SOMOS DUROS UM COM O OUTRO
I
Somos duros um com o outro
e chamamos-lhe honestidade
escolhendo as nossas verdades dentadas
com cuidado e apontando-as através
da mesa neutra
As coisas que dizemos são
verdadeiras: é o nosso alvo
retorcido, são as nossas escolhas
que nos tornam criminosos.
II
Claro que as tuas mentiras
são mais divertidas:
porque as fazes novas de cada vez
As tuas verdades, dolorosas e chatas
repetem-se continuamente
se calhar porque és dono
de tão poucas
III
Uma verdade deveria existir
não deveria ser usada
assim. Se eu te amo
é isso um fato ou uma arma?
O corpo mente
ao mover-se assim, são estes
toques, cabelos, o mármore
macio e úmido que a minha língua percorre
mentiras que me estás a dizer?
O teu corpo não é uma palavra,
nem mente
nem fala a verdade
Apenas
estás aqui ou não estás.
DIVAGAÇÃO SOBRE A PALAVRA DORMIR
Gostava de te olhar a dormir
mesmo que isso nunca aconteça.
Gostava de te olhar,
a dormir. Gostava de dormir
contigo, entrar
no teu sono, sentir seu fluxo suave e nebuloso
a deslizar sobre a minha cabeça
e caminhar contigo nessa floresta luminosa
ondulante de folhas fluorescentes
com um sol aquoso e três luas
até à caverna onde terás que descer,
em direção ao teu pior medo
Gostava de te oferecer o ramal de prata,
a pequenina flor branca,
aquela palavra que te protegerá
da dor a meio
do teu sonho, do desgosto central.
Gostava de te acompanhar
até ao cimo da longa escadaria
mais uma vez e de ser
o barco para te transportar de volta
com cuidado, uma chama
entre duas mãos em concha
onde o teu corpo se deita
ao lado do meu, e tal como nele entras
com a facilidade com que se respira
Gostava de ser o ar
que te habita durante um breve momento.
Gostava de ser tão imperceptível
e tão necessária.
CIRANDA
Estar contigo
aqui neste quarto
é como tatear um espelho
onde o vidro derreteu
até a consistência
de gelatina
tu recusas ser
(e eu)
um reflexo exato, mas
não te afastas do vidro,
separado.
De qualquer maneira, o certo
é que puseram
imensos espelhos aqui
(lascados, tortos)
neste quarto com a sua janela alta
e o guarda-roupa vazio; até mesmo
por trás da porta
está um.
Há gente no quarto ao lado,
discutem, abrem e fecham gavetas
(as paredes são finas)
Tu olhas para além de mim, ouves
o que dizem, talvez, ou
contemplas
o teu próprio reflexo em algum lugar
atrás da minha cabeça,
por cima do meu ombro
Voltas-te, e a cama
cede abaixo de nós, perdendo o foco
há alguém no quarto ao lado
há sempre
(o teu rosto
distante, escuta)
alguém no quarto ao lado.
HISTÓRIAS VERDADEIRAS
I
Não me peças a história verdadeira;
para que precisas tu dela?
Não é com isso que me levanto
nem o que transporto.
Aquilo com que vou navegando,
uma faca, fogo azulado,
sorte, algumas palavras boas
que ainda funcionam, e o instante.
II
A história verdadeira perdeu-se
durante o caminho para a praia, é alguma coisa
que nunca tive, esse negro emaranhado
de ramos numa luz evanescente,
as minhas pegadas apagadas
cobrem-se com sal
água, esta mão cheia
de pequenos ossos, a matança daquela coruja;
uma lua, papéis amassados, uma moeda,
o brilho de um antigo piquenique,
as covas feitas pelos amantes
na areia, cem
anos atrás: nenhuma pista.
III
A história verdadeira existe
no meio das outras histórias,
uma confusão de cores, como roupa despida
amontoada ou atirada fora,
como corações em mármore, como sílabas, como
despojos de carniceiros.
A história verdadeira é viciosa
e múltipla e falsa
afinal de contas. Para que precisas
tu dela? Não me peças nunca
a história verdadeira.
Fonte: