quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Dalton Trevisan (Cemitério de Elefantes)

“O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.”

Cemitério de Elefantes, de Dalton Trevisan, publicado em 1964, reúne contos do autor, onde coloca em destaque histórias que, de um lado, se passam no contexto rural, com personagens à margem do mundo moderno, refletindo um universo fundado em valores patriarcais, e, de outro, a temática urbana, representada em um de seus contos mais famosos - Uma Vela para Dario - que representa a degradação da morte em um ambiente urbano. Dario passa mal, morre e é roubado sem que ninguém o ajude. A multidão assiste durante horas a sua agonia, movida pela curiosidade, sem um traço de piedade. É um anônimo, assim como a multidão que o cerca.

Dalton Trevisan já se tornou uma figura mítica no círculo literário brasileiro. Ganhador de dois Prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, que dividiu com Bernardo Carvalho em 2003, não dá entrevistas, não comenta sua obra, não suporta a imprensa, não cede o número de telefone, não se deixa ser fotografado – as poucas imagens em circulação foram tiradas às escondidas, num flagra de seus passeios diários à livraria de um amigo. Tornou-se célebre a história de seu primeiro Jabuti, em 1960, por Novelas nada exemplares, que não foi receber. Sua famigerada obra, Vampiro de Curitiba, de 1965, rendeu-lhe o apelido do título, tal sua excentricidade e enclausuramento. É advogado, dono de uma fábrica de vidros, e um dos melhores contistas brasileiros da atualidade.

O estilo de Trevisan é inconfundível: conciso, simples, direto, sintético; não faz rodeios e diz (exatamente) o que tem de ser dito. Sua produção constitui-se principalmente de contos, mas escreveu romances (alguns do princípio da carreira, hoje renegados pelo autor, que não guarda deles um exemplar sequer, e o único publicado A polaquinha, de 1985) e nos últimos anos sua sinteticidade atingiu o ápice com o haicai, que compõe dois de seus livros. Sua obra já teve traduções para o inglês, espanhol, italiano, alemão, polonês e sueco. A temática é constituída de um intenso realismo urbano, tendo como cenário a cidade de Curitiba, cujos moradores são os protagonistas, em seus momentos mais alarmantes e, ao mesmo tempo, cotidianos. É o cotidiano universalizante, que poderia se passar (e se passa!) em qualquer outro lugar, o cotidiano das relações inter-pessoais, dos choques de temperamentos, dos casamentos mal-sucedidos, dos infernos particulares, do mundo carnívoro. A complexidade dos temas choca-se com a abordagem direta, e a sutileza fica por conta da escolha das palavras ou de uma imagem esclarecedora.

Em Cemitério de Elefantes não é diferente. Olhamos pela fechadura, ao invés de escutar através das paredes. Dalton coloca o leitor dentro da sala de estar de uma família curitibana (ou mais freqüentemente, dentro de seu quarto), e conta os segredos que ficam escondidos dos vizinhos. A cena por vezes se passa em quadros, e a briga de marido e mulher torna-se uma poça de sangue no chão da cozinha num mudar de linha. A esposa que vira prostituta, o morto abandonado na calçada, a casa indiferente a seus moradores moribundos, a mocinha que cai na armadilha indecente do velho, a filha no orfanato decadente, a briga de rua do marido ciumento, entre outras situações indesejavelmente comuns, são vistas de perto, perto demais, pelo leitor de Trevisan. É a desgraça da humanidade aproximada dos olhos, sem intermediários. A obra recebeu o segundo Prêmio Jabuti da carreira do autor, em 1965, e também o Prêmio Fernando Chinaglia.

Nesse mesmo livro, o conto - Cemitério de Elefantes - traz ao leitor um mundo de seres situados à margem do chamado "mundo oficial". Simbolizando a categoria marginal dos personagens, os bêbados vivem à beira do rio e são alimentados pelos pescadores. Um duplo sentido é estabelecido: bêbados e elefantes são a imagem viva do peso, da lentidão, da falta de jeito e, ao mesmo tempo, aceitam resignadamente um destino irrefutável.

Vejamos alguns contos da obra:

Uma vela para Dario

Conto narrado em terceira pessoa. É a estória de Dario, um cidadão comum que passa mal na rua e agoniza.

Vem por uma esquina e encosta-se numa parede. Alguns passantes perguntam se não está bem, mas Dario já não tem forças para responder, escorre pela parede e sua boca se enche de espuma.

Um rapaz o ajuda, desapertando suas roupas, seu cachimbo apaga e Dario rouqueia feio junto às bolhas de espuma que lhe surgem da boca.

As pessoas que passam se acercam da cena e um senhor gordo repete que Dario caíra e deixara cair seu guarda chuva e seu cachimbo, que já não mais estão ali.

Arrastam-no para um táxi, mas ninguém quer pagar a corrida. Cogita-se em chamar uma ambulância e Dario já não tem seus sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Dario continua à mercê daqueles que o cercam e alguém fala da farmácia, mas é no outro quarteirão e pelo seu peso, as pessoas desistem de levá-lo. É abandonado em frente a uma peixaria.

Aparece mais um que se prontifica a ajudá-lo sugerindo que lhe examinem os papéis. Ele é revistado e ficam sabendo quem ele é, mas ninguém resolve nada.

Chega a polícia e a cena é cercada de uma multidão de curiosos. Dario é pisoteado e o guarda não pode identificar o seu cadáver. Ainda lhe resta a aliança de ouro que Dario só conseguia tirar molhando com sabonete.

"A polícia decide chamar o rabecão". "A última boca repete — Ele morreu, ele morreu."

Há uma dispersão, quando as pessoas observam agora a um defunto. Um senhor piedoso aproxima-se e arruma o corpo da maneira que pode, ajeitando a cabeça sobre o paletó enrolado e cruzando as mãos sobre seu peito. A multidão termina por se espalhar e Dario, incógnito, agora só representa mais um cadáver, um indigente sem valor no meio da rua. A narrativa coloca as pessoas da cena como que indiferentes em sua rotina, diante do cadáver: "Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos."

Fecha-se a estória sem que a esperança de humanidade seja possível. Só o gesto de um menino salva a morbidade do desfecho. Dario é completamente saqueado e abandonado. "Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver". "Fecha-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra sem o paletó e o dedo sem aliança. O toco de vela apaga-se..."

Cemitério de Elefantes

Narrativa em terceira pessoa. Nos fala sobre um grupo de bêbados de Curitiba, que vivem à Meca do que a cidade os oferece. "Curitiba os considera animais sagrados, provê as suas necessidades de cachaça e pirão."
Eles vivem à margem do rio Belém, nos fundos de um mercado de peixes onde existe um velho ingazeiro. Aí onde vivem, os bêbados são felizes. Se contentam com as sobras, mas quando aperta a fome vão até o mangue para assar caranguejo e também se fartar dos frutos ingazeiro.

Os personagens são comparados a elefantes, o que dá um ar grotesco às suas formas e maneiras. "Elefantes Malferidos, coçam as perebas sem nenhuma queixa..."

Pedro, João, o Cai N’água, Jonas, Chico Papa-Isca; todos bêbados moribundos a procura de simplesmente sobreviver aos restos do mangue; cada qual com seu lugarzinho reservado. São todos uns dorminhocos e quando acordam ninguém se pergunta onde é que foi o amigo que está ausente. "E se indagassem para levar-lhe Margaridas do banhado, quem saberia responder?"

Vivem entregues ao curso das horas e às, intempéries do local precário onde se instalam. "...escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira". "A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes."

Quando cai um fruto de ingazeiro se despertam rolando no pó e o ganhador se farta de olhos plenos de satisfação. As disputas não geram brigas, quando muito discussões à distância. Neste "cemitério" não existe violência.

Assim os bêbados elefantes, vão vivendo, suportando suas doenças, e suas dificuldades. Não existe ninguém em especial, nenhum destaque de algum personagem.

No final a metáfora da narrativa deixa para o leitor a conclusão da saga dos bêbados elefantes.

"Cospe na água o caroço preto do ingá, os outros não a interrogam: presas de marfim que apontam o caminho são as garrafas vazias. Chico perde-se no cemitério sagrado as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar."

Duas Rainhas

Narrado em terceira pessoa, é a estória de duas irmãs, pra lá de gordas, que vivem juntas e não conseguem parar de comer e engordar.

Augusta reclama de Rosa, "A Rosa é muito tirana" por ela ter desfeito os seus noivados. Mas o último dos três noivos conquista a Augusta e apesar da irmã opor-se instalaram-se na casa dos pais.

Glauco, proíbe Augusta de ir aos bailes e não deixa que ela o acompanhe até o portão. Ficam fechados o tempo todo dentro do quarto e Rosa reclama com sua mãe " — Já se viu (...) que pouca-vergonha?"

O marido quase não dorme, enquanto observa Augusta que ronca. Ela perde alguns quilos e Rosa engorda.

Saem para fazer compras e Rosa é confundida como se estivesse grávida.

Com isso, Glauco começa a beber.

"— Você tem vergonha de mim — choraminga Augusta."

"— Se ao menos evitasse bolinha no vestido."

Rosa tripudia pois não acreditava no casamento da irmã.

Glauco briga com a irmã, com o sogro e a sogra. As irmãs continuam sempre nas gulodices e anunciando o regime para o dia de amanhã. Têm sonhos com bichos, Augusta adora um elefante branco. Uma tarde explode o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram Rosa em prantos. Glauco investiu e derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

"— Minha rainha das pombinhas!"

Augusta só quer morrer e agora as duas ficam no quarto de casal e o marido no quarto de hóspedes. Bebe feito condenado enquanto as irmãs engordam mais. Reclamam da magreza de Glauco:

"Viu o Glauco? — Magro que dá pena (...)

— Não sei onde está com a cabeça.

— Gente magra é tão feia!"

"Contemplam-se orgulhosas..."

Acaba o conto as irmãs juntas, apoiando uma em cada janela da casa e prometendo que amanhã farão regime.

"— Amanhã dia de regime (...) — Que tal pedacinho de goiabada? (...)"

"Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os joelhos."

Trechos escolhidos de outros contos

"...Às festinhas de família, comparece o irmão Agenor, preferido do pai. José volta bêbado de madrugada. A mãe traz-lhe comida, ele se queixa, coçando a barba: O menino de ouro vem aí, Dão o carrão pra ele. O menino querido sai de carro. E o bichão aqui não tem nada. Depois sou eu que eu vivo à custa do Chiquinho.

- Respeite o pai, meu filho.

- Quem, o Chiquinho? Que se dê o respeito para as negas dele."

("O Caçula" - Cemitério de Elefantes)

"Bebeu no botequim: ali não havia homem. E cuspiu no soalho. Ai de quem protestou...Invadiu a casa do velho Felipe. Derrubou cadeira, bradava nome feio contra a sogra. Aos gritos pulava com a faca na mão. Discutiu como velho, tirou o paletó para brigar. Conseguiu Felipe que lhe entregasse a garrafa. Miguel estranhou a sogra e lhe passou uma rasteira, sentada no chão com as pernas de fora.

Felipe acudiu a velha, que gemia muito. Com a machadinha de picar lenha, Miguel desferiu três golpes que foram desviados . O sogro alcançou a garrafa e o derrubou com uma pancada na cabeça. Partiu-se o vidro e gritou o velho:

- Acertei uma boa...

Ergueram-se as duas mulheres. Era pequeno e magrinho, só quando bebia perigoso e muito ligeiro.

Amparado, Miguel caminhou até o quarto. Ainda se voltou para resmungar palavrões contra o sogro. Na cama balbuciou alguns nomes. Foi se arruinando ao ponto de perder a fala. De madrugada saiu-lhe na boca uma espuma branca. Pela manhã, conduzido ao hospital, morria sem conhecer a mulher que lhe sustentava a cabeça no colo. Quando o desceram da carroça ficou um pouco de sangue no vestido amarelo de Elira."

("Questão de Família" - Cemitério de Elefantes)

"O desgosto do velho Tobias é o filho: a medonha carinha vermelha de mongolóide.

- É tarado - desculpa-se e corrige - Doente de nascença.

- Um bicho em criança, andava de quatro, a língua de fora; aos pulos subia na árvore com a agilidade de mico. Amarrado com os cachorros no fundo do quintal. Escapando, arrastava a coleira pela rua - uma correria entre as crianças. Cabeça bem pequena, nariz purpurino, um guincho selvagem. Aos vinte anos, engolia as palavras - a língua uma ostra que não engolia.

- A omba oou...

- A pomba voou. Mais que as surras de correia do pai, domesticava-o a paciência amorosa de Dona Zica. No sábado apara-lhe as unhas e dá um cigarrinho para que aceite o barbeiro; inquieto na cadeira , três talhos no pescoço atarracado."

("Beto" - Cemitério de Elefantes)

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/c/cemiterio_de_elefantes
http://www.institutohypnos.org.br/?p=654

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