sábado, 29 de setembro de 2012

Jorge Amado (A Bola e o Goleiro)


O futebol era uma das paixões de Jorge Amado. E esse amor rendeu um belo livro infantil, “A bola e o goleiro”, escrito em 1984. O romance fala sobre Fura-Redes, a bola que era a alegria dos artilheiros. Com ela, os jogadores faziam gols sensacionais e inesquecíveis. Os locutores também ficavam enlouquecidos ao narrarem seu percurso. A habilidade para balançar a rede deu-lhe vários apelidos, tais como Esfera Mágica, Goleadora Genial, Pelota Invencível e Redonda Infernal. 

Totalmente imparcial, Fura-Redes não privilegiava nenhum time. Queria apenas proporcionar gols e mais gols. Jamais permitia um zero a zero nas partidas que participava. Até que conheceu o goleiro Bilô-Bilô, também conhecido como Cerca-Frangos, Mão Podre, engolidor de francos. Nem precisa dizer que era o desastre do desastre entre os goleiros. Contudo, o inesperado aconteceu. Ao ver Bilô-Bilô com sua camisa cor de caramelo, Fura-Redes se apaixonou. Perdidamente. Tudo o que queria era alinhar-se nos braços do seu amado. A partir daí, por mais que continuasse atuando da mesma forma, Bilô-Bilô não viu mais nenhuma bola entrar no “arco” que guardava. Defendia todas as jogadas. Todos os lances iam direto para suas mãos. Passou a ser chamado de Pega-Tudo e virou celebridade internacional.

Mas chega o dia em que o Rei do Futebol vai tentar seu milésimo gol. E quem entrará em campo junto com o time do melhor jogador do mundo? Bilô-Bilô e Fura-Redes, com certeza. O que será que vai acontecer? O livro foi publicado também em Portugal e ganhou versões em inglês, francês e alemão. A primeira edição, que é a que eu tenho (capa abaixo), traz ilustrações de Aldemir Martins. Boa história, com final que representa a inocência infantil. 
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Vou contar a quem a queira ouvir a história da bola Fura-Redes e do goleiro Bilô-Bilô, o Cerca-Frango, uma historinha para ninguém botar defeito, breve e louca como a vida.

     O destino das bolas de futebol é fazer gols e a bola Fura-Redes, como o nome indica, era a maior especialista do país na quantidade e na qualidade dos tentos assinalados.  Gols olímpicos, e de efeito, de folha-seca, de letra, de bicicleta, de placa, incomparáveis.

     Por isso mesmo tornou-se conhecida e aclamada como Esfera Mágica, Goleadora Genial, Pelota Invencível e Redonda Infernal, pelos locutores enlouquecidos ao microfone, quando a viam atravessar o campo, de passe em passe, de finta em finta, para marcar mais um tento sensacional.  A bola Fura-Redes era o pavor dos goleiros, a paixão dos pontas-de-lança e dos comandantes de ataque, a bem-amada da torcida.  Nascera para cruzar o arco, bater-se alegre  contra as redes, provocar o grito de guerra e de vitória da galera.

     Lustrosa, leve e atrevida, a mais redonda das pelotas, apesar de muito jovem, logo se tornou popularíssima devido ao número de tentos já marcados, cerca de seiscentos; muitos em cada partida.  Vários para a equipe A e vários para a equipe Z,pois Fura-Redes mantinha-se absolutamente imparcial quando se exibia no gramado.

     Marcava gols para as duas equipes, não protegia qualquer delas, era correta e justa.  Assinalaria maior número de tentos o time que mais procurasse o ataque, buscando encurralar o adversário.  Com ela, os artilheiros não erravam os chutes, não desperdiçavam bolas nas traves.  Mas, sendo igualmente bondosa, dotava de um coração de ouro, Fura-Redes tampouco deixava a outra esquadra em jejum: pelo menos um golzinho de consolação ela lhe concedia antes que o juiz trilasse o apito, dando o desafio por terminado.

     Fura-Redes fora proclamada inimiga número um do zero no placar.  Os resultados das partidas que jogava davam conta da impressionante vocação da Redondinha para o gol.  Redondinha, carinhoso apelido que lhe dera o Rei do Futebol.  Escores sempre altos: cinco a quatro, sete a seis, seis a seis.  Ou bem violentas goleadas: seis a dois, oito a três, cinco a um, quando se fazia evidente a diferença de qualidade entre os dois clubes, o campeão, dono do gramado, e o adversário, um timinho qualquer, de última categoria.

     Atingira Fura-Redes o ponto mais alto de sua brilhantíssima carreira: falava-se nela para ser a bola oficial da próxima Copa do Mundo.  Os principais artilheiros dos grandes clubes, os maiores pontas-de-lança do país morriam de amores por ela, todos queriam ser seus favoritos para alcançar o recorde mundial de gols.  Mas a heroína dos gramados não revelava preferência por nenhum deles.  Partia em direção ao arco tanto do pé do maior dos craques, Rei do Futebol, quanto da chuteira de um perna-de-pau qualquer até então desconhecido.  Para ela todos eram iguais, servia-se deles para buscar o gol e desatar a vibração do povo nos estádios a cada tento que marcava, todos dignos de placa.  Fura-Redes jamais se apaixonara.

     Um dia, porém, como sucede com todas as criaturas, Fura-Redes se apaixonou e logo por quem!  Em lugar de se apaixonar por um artilheiro, por um centro-avante, um ponta-de-lança, entregou seu coração a um goleiro, ao último dos goleiros, a Bilô-Bilô Mão Podre, engolidor de frangos.

     O goleiro Bilô-Bilô iniciara sua carreira de goleiro sendo saudado em campo com diversos apelidos, cada qual – como direi? – mais caloroso: Cerca-Frango, Mão-Furada, Mão-Podre, Rei-do-Galinheiro e outros nomes ainda mais feios que eu não reproduzo aqui por ser  esta historinha dedicada ao público infanto-juvenil.  Pois bem: Bilô-Bilô transformou-se no aplaudido, no popularíssimo Pega-Tudo, o Tranca-Gol, o Aranha, o Maior de Todos.

     Dizem ter sido a camisa de caramelo usada por Cerca-Frango a causa da paixão de Fura-Redes.  Quando o avistou no arco daquele time fuleiro que ainda não ganhara nenhuma partida no campeonato, que recebera goleada sobre goleada, Fura-Redes perdeu a cabeça, não teve olhos para ninguém.  Apenas iniciada a partida, ao ser chutada com violência para o arco, foi aninhar-se nos braços do Rei-do-Galinheiro.  Pela primeira vez na vida, Cerca-Frango viu-se ovacionado num estádio.

     Fura-Redes continuou a fazer gols sensacionais nos demais goleiros, um gol atrás do outro.  Mas quando entrava em campo a esquadra em cujo arco Pega-Tudo se exibia, era aquela glória.  O arqueiro adversário engolindo bola sobre bola, enquanto Pega-Tudo recolhia a pelota de mil maneiras diferentes, em defesas nunca vistas antes.  Outra coisa não desejava Fura-Redes além de aninhar-se nos braços de seu namorado.

     Para não faltar com a verdade, devo dizer que Bilô-Bilô mantinha-se igualzinho, não mudara: continuava sem saber se posicionar entre as traves, não saía do arco no momento certo, faltava-lhe visão do gol, enfim, prosseguia péssimo.  Apenas defendia tudo, absolutamente tudo.

     Cerca-Frango cercava a bola por um lado, ela estava no outro, a galera gritava GO-o-o-ol! E, de repente, na hora agá, o que se via? Via-se a bola encaixada nas mãos de Pega-Tudo, apertada contra o coração do goleiro, nos braços de Bilô-Bilô, sossegadinha, feliz da vida.  Em lugar de um novo gol de Fura-Redes, a torcida saudava mais uma portentosa defesa de Pega-Tudo.

     Durante um tempo mais ou menos longo, Fura-Redes e Tranca-Redes, ex-Cerca-Frango, dominaram os estádios brasileiros, empolgando multidões nas festas de tentos maravilhosos e de defesas deslumbrantes.  Ocupavam as manchetes dos jornais, as telas das televisões e dos cinemas, obrigavam os locutores a criarem expressões novas, ainda mais grandiloqüentes, aumentativos colossais para descrever os feitos da Bola e do Goleiro.

     Depois de varar as redes, aumentando o placar da surra humilhante  aplicada na equipe adversária, a Redondinha vinha redondinha, acolher-se nos braços de Bilô-Bilô, aconchegar-se em seu peito.  Por mais de uma vez aconteceu Tranca-Redes beijar Fura- Redes e então, no estádio, o numeroso público delirava.

     Parecia um milagre e assim era: milagre de amor não tem explicação, não necessita.

     Um dia os jornais, as rádios, as cadeias de televisão anunciaram para o Brasil e para o mundo inteiro que o Rei do Futebol havia faturado o gol novecentos e noventa e  nove e se preparava para varar o gol número mil, notícia empolgante e alvissareira.  Jamais outro artilheiro realizara tal façanha, metera mil gols nas redes adversárias.

     Movimentaram-se os goleiros do Brasil e de todos os países, todos queriam a honra e a glória de engolir o gol número mil do Rei.  Vieram telegramas propondo famosos quípers estrangeiros mas os brasileiros protestaram com razão: tinha de ser um goleiro nacional.

     Caberia a Bilô-Bilô aquele feito supremo: cercar o frango no milésimo gol do craque sem igual, pois cumprindo calendário do campeonato entraram em campo ou melhor adentraram o gramado – em embate tão importante não se entra em campo, adentra-se o gramado – a equipe do Rei e aquela cujo arco era guardado por Bilô-Bilô.

     Evidentemente a bola escolhida para o desafio não podia ser outra senão a famosa Fura-Redes, a quem o rei, como se sabe, galanteava dizendo-lhe “Redondinha, minha querida, minha formosa namorada”.

     Ainda hoje muita gente não acredita no que aconteceu em campo naquela tarde de sol com milhares de bandeiras desfraldadas no estádio onde mais de duzentas mil pessoas se comprimiam, gritando e aplaudindo.  O time do Rei do Futebol, que devia ganhar de goleada, apanhou uma surra de criar bicho.  Fura-Redes pintou e bordou e quando faltavam alguns segundos para a partida terminar, o escore subia a cinco a zero contra a equipe do Rei.

     Nos últimos segundos, porém, quando o público, decepcionado por não ter assistido ao gol número mil, começava a deixar o estádio,o juiz marcou um pênalti contra o time de Bilô-Bilô, pênalti que ninguém tinha cometido.  Roubo claro e evidente, foi no entanto aplaudidíssimo pois ia possibilitar que aquele imenso público visse e comemorasse o milésimo gol do Rei: mais do que ninguém, vibrou o nosso conhecido Cerca-Frango pronto para cercar o frango real e o engolir inteiro.

     Colocou-se a bola Fura-Redes na marca do pênalti, um silêncio enorme cobriu o estádio.  O Rei do Futebol tomou distância para dar ainda mais força ao chute potentíssimo, indefensável e fazer um límpido gol de placa.  Postou-se no arco Bilô-Bilô envergando a vistosa camisa cor de caramelo, nos lábios um riso de contentamento, pronto para não fazer a defesa, para engolir o frango cru, com penas e tudo.  Aliás nem se postou no centro do arco como era sua obrigação, ficou encostado na trave direita, do lado de fora, deixando o espaço livre para que Fura-Redes nele penetrasse.  Ninguém protestou, todos entenderam o gesto do arqueiro: iria se imortalizar ao receber aquele gol.

     Correu o Rei, chutou com a máxima violência a meia altura diante do arco vazio.  Duzentas e quatro mil trezentas e dezoito pessoas, sem contar os jornalistas, os cartolas e os penetras, viram Fura-Redes ser atirada com potente e certeiro chute do Rei do Futebol contra o desguarnecido arco de Bilô-Bilô.

     Puseram-se todos de pé no estádio, preparados para aplaudir, até o fim do dia e pelo resto da semana, o gol número mil do Rei do Futebol.  Viram então Fura-Redes dar meia-volta no ar, desviar-se antes de cruzar o arco, dirigindo-se, dengosa, para onde estava Bilô-Bilô vestido com a camisa cor de caramelo: queria aninhar-se  em seus braços.

     Mudou Cerca-Frango de posição, fugindo rápido para o outro lado, Fura-Redes fez o mesmo, a buscá-lo.  Assim ficaram os dois durante alguns minutos, um tempo enorme, correndo em frente às traves, de uma a outra, até que, desesperado, Bilô-Bilô disparou campo afora deixando o arco à disposição da bola.  Mas Fura-Redes partiu atrás de seu goleiro e o perseguiu até que o alcançou diante do arco adversário e em seu peito se aninhou redondinha e amorosa.

     Assim terminou a carreira futebolística da bola Fura-Redes e a do goleiro Cerca-Frango que foi o pior e o melhor de todos os goleiros.  O que fizeram depois? Ora, o que fizeram! Se casaram e viveram felizes para sempre.
     Bahia,janeiro de 1984.

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