quarta-feira, 19 de setembro de 2012

História da Literatura (Classicismo) Parte IV

Epístola: 
composição em que o autor expõe suas idéias e opiniões, em estilo calmo e familiar. Pode ser doutrinária, amorosa ou satírica. É feita à maneira de uma carta;

EXEMPLO DE EPÍSTOLA
Carta da Índia

Desejei tanto uma vossa, que cuido que pela muito desejar a não vi; porque este é o mais certo costume da Fortuna: consentir que mais se deseje o que mais presto há-de-negar. Mas porque outras naus me não façam tamanha ofensa, como é fazerem-me suspeitar que vos não lembro, determinei de vos obrigar agora com esta; na qual pouco mais ou menos vereis o que quero que me escrevais dessa terra. Em pago do qual, de antemão vos pago com novas desta, que não serão más no fundo de uma arca para aviso de alguns aventureiros que cuidam que todo o mato é orégãos, e não sabem que cá e lá más fadas há.
Depois que dessa terra parti, como quem o fazia para o outro mundo, mandei enforcar a quantas esperanças dera de comer até então, com pregão público: Por falsificadoras de moedas. E desenganei esses pensamentos, que por casa trazia, por que em mim não ficasse pedra sobre pedra. E assim posto em estado que me não via senão por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras que na nau disse foram as de Cipião Africano: Ingrata patria, non possidebis ossa mea. Por que quando cuido que, sem pecado que me obrigasse a três dias de Purgatório, passei três mil de más línguas, piores tenções, danadas vontades, nascidas de pura inveja, de verem su amada yedra de sí arrancada y em outro muro asida... Da qual também amizades, mais brandas que cera, se acendiam em ódios que disparavam lume que me deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão. Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés; as quais de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos, e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem fracos punham mau nome, vingando com a língua o que não podiam com o braço. Enfim, Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavam os acontecimentos, como com me vir para esta, onde vivo mais venerado que os touros de Merceana, e mais quieto que na cela de um frade pregador.
Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins e madrastra de homens honrados. Porque os que se cá lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sobre águas com {o} bexigas; mas os que sua opinião deita a las armas, Moriscote, como a maré corpos mortos à praia, sabei que, antes que amadureçam, se secam. Já estes que tomavam esta opinião de valente às costas, crede que nunca

Riberas del Duero arriba
Cabalgaron zamoranos,
Que roncas de tal soberbia
Entre sí fuesen hablando;

E quando vêm ao efeito da obra, salvam-se com dizer que se não podem fazer tamanhas duas cousas, como é prometer e dar.
Informado disto, veio a esta terra João Toscano, que, como se achava em algum magusto de rufiões, verdadeiramente que ali era su comer las carnes cruadas, su beber la viva sangre. Calisto de Sequeira se veio cá mais humanamente, por que assim o prometeu em uma tormenta grande em que se viu. Mas um Manuel Serrão, que, sicut et nos, manqueja de um olho, se tem cá provado arrazoadamente, porque fui tomado por juiz de certas palavras de que ele fez desdizer a um soldado, o qual, pela postura de sua pessoa, era cá tido em boa conta.
Se das damas da terra quereis novas, as quais são obrigatórias a uma carta como marinheiros à festa de S. Frei Pero Gonçalves, sabei que as portuguesas todas caem de maduras, que não há cabo que lhe tenha os pontos, se lhe quiserem lançar pedaço. Pois as que a terra dá? Além de serem de rala, fazei-me mercê que lhe faleis alguns amores de Petrarca ou de Boscão; respondem-vos uma linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgai, Senhor, o que sentirá um estômago costumado a resistir às falsidades de um rostinho de tauxia de uma dama lisbonense, que chia como pucarinho novo com a água, vendo-se agora entre esta carne de salé, que nenhum amor dá de si. Como não chorará las memorias de in illo tempore! Por amor de mim, que às mulheres dessa terra digais de minha parte que, se querem absolutamente ter alçada com baraço e pregão, que não receiem seis meses de má vida por esse mar, que eu as espero com procissão e pálio, revestido em pontifical, aonde estoutras senhoras lhe irão entregar as chaves da cidade, e reconhecerão toda a obediência, a que por sua muita idade são já obrigadas.
Por agora não mais, senão que este soneto que aqui vai, que fiz à morte de D. Antônio de Noronha, vos mando em sinal de quanto dela me pesou. Uma écloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata alguma cousa da morte do Príncipe, que me parece melhor que quantas fiz. Também vo-la mandara para a mostrardes lá a Miguel Dias, que, pela muita amizade de D. Antônio, folgaria de a ver; mas a ocupação de escrever muitas cartas para o Reino me não deu lugar. Também lá escrevo a Luís de Lemos em resposta de outra que vi sua: se lha não derem, sabia que é a culpa da viagem, na qual tudo se perde. - Vale.
(Luís Vaz de Camões)


Epitalâmio:
composição em honra aos recém casados, própria para ser recitada em bodas;

Canção:
composição erudita, de longas estrofes, versos decassílabos por vezes entremeados com outros de seis sílabas (heróicos) e de caráter amoroso;

EXEMPLO DE CANÇÃO
Canção V

Oh! quem me ali dissera
Que de amor tão profundo
O fim pudesse ver inda algua hora!
Oh! quem cuidar pudera
Que houvesse aí no mundo
Apartar-me eu de vós, minha Senhora,
Pera que desde agora
Perdesse a esperança,
E o vão pensamento
Desfeito em um momento,
Sem me poder ficar mais que a lembrança,
Que sempre estará firme,
Até o derradeiro despedir-me.

Mas a mor alegria
Que daqui levar posso,
Co'a qual defender-me triste espero,
É que nunca sentia,
No tempo que fui vosso,
Quererdes-me vós quanto vos eu quero;
Porque o tormento fero
De vosso apartamento
Não vos dará tal pena
Como a que me condena,
Que mais sentirei vosso sentimento
Que o que minha alma sente.
Moura eu, Senhora, e vós ficai contente!

Canção, tu estarás
Aqui acompanhando
Estes campos e estas claras águas,
E por mim ficarás
Chorando e suspirando,
E ao mundo mostrando tantas mágoas,
Que de tão larga história
Minhas lágrimas fiquem por memória.

Se este meu pensamento,
Como é, doce e suave,
De alma pudesse vir, gritando, fora,
Mostrando seu tormento
Cruel, áspero e grave,
Diante de vós só, minha Senhora;
Pudera ser que agora
O vosso peito duro
Tornara manso e brando.
E eu que sempre ando,
Pássaro solitário, humilde, escuro,
Tornado um cisne puro,
Brando e sonoro, pelo ar voando,
Com canto manifesto
Pintara meu tormento e o vosso gesto.

Pintara os olhos belos,
Que trazem nas meninas
O Menino que os seus neles cegou;
E os dourados cabelos
Em tranças de ouro finas,
A quem o Sol seus raios abaixou;
A testa, que ordenou
Atura tão formosa;
O bem proporcionado
Nariz, lindo, afilado,
Que cada parte tem da fresca rosa;
A boca graciosa,
Que querê-la louvar é escusado.
Enfim, é um tesouro:
Os dentes perlas, as palavras, ouro.

Vira-se claramente
Ó Dama delicada,
Que em vós se esmerou mais a Natureza;
E eu, de gente em gente,
Trouxera trasladada
Em meu tormento vossa gentileza.
Somente a aspereza
De vossa condição,
Senhora, não dissera,
Por que se não soubera
Que em vós podia haver algum senão.
E se alguém, com razão,
- Porque morres? - dissera, respondera:
- Mouro porque é tão bela,
Que inda não sou para morrer por ela.

E se pela ventura,
Dama, vos ofendesse,
Escrevendo de vós o que não sento.
E vossa fermosura
Tanto à terra descesse
Que a alcançasse humilde entendimento,
Seria o fundamento
Daquilo que cantasse
Todo de puro amor,
Por que vosso louvor
Em figura de mágoas se mostrasse.
E onde se julgasse
A causa pelo efeito, minha dor
Diria ali, sem medo:
Quem me sentir, verá de quem procedo.

Então amostraria
Os olhos saudosos,
O suspirar que a alma traz consigo;
A fingida alegria,
Os passos vagarosos,
O falar e esquecer-me do que digo;
Um pelejar comigo,
E logo desculpar-me;
Um recear, ousando;
Andar meu bem buscando,
E de poder achá-lo acobardar-me;
Enfim, averiguar-me
Que o fim de tudo quanto estou falando
São lágrimas e amores;
São vossas isenções e minhas dores.

Mas quem terá, Senhora,
Palavras com que iguale
Com vossa fermosura minha pena?
Que em doce voz de fora,
Aquela glória fale
Que dentro na minha alma Amor ordena?
Não pode tão pequena
Força de engenho humano
Com carga tão pesada,
Se não for ajudada
Dum piedoso olhar, dum doce engano,
Que, fazendo-me o dano
Tão deleitoso e a dor tão moderada,
Enfim se convertesse
Nos gostos dos louvores que escrevesse.

Canção, não digas mais; e se teus versos
À pena vêm pequenos,
Não queiram de ti mais, que dirás menos.
(Luís Vaz de Camões)


Fontes:
Garganta da Serpente
Imagem = compartilhada no facebook pela Libreria Fogola Pisa

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