM e o CLUBE FORMIGUENSE DE FILATELIA, NUMISMÁTICA E TELECARTOFILIA – FORFINUTE.

Neste espaço e oportunidade o público presente poderá conhecer um pouco do trabalho destas entidades e ao mesmo tempo deliciar-se à sombra de suas folhas, deleitar-se pela beleza de suas flores e degustar o sabor de seus frutos.

Estarão expostos livros, revistas, documentos históricos, troféus, selos, moedas, cartões, dentre outros.

Brinde-nos com sua honrosa visita! Saiba como participar desta árvore frutífera! Contamos com você!
(AFL, CLMM, FORFINUTE).

- Àrmuco frondosa será uma árvore nativa da cidade de Formiga de onde esperamos colher muitos frutos.

Att.,
Paulo José - Pajo
Paulo José de Oliveira
Academia Formiguense de Letras - AFL
Clube Literário Marconi Montoli - CLMM
Clube Formiguense de Filatelia, Numismática e Telecartofilia - FOFINUTE

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 666)

Uma Trova de Ademar  

Sozinho nas madrugadas,
em noites de solidão,
ouço as notas magoadas
das cordas de um violão.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Cansados de tanta guerra
e tão distantes da luz,
os olhos tristes da terra
busquem Seu olhar, Jesus!
–Elen de Novais Felix/RJ–

Uma Trova Potiguar


A trova que sintetiza
em seus versos a poesia,
é fonte que se eterniza,
jorrando sabedoria!
–Pedro Grilo/RN–

Uma Trova Premiada

2002 - Campos de Goytacazes/RJ
Tema - LIVRO - 9º Lugar


Quem põe livros nas sacolas
de crianças das favelas,
mostra o rumo das escolas
a quem mais precisa delas.
–Adilson Maia/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


Tem a vida seus segredos.
Deu-me trabalho de um jeito!...
Não tive calos nos dedos
mas quantos... dentro do peito!
–Lucy Sother Rocha/MG–

U m a P o e s i a


Tire a tampa da garrafa
garrafa, tampa aguardente
marrafa, cabelo e pente
pente, cabelo e marrafa
é jequí, peixe e tarrafa
tarrafa, peixe e jequí
cajá, caju, cajuí
cajuí, caju, cajá
aqui, ali, acolá
acolá, aqui, ali.
–Pinto do Monteiro/PB–

Soneto do Dia

SENTIMENTOS.
–Prof. Garcia/RN–


Quando o dia se apressa e vai embora,
num silêncio que fere e que angustia,
a tristeza me invade e me devora,
nas horas sepulcrais, do fim do dia.

Como quem diz adeus e triste chora,
vai-se o sol delirando de agonia,
e a cortina da noite, Deus decora,
com luz tênue, de vã melancolia.

Distante, bem distante, muito além,
a tristeza me acena, como quem
se despede de alguém, que já morreu,

foi apenas a luz de um dia lindo,
que cansada, acenou quase dormindo
e nos braços da noite adormeceu!

 Imagem enviada  pelo Facebook da Libreria Fogolla Pisa

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Pombal Maria (Poemas)

TELEFONEMA DAS ESTRELAS

uma árvore telefonou
para as águas da minha faminta poesia
os ramos falaram do círculo d'água
de uma gota de orvalho onde vivem elefantes

uma árvore telefonou
para o rio da minha mal/ aventurada poesia
 as paredes ouviram o cicio
do mar que se escondia na linha do vento lavrado

os espelhos viram os peixes famintos
das águas da minha enferma poesia
i o vidro do dia tossia no nariz das colmeias
aue ferem as vitrinas do céu rasteiro

era o véu visceral da copa
das árvores que constroem verbos estranhos
na janela da minha cega poesia
era o voo suicida das andorinhas sem asas

SONHO FERIDO

 trago as asas
da ave do sonho ferido

arrastando-se
a noite pelo coração do silêncio

onde caem
palavras engripadas/frescas
ceifadas

pêlos lenhadores da ave
do sonho ferido

PALAVRAS ENGRIPADAS

pinto
as janelas da noite
com palavras constipadas
que vou tossindo

no Cancro do dia
cimento
que pisa i alisa

as minhas raízes em todo subsolo aéreo

Fonte:
Pombal Maria. Asas do Sonho Ferido. (Poemas). Luanda, Angola: União dos Escritores Angolanos, s.d.

Marina Colasanti (A Moça Tecelã)

Ilustração de Ana Peluso
 Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

 Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos  do algodão  mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.  Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Fonte:
Marina Colsasanti. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. RJ: Global Editora , 2000.

Ignácio de Loyola Brandão (A Sala dos Livros Mortos)

No seu primeiro dia como funcionária daquela biblioteca pública, Ana Lygia foi levada pela diretora para conhecer o prédio. Subiram e desceram escadas, o elevador há muito tinha sido desativado por falta de verba de manutenção, por sorte eram apenas três andares, mais o porão. Secretaria, diretoria e salas e salas repletas de livros em estantes de metal, uma pequena sala de convívio, uma saleta para os jornais. Existia até uma quantidade razoável de volumes, ainda que o acervo estivesse desatualizado em relação à atual literatura brasileira. Quanto à mundial, a atualização era sentida pelos best-sellers, por aqueles que tinham sido os mais vendidos nas revistas semanais. Finalmente, desceram ao porão, havia montes de caixas com doações de livros ainda em fase de estudos, o que valia e o que não valia a pena, porque os doadores em geral entregam à biblioteca o que não querem em casa e o que ninguém quer e não presta para nada. Duas saletas com material de limpeza e uma sala com porta de ferro, trancada.

- E aqui?

- Ninguém entra. É a sala dos mortos.

- Mortos?

- Sim, a sala dos livros retirados de circulação.

- Retiram? E qual o critério?

- Se em cinco anos ninguém retirou o livro, ele é descartado do mundo dos livros vivos.

- E ficam aqui? Quanto tempo?

- Para sempre.

- Não podem ser doados a outras bibliotecas, ao público? Avisam: quem quiser livros venha buscar? Assim talvez continuem vivos!

- A lei não permite. É um bem público. Pertence ao patrimônio. É a situação mais complicada que existe, porque a burocracia impede essa doação, é preciso montar um processo jurídico e, como todo processo jurídico, se eterniza. Nem vale a pena, o melhor é esquecer.

- Posso ver a sala?

- Melhor não entrar. Aliás, tem um problema, a chave foi perdida, para mandar fazer outra monta-se um processo administrativo.

- Talvez tenha livros interessantes que eu queira ler.

- Não adianta, a lei diz que devemos inutilizar. Quando o livro vem para cá, tem uma determinada página arrancada, ou duas, uma do começo, outra do final.

Leitora desde a infância, Ana Lygia lembrou-se do Barba-Azul e do famoso cômodo no qual suas esposas não podiam entrar e quando entravam eram assassinadas. Sua curiosidade aumentou. Ela começou a trabalhar e meses mais tarde foi designada para um plantão de domingo, uma experiência nova. Aconteceu de ser dia chuvoso e ninguém foi à biblioteca. Ana Lygia lembrou-se da sala dos mortos, desceu, experimentou, trancada. Subiu, perguntou a uma auxiliar se sabia onde estava a chave, ela apontou para uma gaveta, disse que ali havia umas cem chaves, talvez fosse uma delas. Ana Lygia colocou-as em uma caixa e desceu. Começou a experimentar uma a uma.

Algumas ela descartou pelo tamanho, outras entravam, não giravam, ela não forçava, com medo de quebrar. Exercício de paciência. Também, ela não tinha nada a fazer. Finalmente, a chave 83 funcionou. Veio de dentro um cheiro abafado de mofo e umidade, ela abriu totalmente a porta, esperou. Procurou o interruptor e uma luz amarelada inundou o cômodo de fantasmas. Havia pilhas de livros amontoados até o teto. E, em volta, junto à parede, uma coleção de extintores de incêndio. Contou 35, cada um de um modelo, percebeu que alguns eram velhos, outros pré-históricos. Poderiam ser alinhados em um museu, ali estava a evolução dos extintores, os mais antigos enormes, desajeitados, para manobrar aquilo seriam necessárias duas pessoas.

Havia ainda relógios de ponto, alguns estapafúrdios, palavra que ela associou à idade do equipamento. Também fariam o encanto do velho Dimas de Melo Pimenta, um ícone da relojoaria nesta cidade. Ela experimentou mexer nas alavancas, umas travadas pela ferrugem, outras funcionaram com um ruído seco. Quantos teriam sido pontuais, quantos o relógio teria punido? Gostava de imaginar coisas assim, afinal, havia um quê de ficcionista dentro dela, daí sua paixão pelos livros e por ter escolhido a profissão. Ana Lygia percorreu aquele porão empoeirado contemplando escovas, vassouras, rodos, baldes furados, panos de chão podres, latas de cera, tubos de desinfetantes, detergentes, latas com pedacinhos de sabão, escovões. Nossa, há quantas décadas o escovão desapareceu da cena doméstica, quem ainda encera a casa? Tudo que devia ser descartado, porém era impossível, tratava-se de patrimônio.

Afinal, dedicou-se aos livros. Estendeu a mão, curiosa, puxou um. A Menina Morta, de Cornélio Penna. Puxa, esqueceram o Cornélio? Ninguém o leu por cinco anos? Foi folheando, livro grosso, talvez isso tenha assustado. Lendo. De repente percebeu a página arrancada. Apanhou outro livro, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. E José de Alencar, Lúcio Cardoso, Ibiapaba Martins, Osman Lins, Mário Donato (puxa, fez tanto sucesso nos anos 50), José Geraldo Vieira, John dos Passos, Romain Gary, Malcolm Lowry, Oscar Wilde, Maria Alice Barroso. Todos mutilados. Apanhou um deles, escondeu debaixo da blusa. Levou para casa. Na biblioteca de um amigo encontrou um exemplar completo, digitou a página faltante, colou dentro do volume doente. A cada semana, leva um embora, recupera. Ela imagina que em alguns anos terá recuperado todos. Leva para bibliotecas comunitárias, existem várias. A simples idéia de ver um livro reciclado, ou queimado, a deixa doente. Mais fácil comprar outro? Sim. Mas e o prazer de salvar um livro?

Fonte:
O Estado de São Paulo Caderno 2. 4 de julho de 2008
Imagem obtida em www.zazzle.com, autoria de Koalakola

Esi Edugyan ( Um Blues Mestiço)

Páginas: 336
Editor: Porto Editora

Paris, 1940. Em plena ocupação alemã, Hieronymous Falk, um jovem e brilhante trompetista de jazz, é detido num café, desaparecendo completamente de circulação. Tinha apenas vinte anos, era cidadão alemão e... negro.

Cinquenta anos depois, Sid, antigo companheiro de banda e única testemunha desse fatídicoacontecimento, ainda se recusa a falar do assunto. No entanto, quando Chip, outro ex-companheiro, lhe mostra uma misteriosa carta que recebeu de Hieronymous, vivo e de boa saúde, Sid enceta uma dolorosa viagem ao passado. Da agitação dos bares clandestinos da Berlim do início da Segunda Guerra aos salões de Paris, irá reviver a paixão pela música, a camaradagem e a luta diária de então, mas também as invejas, as traições em nome da arte e o sentimento de culpa¿

Um romance extraordinário sobre o mundo do jazz, mas também sobre os limites da amizade, o racismo e a fragilidade dos que vivem à margem.

Críticas de imprensa
«Um murro no estômago… uma escrita perfeita, personagens credíveis e um retrato de época bastante convincente.»
>The Guardian

«Uma história arrebatadora sobre lealdade e traição…»
The Times

«Assertivo, intenso e cativante… Uma evocação notável de uma época e dos seus lugares.»
Time Out (Londres)

«Hipnotizante… Edugyan tem um dom especial para os diálogos e para retratar as complexidades do ser humano e os seus sentimentos… amor, inveja… um romance extraordinário.»
Morning Star

«Um romance brilhante e original… carregado de tensão e humor.»
Independent on Sunday

«Extraordinário no retrato de época, no jargão dos músicos de jazz e nas típicas piadas masculinas.»
Independent

Fonte:
Porto Editora

Esi Edugyan

(tradução do inglês para o português, da wikipedia, por José Feldman)

Esi Edugyan é uma novelista canadense. Nascida e crescida em Calgary, Alberta, filha de pais ganenses. Ela estudou escrita criativa na Universidade de Victoria e Johns Hopkins University antes de publicar o romance de estréia dela, A Segunda Vida de Samuel Tyne, em 2004. 

Apesar de comentários  favoráveis para o primeiro romance, Edugyan teve dificuldade em conseguir um editor para publicação de seu segundo livro de ficção. Ela gastou algum tempo como uma escritora em treinamento em Stuttgart, Alemanha, o que a inspirou a escrever outra novela, Half-Blood Blues, sobre um músico de jazz de raças misturadas na época da II Grande Guerra, na Europa que é seqüestrado pelo Nazis como um " Rhineland Bastard ". 
 
Publicada em 2011, Half-Blood Blues foi anunciado como um dos indicados para o prêmio Man Booker Prize do ano, Prêmio Scotiabank Giller Rogers e o Prêmio de Governador Geral para ficção de idioma inglesa. Ela era uma das escritoras canadenses, ao lado de Patrick deWitt, a fazere parte de todas as listas dos 4 premios, em 2011. No dia 8 de novembro de 2011 ela ganhou o Giller Prize por Half-Blood Blues,. Novamente ao lado de deWitt, Half-Blood Blues, estava também na lista dos indicados para o 2012 Walter Scott Prize para ficção histórica. Em abril de 2012, foi anunciado que Edugyan tinha obtido um Anisfield-Wolf Book Award por Half-Blood Blues,. 
 
Edugyan vive em Victoria, Columbia Britânica, e se casou com o novelista e poeta Steven Price.

Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/Esi_Edugyan

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 665)


Uma Trova de Ademar 

Quando a sonhar eu me ponho,
vejo de forma extremada,
que das ilusões do sonho
não restou-me quase nada!

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Em meus vagares tristonhos,
um repouso, em vão, procuro,
e a caravela dos sonhos
não acha um porto seguro!…

–Carolina Ramos/SP–

Uma Trova Potiguar


Sereno é quem, sem temores,
faz de sua caminhada,
um jardim cheio de flores
entre os espinhos da estrada!

–Mara Melinni/RN–

Uma Trova Premiada

1996 - Belém do Pará/PA
Tema - FOGO - M/H 


No sofrer que vai e volta,
vive em paz! Confia em Deus,
quando o fogo da revolta
sepultar os sonhos teus...

–José Valdez de C. Moura/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


Ontem quando a lua veio,
tão cheia, por trás do monte,
parecia um lindo seio
no decote do horizonte.

–Josué Tabira/RN–

U m a P o e s i a


Na proeza dos seus dedos
o poeta, inspirador,
monta cenários distintos
no horizonte encantador,
revelando seus mistérios
na plenitude do amor!

–Eva Garcia/RN–

Soneto do Dia

SOLENEMENTE.
–Hermes Fontes/SE–


Juro por tudo quanto é jura...Juro,
Por mim, por ti, por nós...por Jesus Cristo,
Que hei de esquecer-te! Vê-me ...Estou seguro
Contra teu sólio cuja dor assisto.

E visto que dúvidas tanto...visto
Que ris do que é solene, te asseguro,
Juro mais: pelo ser em que consisto!
Por meu passado! Pelo teu futuro!

Juro pela Mãe Virgem Concebida!
Pelas venturas de que vou ao encalço!
Por minha vida...Pela tua vida!

Juro por tudo que mais amo e exalço:
E depois de uma jura tão comprida
Juro...Juro qu'estou jurando falso!...

Ignácio de Loyola Brandão (O Homem do Furo na Mão e Outras Histórias)

Além de O Homem do Furo na Mão, que narra o isolamento do indivíduo devido ao preconceito, Loyola aborda em O homem que resolveu contar apenas mentiras, a hipocrisia social; em O homem que devia entregar a carta, o abuso de autoridade e a submissão sem questionamento; em Os homens que não receberam visitas, narra os limites entre loucura e normalidade; em O Presidente da China, o desejo do poder; em A Descoberta da Escrita, a luta pela liberdade de expressão; em Pega ele, silêncio, o desejo por ascensão social; e em O homem que procurava a máquina, a obstinação pela verdade.

Antologia

O conto que dá título à coletânea, a presença de um furo indolor na mão do personagem acaba por marginalizá-lo dentro de seu próprio universo, o que demonstra o papel repressivo e massificante de uma sociedade que rejeita a singularidade do indivíduo.

Há doze anos tomavam café juntos e ela o acompanhava até a porta.

- Você está com um fio de cabelo branco, ou tinge ou tira.

Ele sorriu, apanhou a maleta e saiu para tomar o ônibus, faltavam doze para as oito, em três minutos estaria no ponto. O barbeiro estava abrindo, a vizinha lavava a calçada, o médico tirava o carro da garagem, o caminhão descarregava cervejas e refrigerantes no bar.

Estava no horário, podia caminhar tranqüilo. Na mão, descobriu uma leve mancha avermelhada de uns dois centímetros de diâmetro. Quando o ônibus chegou, a mão coçou de novo.

Agora ardia um pouco e ele teve a impressão de que no lugar da mancha havia uma leve depressão. Como se tivesse apertado uma bolinha muito tempo, com a mão fechada.

Ao chegar no escritório, naquele dia, ficou a disfarçar a mão entre os papéis da sua mesa, pois não queria que os amigos vissem o furo de sua mão. À noite, ao chegar em casa e mostrar o furo para a esposa, esta sugeriu um band - aid, e o homem rejeitou a sugestão, pois já começava a se afeiçoar àquele furo. No outro dia, a esposa o abandona por não poder viver com você enquanto esse buraco existir. Durante o expediente se comunicou com o sogro e este nada sabia de sua filha. No final do serviço, perambulou pelos lugares onde pudesse encontrá-la, sem sucesso. A empregada também resolve deixar a casa e o homem começa a se aperceber da marginalização que passa a sofrer por causa de sua diferença, o furo na mão.

No ônibus não embarca, foi demitido do emprego, nem sequer lhe era permitido sentar no banco da praça.

- O senhor quer sair deste banco?

Era um homem de farda abóbora, distintivo no peito: fiscalização de parques e jardins.

- O que tem este banco?

- Não pode sentar nele.

Ele mudou para o banco ao lado, o homem seguiu atrás.

- Nem neste.

- Em qual então?

- Em nenhum.

- Olhe quanta gente sentada.

- Eles não têm buraco na mão.

- Daqui não saio.

O homem enfiou a mão embaixo da túnica, tirou um cacete, deu uma pancada na cabeça dele. As pessoas se aproximaram, enquanto ele cambaleava.

(...) - Saia, saia, gritavam as pessoas em volta.

Por fim, perdeu tudo e todos, indo morar com uns mendigos embaixo da ponte, que também tinham furos nas mãos.


Personagens

Esposa, barbeiro, vizinha, médico, homem de farda, homem com o furo.

Fonte:
Literatura Brasileira

Agatha Christie (O Crime da Fita Métrica)

Politt segurou a argola da porta e bateu levemente. Após alguns segundos, tornou a bater. O embrulho que trazia no braço esquerdo ameaçou cair, e ela voltou a arrumá-lo. Este continha o vestido verde da Sra. Spenlow, que ela havia acabado de aprontar. Na mão esquerda, Politt carregava uma sacola de seda preta com uma fita métrica, uma almofada de alfinetes e uma tesoura.

Politt era alta e esquálida; possuía nariz e lábios finos, cabelos ralos e acobreados. Ela hesitou um pouco antes de bater pela terceira vez. Lançou os olhos pela rua e viu alguém que se aproximava a passos largos. Era a Srta. Hartnell — vinte e cinco anos, alegre, um tanto envelhecida — que cumprimentou-a com sua voz de contralto:

— Boa tarde, Politt!

— Boa tarde, Srta. Hartnell — respondeu a costureira. Sua voz era excessivamente fina, e o sotaque um pouco afetado. Seu primeiro trabalho tinha sido como dama-de-companhia de uma senhora.

— Por favor — continuou Politt —, sabe dizer se a Sra. Spenlow está em casa?

— Não faço a menor idéia — retrucou a Srta. Hartnell.

— Não sei o que fazer. Combinamos que hoje, às três e meia, ela experimentaria o vestido novo — disse Politt. A Srta. Hartnell consultou o relógio:

— Já passa um pouco das três e meia.

— É. Eu já bati três vezes, mas ninguém atendeu. Acho que a Sra. Spenlow precisou sair e esqueceu o combinado. É estranho, porque ela não tem o hábito de esquecer seus compromissos e ainda mais que ela precisa do vestido para depois de amanhã.

A Srta. Hartnell abriu o portão e aproximou-se de Politt.

— Por que será que Gladys não abre a porta? — perguntou. — Ah, já sei! Hoje é quinta-feira e ela está de folga. Provavelmente a Sra. Spenlow está dormindo. Creio que você não bateu o suficiente.

Dizendo isso, agarrou a argola e bateu violentamente na porta. Não satisfeita, bateu também com toda força nas almofadas da porta e gritou:

— O de casa! Há alguém aí? Não houve resposta.

Politt murmurou: — Acho mesmo que ela esqueceu e saiu. Eu volto outra hora. — E dirigiu-se para a saída.

— Tolice! — disse a Srta. Hartnell com firmeza. — Ela não pode ter saído. Encontrei-me com ela ainda há pouco. Vou olhar pela janela, e ver se ela dá algum sinal de vida.

Ela soltou uma risada para indicar que era brincadeira, e olhou, sem muito interesse, pela veneziana da janela mais próxima. -Digo sem muito interesse porque ela sabia que a sala da frente raramente era usada. O casal preferia a saleta dos fundos. Mesmo desinteressado, o olhar da Srta. Hartnell encontrou o que procurada. De fato, a Sra. Spenlow não deu sinal de vida, mas de morte, caída sobre o tapete ao lado da lareira.

— Sem dúvida — disse a Srta. Hartnell ao relatar o que se passara. — Eu tive que me controlar. Politt não saberia o que fazer. Disse-lhe que precisávamos manter a calma: ela ficaria lá e eu iria falar com o Investigador Palk. Ela disse que não queria ficar sozinha, mas não dei atenção. Era preciso ser firme com ela. Sempre achei que esse tipo de pessoa gostava de criar problemas. Assim eu já estava de saída quando o Sr. Spenlow surgiu de um dos lados da casa.

Neste ponto, a Srta. Hartnell fez uma pausa significativa que levou as pessoas que a ouviam a perguntar: — Como estava ele? A Srta. Hartnell prosseguiu:

— Sinceramente, eu suspeitei dele imediatamente. Estava calmo demais. Não parecia nem um pouco surpreso, e não creio que seja natural um homem saber que a esposa está morta e não demonstrar o menor sinal de emoção.

Todos concordaram.

A polícia também concordou. Tão desconfiados estavam do alheamento do Sr. Spenlow que nem perderam tempo em verificar em que situação ele ficara com a morte da mulher. Quando descobriram que ela era rica e que com sua morte o marido seria o único herdeiro, de acordo com um testamento feito pouco depois do casamento, as suspeitas aumentaram ainda mais.

Miss Marple, a doce — e, alguns diziam, um tanto maldizente velhinha que morava ao lado da igreja, foi chamada a depor cerca de meia hora após a descoberta do crime. Foi interrogada pelo Investigador Palk, que folheava um livro com ar de importante.

Se não se importa, senhora, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

— A respeito da morte da Sra. Spenlow? — disse Miss Marple. Palk ficou surpreso. — Desculpe, senhora, mas como soube disso?

— Um passarinho me contou... — disse Miss Marple.

Palk compreendeu logo a resposta. Provavelmente o filho do dono da pensão ter-lhe-ia contado, quando foi levar-lhe o jantar. Miss Marple prosseguiu calmamente:

— Deitada no chão da sala de estar, estrangulada — talvez com um cinto bastante estreito. Mas, com o que quer que tenha sido, já não estava lá.

Palk estava intrigado... Como é que o pequeno Fred sabe disso?...

Miss Marple interrompeu o investigador:

— Há um alfinete no seu paletó.

Palk não esperava o comentário, mas não perdeu a calma.

— Como diz o velho ditado, encontre um alfinete em sua roupa, retire-o e terá sorte o resto do dia.

— Espero que seja verdade. Mas... o que deseja saber? Palk pigarreou, esticou os ombros e consultou seu livro:

— De acordo com o que ouvi do Sr. Spenlow, marido da finada, às duas e meia ele atendeu a um telefonema de Miss Marple, que lhe perguntou se ele poderia ir até sua casa por volta das três e quinze, porque ela precisava muito falar com ele. Isto é verdade?

— Evidente que não! — disse Miss Marple.

— A senhora não telefonou para o Sr. Spenlow às duas e meia?

— Nem às duas e meia e nem em qualquer outra hora.

— Ah! — fez o investigador, passando a mão pelo bigode com grande satisfação.

— Que mais disse o Sr. Spenlow?

— Disse que veio até aqui, como lhe fora solicitado, tendo deixado sua casa às três e dez. Chegando aqui, foi informado pela criada de que Miss Marple não se encontrava em casa.

— Isso é verdade — disse Miss Marple. — Ele esteve aqui, mas eu estava numa reunião da Sociedade Feminina.

— Ah! — fez novamente o investigador.

— Diga-me, Sr. Palk: suspeita do Sr. Spenlow?

— Ainda é cedo para dizer, mas... é como se alguém, sem querer citar nomes, tivesse sido... bastante engenhoso.

Miss Marple disse quase que para si mesma:

— O Sr. Spenlow?

Ela gostava do Sr. Spenlow. Ele era baixo, magro, rígido e convencional — o máximo em respeitabilidade. Era estranho que ele tivesse vindo morar no interior, pois vivera a maior parte da sua vida na cidade. A Miss Marple ele contou por quê:

— Sempre pretendi, desde criança, ir viver no campo um dia, e cultivar um jardim. Sempre adorei flores. Minha esposa tinha uma floricultura. Foi lá que a conheci.

Esta frase, aparentemente seca, deixava entrever todo um romance. A Sra. Spenlow, jovem e bonita, rodeada de flores.

O Sr. Spenlow, entretanto, nada sabia a respeito de flores. Não entendia de sementes, de podas, de canteiros, de temporadas. Vislumbrava apenas a imagem de um jardinzinho em uma pequena casa de campo, repleto de flores perfumadas e coloridas. Havia pedido a Miss Marple algumas informações, e anotado todas elas cuidadosamente em um caderninho.

Era um homem metódico. Talvez por causa disso a polícia tenha se interessado tanto por ele quando sua esposa foi encontrada morta. Com paciência e perseverança, os homens da lei aprenderam muito a respeito da Sra. Spenlow — e logo toda a cidade de St. Mary Mead também.

A Sra. Spenlow começou a vida como criada em uma mansão. Deixou o emprego para casar-se com o jardineiro, e com ele montar uma floricultura em Londres. O negócio prosperou, mas o jardineiro, que há muito andava doente, morreu pouco depois. A viúva deu continuidade ao negócio, aumentou-o e fê-lo prosperar. Depois, vendeu-o por um bom preço e casou-se pela segunda vez — com o Sr. Spenlow, um joalheiro de meia-idade, que havia herdado uma pequena loja que não dava lucros. Algum tempo depois, venderam a joalheria e foram morar em St. Mary Mead.

A Sra. Spenlow tinha uma boa situação. Os lucros provenientes da venda da floricultura tinham sido investidos, sob orientação espiritual, como ela fazia questão de explicar. Os espíritos tinham-na aconselhado com surpreendente sagacidade. Todos os seus investimentos prosperaram, alguns de forma inesperada. Ao invés desse fato aumentar a sua crença no espiritualismo, o casal Spenlow praticamente abandonou os médiuns para envolver-se completamente com uma seita de inspiração hindu. Entretanto, quando a Sra. Spenlow chegou a St. Mary Mead, voltou-se por um certo tempo para a igreja ortodoxa inglesa. Estava sempre na paróquia, e ia aos cultos regularmente. Patrocinava obras sociais da cidade, interessava-se pelos acontecimentos do local e jogava bridge. Levava uma vida rotineira. E, de repente, foi assassinada.

Coronel Melchett, o delgado, chamou o Inspetor Slack. Slack um homem firme. Uma vez tendo formado uma opinião, tinha realmente certeza do que dizia; e desta vez já tinha vaticinado:

— Foi o marido!

— Você acha mesmo?

— Acho. Basta olhar para ele. Culpado dos pés à cabeça. Nunca demonstrou o menor sinal de pesar ou emoção. Voltou à casa sabendo que ela estava morta.

— Não acha que ele poderia ter representado o papel de marido desesperado?

— Ele não faria isso. Está muito contente. Há pessoas que não sabem fingir. São insensíveis demais.

— Havia alguma outra mulher em sua vida? — perguntou o Coronel Melchett.

— Não descobri nada a respeito. Ele é esperto. Evidentemente deve ter encoberto suas pistas. Acho que ele simplesmente estava farto de sua esposa. Ela tinha dinheiro, e creio que devia ser mesmo horrível viver com ela — sempre falando de religião. Então, decidiu livrar-se dela e viver confortavelmente sozinho.

— Isso pode muito bem ter acontecido.

— Foi o que aconteceu. Planejou tudo com cuidado. Fingiu receber um telefonema...

Melchett interrompeu-o: — Fingiu?

— Sim. E isso também quer dizer que ele mentiu ou que aquela chamada foi feita de um telefone público. Os únicos telefones públicos da cidade são o da estação e o do correio. Do correio não pode ter sido. A Srta. Blade vê todas as pessoas que entram lá. Da estação, sim. Há um trem que chega às duas e vinte e sete, e sempre se forma um certo tumulto. O principal é que ele disse que Miss Marple telefonou para ele e isso certamente não é verdade. A chamada não partiu de sua casa. Ela própria estava na Sociedade Feminina.

— Você não está considerando a possibilidade de o marido ter sido deliberadamente afastado da casa por alguém que desejasse assassinar a Sra. Spenlow, está?

— O senhor está pensando em Ted Gerard, eu sei. Já investiguei isso também. Não creio nessa possibilidade. Ele não ganharia nada com isso.

— Mas ele não presta. Já deu um desfalque uma vez.

— Não estou dizendo que ele preste, e sim que, de uma forma ou de outra, ele restituiu o dinheiro daquele desfalque. Seus chefes é que não tiveram bom senso.

— E está ligado ao tal Grupo Oxford — disse Melchett.

— Mas arrependeu-se e fez tudo o que pôde para emendar-se. Admito que ele tenha sido astuto. Devia saber que suspeitavam dele e resolveu bancar o penitente.

— Você é um céptico, Slack — disse o Coronel.

— Já falou com Miss Marple?

— E o que ela tem com isso?

— Nada. Mas ela sabe de tudo o que acontece na cidade. Por que não bate um papo com ela? E uma velhinha bastante esperta.

Slack mudou de assunto:

— Gostaria de perguntar-lhe uma coisa: aquele primeiro emprego da falecida — a casa do Sr. Robert Abercrombie... Não foi lá que houve um roubo de jóias? Esmeraldas... Uma fortuna. Os ladrões nunca foram apanhados. Estive investigando isso. Deve ter acontecido quando a Sra. Spenlow ainda trabalhava lá, embora ela fosse quase uma menina na época. Ela não poderia estar metida nisso? Spenlow era um desses joalheiros pobretões — a pessoa indicada para isso.

Melchett abanou a cabeça:

— Não acredito nisso. Ela nem conhecia Spenlow naquela época. Lembro-me bem do caso. Na polícia, era voz corrente que um dos filhos de Abercrombie, Jim, estava envolvido no caso. Um perdulário! Nadava em dívidas e, logo depois do roubo, elas foram saldadas. Disseram que fora ajudado por uma mulher muito rica, mas eu não me convenci. Principalmente porque o velho Robert tentou afastar a polícia do caso.

— Foi apenas uma idéia — disse Slack.

Miss Marple recebeu o Inspetor Slack com alegria, principalmente quando soube que ele tinha sido enviado pelo Coronel Melchett.

— Foi uma gentileza do Coronel. Não sabia que ele se lembrava de mim.

— É claro que se lembra. Contou-me que aquilo que a senhora não sabe a respeito de St. Mary Mead não vale a pena procurar saber...

— Ele é realmente muito gentil, mas eu não sei mesmo nada a respeito desse assassinato.

A senhora sabe como se comenta sobre isso.

— Sim, claro! Mas de que adiantaria ficar repetindo fofocas? Slack tentou ser esperto:

— Isto não é um interrogatório. Ê uma conversa informal.

— Quer mesmo saber o que as pessoas estão dizendo, e se é verdade ou não?

— Isso mesmo!

— Bem, as pessoas sempre exageram muito as coisas. Além disso, há duas correntes de opinião: uma acredita que foi o marido. O companheiro é, de uma forma ou de outra, a primeira pessoa de quem se desconfia, não é mesmo?

— Pode ser — disse o inspetor, com cautela.

— Há também o lado financeiro. Soube que o dinheiro que possuíam era dela e que o Sr. Spenlow seria beneficiado com sua morte. Neste mundo corrompido, as piores maldades acabam tendo justificativa.

— Ele ficou com uma soma respeitável.

— Exatamente. Seria plausível que ele a tivesse estrangulado, deixado a casa pelos fundos, vindo pelo campo até minha casa, perguntado por mim, fingindo ter recebido um telefonema e voltado para casa, encontrando a esposa assassinada. Esperava, por certo, que o crime fosse atribuído a algum vagabundo ou ladrão.

O inspetor concordou:

— E o dinheiro? Eles poderiam não estar se entendendo bem ultimamente.

Miss Marple não o deixou continuar:

— Eles se entendiam muito bem!

— Como pode estar tão certa?

— Todos saberiam se eles brigassem! A criada, Gladys, teria espalhado o fato por toda a cidade.

O inspetor murmurou entre os dentes:

— Ela provavelmente não sabia... — e recebeu um olhar descrente como resposta.

Miss Marple prosseguiu:

— Há quem diga que foi Ted Gerard — um rapaz bem apessoado. Acho que o senhor sabe, a aparência às vezes influencia mais do que deve. Lembra-se do último vigário que tivemos? Foi um achado! Todas as moças compareciam à igreja, de manhã à noite, e muitas senhoras tornaram-se anormalmente diligentes no trabalho da paróquia. Isto sem contar os casacos e os cachecóis que faziam para ele. Muito embaraçoso para o rapaz!

— Mas, o que eu estava dizendo? Ah, sim! Esse tal Ted Gerard... Têm falado nele. Vinha vê-la com freqüência, embora a própria Sra. Spenlow tenha dito que ele era membro do tal Grupo Oxford — um movimento religioso. São bastante sinceros e fervorosos e a Sra. Spenlow estava muito impressionada com isso.

Miss Marple fez uma pausa e continuou:

— Eu estou convencida de que não havia nada além disso, mas sabe como é o povo. Muita gente acha que a senhora Spenlow estava encantada com o rapaz e que lhe havia emprestado uma soma considerável. Além disso, ele foi visto na estação naquele dia, saltando do trem das duas e vinte e sete. Mas é claro que seria mais fácil para ele pular para o outro lado da linha, entrar pelo atalho, saltar a cerca e contornar a sebe, sem passar pela estação. Assim, evitaria ser visto a caminho do sítio. E, logicamente, a roupa que a Sra. Spenlow estava usando era um tanto... imprópria.

— Imprópria?

— Um quimono, e não um vestido. — Miss Marple enrubesceu. — Esse tipo de coisas não deixa de ser sugestivo para algumas pessoas.

— A senhora também acha?

— Não, não. Eu não acho! Para mim, isso é perfeitamente normal.

— A senhora acha normal?

— De acordo com as circunstâncias, sim. — O olhar de Miss Marple era frio e pensativo.

O Inspetor Slack disse:

— Isso poderia ser mais uma prova contra o marido: ciúme.

— Não creio. O Sr. Spenlow nunca seria ciumento. Não é do tipo observador. Se sua esposa o tivesse abandonado e deixado um bilhete de despedida, esta seria a primeira vez que ele pensaria no assunto. — O Inspetor Slack estava intrigado com a maneira decidida pela qual ela o olhava. Tinha a impressão de que a conversa tinha por objetivo tocar em algum ponto que ele ainda não havia captado. Ela disse com firmeza:

— O senhor não tem nenhuma pista, inspetor?

— Ninguém deixa pegadas ou pontas de cigarro hoje em dia, Miss Marple.

— Mas esse eu tenho a impressão de ter sido um crime à antiga — sugeriu ela.

Slack retrucou:

— O que quer dizer com isso? Miss Marple respondeu calmamente:

— Acho que o Investigador Palk poderá ajudá-lo. Ele foi a primeira pessoa a chegar ao local do crime, como se costuma dizer.

O Sr. Spenlow estava sentado em sua espreguiçadeira. Parecia perplexo. Após algum tempo, disse, com um fio de voz:

— Posso imaginar o que ocorreu. Já não escuto tão bem quanto escutava antes, mas ouvi distintamente um garotinho dizer na rua: "Quem é o assassino?" Isso... Isso me deu a impressão de que ele estava querendo dizer que eu matei minha querida esposa.

Miss Marple, despetalando delicadamente uma rosa, disse:

— Essa era a impressão que ele queria dar, sem dúvida.

— Mas o que poderia ter sugerido essa idéia a um menino? Miss Marple pigarreou:

— Sem dúvida, a opinião dos pais.

— A senhora realmente acredita que outras pessoas pensem assim?

— Quase a metade do povo de St. Mary Mead.

— Mas, minha senhora, o que poderia ter dado ensejo a essa suposição? Eu gostava muito da minha esposa. De fato, ela não se adaptou tão bem à vida no campo quanto eu gostaria, mas ninguém pode concordar em tudo. Isso é um ideal impossível. Asseguro-lhe que senti muito perdê-la.

— E provável. Mas, se o senhor me desculpar a indiscrição, não parece.

O Sr. Spenlow ergueu-se e disse:

— Minha senhora há alguns anos li que um filósofo chinês, quando perdeu sua esposa, continuou calmamente a tocar um gongo pela rua — um costume chinês, eu acho — como se nada houvesse acontecido. O povo da cidade ficou muito impressionado com isso.

— Mas — disse Miss Marple — o povo de St. Mary Mead reage de maneira um pouco diferente. A filosofia chinesa não tem muito prestígio por aqui.

— E a senhora? Entende? Miss Marple fez que sim:

— Meu tio Henry — explicou — possuía um autocontrole fora do comum. Seu lema era nunca demonstrar emoção e também gostava muito de flores.

— Eu estava pensando — disse o Sr. Spenlow com certo entusiasmo — que poderia cultivar ramadas no lado oeste do sítio. Rosas vermelhas e glicínias também. E há um tipo de flor estrelada, cujo nome não me lembro agora e que...

Usando o mesmo tom com que falava com seu sobrinho-neto de três anos, Miss Marple disse:

— Tenho um catálogo de flores ilustrado, que é muito interessante. Gostaria de dar uma olhada? Preciso ir até à cidade.

Deixando o Sr. Spenlow no jardim a examinar o catálogo, Miss Marple subiu até seu quarto, embrulhou rapidamente um vestido num pedaço de papel pardo e saiu em direção ao correio. A Srta. Politt, a costureira, morava num pequeno apartamento, no segundo andar do edifício.

Todavia, Miss Marple não subiu imediatamente até lá. Eram duas e trinta, e uma perua estacionou na porta do correio. Isso acontecia todos os dias em St. Mary Mead. A funcionária do correio andava de um lado para outro, despachando pacotes, porque, além de cuidar do correio, ela vendia balas, livros de bolso e brinquedos.

Por alguns minutos, Miss Marple viu-se sozinha nas dependências do correio.

Antes que a funcionária retornasse, Miss Marple subiu até o apartamento da Srta. Politt e explicou que gostaria de reformar seu vestido cinza — torná-lo um pouco mais moderno, se fosse possível. A Sta. Politt disse que ia ver o que podia fazer.

O delegado ficou surpreso quando soube que Miss Marple desejava vê-lo. Ela entrou na sala e foi logo pedindo desculpas:

— Desculpe incomodá-lo. Eu sei que o senhor é um homem muito ocupado, mas tem sido sempre tão atencioso, que eu preferi vir falar diretamente com o senhor ao invés de procurar o Inspetor Slack. Eu não gostaria de criar problemas para o Investigador Palk. Quero dizer: acho que ele não deveria cuidar desse caso.

O Coronel Melchett olhou-a espantado:

— Palk? Mas ele é o investigador de St. Mary Mead! O que foi que ele fez?

— O senhor não se lembra? Havia um alfinete no seu paletó no dia do crime. Ocorreu-me que o alfinete poderia ter ido parar lá porque ele estivera na casa da Sra. Spenlow.

— É possível. Mas, afinal, o que representa um alfinete? Ele pode ter ficado preso na roupa dele quando ele estava examinando o corpo. Ele veio aqui ontem e contou isso a Slack. Acredito que ele o tenha feito falar. Não deveria ter agido assim, é claro, mas como eu já disse, o que pode representar um alfinete? Era um alfinete comum — o tipo da coisa que qualquer mulher usa.

— Não, não, Coronel Melchett. Aí é que o senhor está enganado. Um homem não saberia distinguir um alfinete comum de um especial, e aquele era especial, muito fino, geralmente usado por costureiras.

Melchett ficou paralisado. Aos poucos, parecia ir compreendendo tudo. Miss Marple sacudia a cabeça veementemente.

— Mas é claro! Para mim está claro como água! A Sra. Spenlow estava usando um quimono porque ia experimentar um vestido novo. Ela foi até a sala de estar e a Srta. Politt disse alguma coisa a respeito de tirar medidas e colocou a fita métrica em torno do seu pescoço. Depois, foi só puxar a fita. Fácil, não parece? Então ela saiu e ficou do lado de fora batendo a porta como se tivesse acabado de chegar. O alfinete prova, no entanto, que ela já havia estado lá.

— E foi Politt quem telefonou para Spenlow?

— Sim. Do Correio, às duas e meia. Exatamente na hora em que a perua chega e o local fica vazio.

— Minha cara Miss Marple, por que motivo ela faria isso? Por Deus! Não se pode assassinar alguém sem motivo.

— Eu acho, Coronel, que isso é uma velha história. Fez-me lembrar meus dois irmãos: Anthony e Gordon. Tudo o que Anthony fazia dava certo, o que não acontecia com Gordon. Cavalos adoeciam, a lavoura não progredia e a propriedade ia cada vez pior. Acho que isso deve ter acontecido com as duas mulheres. Elas devem ter trabalhado juntas no passado.

— Em quê?

— No roubo. Há muito tempo. Eram esmeraldas valiosíssimas, pelo que eu sei. A dama-de-companhia e a criada. Porque... uma coisa não está clara. Como a criada casou-se com o jardineiro e logo montou uma floricultura? Logicamente, com a sua parte do roubo. No final tudo deu certo. O dinheiro foi bem aplicado — rendeu. Mas a outra moça não deve ter sido bem-sucedida e acabou se tornando apenas uma costureira de cidade do interior. Aí novamente se encontraram. Tudo parecia ir bem até Gerard aparecer. A Sra. Spenlow tinha crises de remorso, tornara-se fervorosamente religiosa. O rapaz, sem dúvida, instigava-a a purificar-se, e não duvido que ela própria estivesse realmente inclinada a fazê-lo. Miss Politt, porém, não pensava assim. Começou a achar que poderia ir para a cadeia por um roubo que praticara há muito tempo e resolveu acabar com a Sra. Spenlow. Acredito que ela sempre tenha sido um pouco fraca. Provavelmente não moveria uma palha se o Sr. Spenlow fosse incriminado. O Coronel Melchett disse bem devagar:

— Há um dado da sua hipótese que podemos verificar: o fato de a dama-de-companhia dos Abercrombie e a Srta. Politt serem a mesma pessoa, mas...

Miss Marple insistiu:

— Não será difícil. Ela é o tipo da mulher que confessará tudo no momento em que for acusada. Além disso... ontem eu apanhei sua fita métrica quando fui experimentar uma roupa. Ela vai dar falta do objeto e pensar que poderá ir parar nas mãos da policia. É uma pessoa ignorante e pensará que isso é uma prova decisiva contra ela.

Miss Marple sorriu encorajando-o:

— O senhor não terá trabalho, pode estar certo.

Falou como lhe falara sua tia, dando-lhe certeza de que iria passar na prova para a Academia de Polícia. E ele passou.
Fonte:
Christie, Agatha(1891-1976). Os Três ratos cegos e outras histórias (tradução de Regina Saboya de Santa Cruz Abreu). Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 1979.

Folclore Portugues (A Lenda do Convento das Mercês)

Contada por Fernanda Frazão na sua obra “Lendas Portuguesas da Terra e do Mar”.

Na ilha da Madeira houve em tempos um convento de capuchinhos, a cuja fundação está ligada uma lenda cheia de milagres e maravilhas.

Havia na ilha uma rica proprietária, D. Isabel de França — casada com Gaspar Berenguer de Andrade —, que se confessava habitualmente ao padre Ribeiro. Este há muito que tinha na ideia a fundação de uma casa de religiosas, em certo local deserto da ilha, e pediu à sua confessada que subsidiasse a obra.

D. Isabel, porém, alegava que só poderia contribuir com os terrenos, uma vez que tudo o resto era administrado pelo marido, homem avarento e pouco piedoso. Era sincera a senhora e, por isso, ficou preocupada por não poder satisfazer aquele desejo do religioso.

Uma noite aconteceu-lhe sonhar e ter uma visão de Nossa Senhora das Mercês. Dizia-lhe a Virgem:

- Isabel, quero o meu convento!…

Ó minha Nossa Senhora, não tenho dinheiro para dar, bem o sabeis!

Faz como quiseres, Isabel, dá até a tua camisa, mas faz-me esse convento!…

Antes que a senhora pudesse replicar, a Virgem desapareceu do seu sonho. Impressionadíssima com aquela aparição, D. Isabel decidiu ir contra a vontade do marido e aplicar na obra pedida todos os seus rendimentos pessoais.

O Demo, porém, estava apostado em impedir a fundação daquele mosteiro e, por intermédio de D. Gaspar, arranjou modos de mover o governador do bispado a dificultar, senão proibir, aquela obra. Assim, quando foi pedida autorização para iniciar a pia obra, o projecto foi recusado.

A Virgem das Mercês veio então em auxílio de D. Isabel e do padre Ribeiro: indo o bispo de viagem a Porto Santo, fez levantar um tão medonho temporal no mar que a embarcação esteve em via de se afundar.

O clérigo, meio morto de pavor, lembrou-se subitamente da sua recusa em autorizar a fundação do mosteiro e, logo ali, prometeu proteger o projecto se o mar amainasse. Nossa Senhora, que estava à espera disto mesmo, imediatamente ordenou ao mar que se acalmasse e este tornou-se num lago remançoso, espelhado de sol.

O clérigo cumpriu a sua promessa, mas o Demo não desistiu de levar a sua avante. Uma vez aplainadas as dificuldades de carácter religioso, começaram as seculares: o governador da ilha recusou terminantemente a autorização do convento.

Novamente vem a Virgem em auxílio do seu projecto. Este governador da Madeira era considerado herege por alguns senhores da ilha, mas, até então, a sua autoridade era indiscutível e ninguém se atrevera a contestá-la. De súbito, os grandes senhores da Madeira puseram-se de acordo quanto aos abusos de autoridade perpetrados pelo governador e tramaram uma conjura para o afastarem do cargo. Mandaram então uma embaixada ao Rei, em Portugal, e tão bem conduziram o assunto que o governador foi afastado do seu cargo.

Entretanto, a construção do edifício tora iniciada e as obras corriam em bom andamento. O Demo, desesperado, fez a terceira tentativa para frustrar a obra das Mercês: acabaram-se os recursos materiais de D. Isabel. A senhora deu voltas à cabeça, fez contas e mais contas com os feitores, mas não conseguiu nem mais uma moeda dos seus rendimentos.

Novamente os sonhos, provocados pela patrona da obra, vieram em auxílio de D. Isabel. Certa noite em que estava nestas aflições, adormeceu de cansaço e sonhou que em determinado local do seu jardim havia ouro enterrado, o suficiente para terminar a obra do mosteiro.

Na manhã seguinte, com o coração em alvoroço, dirigiu-se ao cantinho do sonho e começou a cavar às escondidas de toda a gente. Tão absorvida estava nesse trabalho que nem reparou que D. Gaspar se aproximava pé ante pé para ver o que estava ela fazendo, precisamente na altura em que a enxada batia num objecto bem sólido e sonante.

D. Gaspar percebeu rapidamente, com aquela intuição própria dos avaros, que o objecto em que tocara a enxada era um cofre, sem dúvida cheio de ouro, e apressou-se a exigi-lo para si.

Apanhada de surpresa, D. Isabel entregou o cofre ao marido, que, estupefacto, o encontrou cheio de carvão. D. Gaspar desiludido com o fraco achado, virou costas e foi à sua vida. Imediatamente o carvão se tornou em ouro e a devora senhora o entregou ao padre Ribeiro para a conclusão da obra.

Assim que tudo ficou pronto, instalaram-se as freiras e convocaram o capítulo para assentarem na regra a seguir.

Prestes a optarem por uma ordem rica, nova maravilha veio decidir a sorte do convento das Mercês: a terra começou a rugir e a tremer ameaçando destruir a obra que tantos sacrifícios custara. E as freiras, convictas de que era vontade de Deus, optaram então por uma regra de pobreza, ordem esta que durou enquanto o convento se manteve em funcionamento.

Conta-se ainda, deste convento que existiu na Madeira, que uma certa personagem de grande virtude vira durante muitas noites, naqueles sítios ermos, uma luz alumiando uma Virgem esplendorosa assaltada por legiões de demónios.

Fonte:

Marina Colasanti (O Leopardo é um Animal Delicado)

O leopardo é um animal delicado, de Marina Colasanti, é uma coletânea de vinte e cinco contos curtos onde os temas são variados, incluindo situações cotidianas e reflexões sobre a complexidade das relações humanas.

Nestes contos a autora volta a explorar os abismos da alma feminina. Embrenhando-se por florestas misteriosas, casas desertas, investigando o amor de um pastor por sua ovelha, a solidão de um ingênuo internauta, ou a espera de uma mulher por um homem que nunca vem, a autora exercita sua prosa delicada e sutil, oferecendo a seus leitores as amarguras e delícias da boa literatura.

Os contos deste livro diferem do estilo miniconto ao qual Marina se dedicou ao longo de três livros, desde Zooilógico. Em O leopardo é um animal delicado, a autora optou por um texto mais longo, mais alentado, que lhe deu espaço e tempo para compor histórias de muitas nuances, que demonstram o perfeito domínio da atividade literária. A narrativa é leve e insinuante, plena de sentimento e um verdadeiro convite à reflexão sobre a própria natureza da condição humana.

Hábil em explorar o feminino, Marina cria imagens sutis e poéticas, despe e revela lados inexplorados, secretos. Ela vai além das evocações de erotismo, afeto, ambigüidade do amor e da realidade cotidiana.

Para a autora, o leopardo não é um animal delicado, nem a delicadeza é a tônica do livro. A delicadeza está na forma, no cuidado com a escrita e com a delineação dos personagens. E o leopardo pode até ser um animal delicado, quando comparado à ferocidade humana. Pois é através da referência daquilo que cerca o homem que é possível referi-lo, e então defini-lo.

Conto escolhido: COMO É MESMO O NOME?

Levou o manequim de madeira à festa porque não tinha companhia e não queria ir sozinho.

Gravata bordeaux, seda. Camisa pregueada, cambraia. Terno riscado, lã. Tudo do bom. Suas melhores roupas na madeira bem talhada, bem lixada, bem pintada, melhor corpo. Só as meias um pouco grossas, o que porém se denunciaria apenas se o manequim cruzasse as pernas. Para o nariz firmemente obstruído, um lenço no bolsinho.

No relógio de ouro do pulso torneado, a festa já tinha começado há algum tempo.

Sorridentes, os donos da casa se declararam encantados por ter ele trazido um amigo.

— Os amigos dos nossos amigos são nossos amigos — disseram saboreando a generosidade da sua atitude. E o apresentaram a outros convidados, amigos e amigos de nossos amigos. Todos exibiram os dentes em amável sorriso.

Recebeu o copo de uísque, sua senha. E foi colocado no canto esquerdo da sala, entre a porta e a cômoda inglesa, onde mais se harmonizaria com a decoração.

A meia hilaridade pintada com tinta esmalte e reforçada com verniz náutico exortava outras hilaridades a se manterem constantes, embora nenhuma alcançasse idêntico brilho. Abriam-se os transitórios vizinhos em amenidades que o compreensivo calar-se do outro logo transformava em confidências. Enfim alguém que sabia ouvir. Relatos sibilavam por entre gengivas à mostra e se perdiam em quase espuma na comissura dos lábios. Cabeças aproximavam-se, cúmplices. Apertavam-se as pálpebras no dardejado do olhar. O ruge, o seio, o ventre, a veia expandida palpitavam. O gelo no uísque fazia-se água.

A própria dona da casa ocupou-se dele na refrega de gentilezas. Trocou-lhe o copo ainda cheio e suado por outro de puras pedras e âmbar. Atirou-se à conversa sem preocupações de tema, cuidando apenas de mantê-lo entretido. Do que logo se arrependeu, naufragando na ironia do sorriso que lhe era oferecido de perfil. A necessidade de assunto mais profundo levou-a à única notícia lida nos últimos meses. E nela avançou estimulada pelo silêncio do outro, logo úmida de felicidade frente a alguém que finalmente não a interrompia. No mais frondoso do relato o marido, entre convivas, a exigiu com um sinal. Afastou-se prometendo voltar.

O brilho de uma calvície abandonou o centro da sala e coruscou a seu lado, derramando-lhe sobre o ombro confissões impudicas, relato de farta atividade extraconjugal. Sem obter comentários, sequer um aceno, o senhor louvou intimamente a discrição, achando-a, porém, algo excessiva entre homens. Homens menos excessivos aguardavam em outros cantos da sala a repetição de suas histórias.

Não acendeu o cigarro de uma dama e esta ofendeu-se, já não havia cavalheiros como antigamente. Não acendeu o cigarro de outra dama e esta encantou-se, sabia bem o que se esconde atrás de certo cavalheirismo de antigamente. Os cinzeiros acolheram os cigarros sem uso.

Um cavalheiro sentiu-se agredido pelo seu desprezo. Um outro pela sua superioridade. Um doutor enalteceu-lhe a modéstia. Um senhor acusou-lhe a empáfia. E o jovem que o segurou pelo braço surpreendeu-se com sua rígida força viril.

Nenhum suor na testa. Nenhum tremor na mão. Sequer uma ponta de tédio. Imperturbável, o manequim de madeira varava a festa em que os outros aos poucos se descompunham.

Já não eram como tinham chegado. As mechas escapavam, amoleciam os colarinhos, secreções escorriam nas peles pegajosas. Só os sorrisos se mantinham, agora descorados.

No relógio torneado do pulso rijo a festa estava em tempo de acabar.

As mulheres recolhiam as bolsas com discrição. Os amigos, os amigos dos amigos, os novos amigos dos velhos amigos deslizavam porta afora.

Mais tarde, a dona da casa, tirando a maquilagem na paz final do banheiro, dedos no pote de creme, comentava a festa com o marido.

— Gostei — concluiu alastrando preto e vermelho no rosto em nova máscara —, gostei mesmo daquele convidado, aquele atencioso, de terno riscado, aquele, como é mesmo o nome?

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/o_leopardo_e_um_animal_delicado