domingo, 16 de dezembro de 2018

Margaret Atwood (Poemas Diversos)



SOMOS DUROS UM COM O OUTRO 

I

Somos duros um com o outro
e chamamos-lhe honestidade
escolhendo as nossas verdades dentadas
com cuidado e apontando-as através 
da mesa neutra

As coisas que dizemos são
verdadeiras: é o nosso alvo 
retorcido, são as nossas escolhas 
que nos tornam criminosos.

II

Claro que as tuas mentiras 
são mais divertidas:
porque as fazes novas de cada vez

As tuas verdades, dolorosas e chatas
repetem-se continuamente
se calhar porque és dono 
de tão poucas

III

Uma verdade deveria existir
não deveria ser usada 
assim. Se eu te amo
é isso um fato ou uma arma?

O corpo mente 
ao mover-se assim, são estes 
toques, cabelos, o mármore
macio e úmido que a minha língua percorre
mentiras que me estás a dizer?

O teu corpo não é uma palavra,
nem mente 
nem fala a verdade

Apenas 
estás aqui ou não estás.

DIVAGAÇÃO SOBRE A PALAVRA DORMIR

Gostava de te olhar a dormir
mesmo que isso nunca aconteça.
Gostava de te olhar,
a dormir. Gostava de dormir
contigo, entrar
no teu sono, sentir seu fluxo suave e nebuloso
a deslizar sobre a minha cabeça

e caminhar contigo nessa floresta luminosa
ondulante de folhas fluorescentes
com um sol aquoso e três luas
até à caverna onde terás que descer,
em direção ao teu pior medo

Gostava de te oferecer o ramal de prata,
a pequenina flor branca, 
aquela palavra que te protegerá
da dor a meio
do teu sonho, do desgosto central. 
Gostava de te acompanhar
até ao cimo da longa escadaria
mais uma vez e de ser
o barco para te transportar de volta
com cuidado, uma chama
entre duas mãos em concha
onde o teu corpo se deita
ao lado do meu, e tal como nele entras
com a facilidade com que se respira

Gostava de ser o ar
que te habita  durante um breve momento. 
Gostava de ser tão imperceptível
e tão necessária.

CIRANDA

Estar contigo
aqui neste quarto

é como tatear um espelho
onde o vidro derreteu
até a consistência
de gelatina

 tu recusas ser
(e eu)
um reflexo exato, mas
não te afastas do vidro,
separado.

 De qualquer maneira, o certo
é que puseram
imensos espelhos aqui
(lascados, tortos)

neste quarto com a sua janela alta
e o guarda-roupa vazio;  até mesmo
por trás da porta
está um.

 Há gente no quarto ao lado,
discutem, abrem e fecham gavetas
(as paredes são finas)

Tu olhas para além de mim, ouves
o que dizem, talvez, ou
contemplas
o teu próprio reflexo em algum lugar

atrás da minha cabeça,
por cima do meu ombro

Voltas-te, e a cama
cede abaixo de nós, perdendo o foco

há alguém no quarto ao lado

há sempre

(o teu rosto
distante, escuta)

alguém no quarto ao lado.

HISTÓRIAS VERDADEIRAS

I

Não me peças a história verdadeira;
para que precisas tu dela?

Não é com isso que me levanto
nem o que transporto.

Aquilo com que vou navegando,
uma faca, fogo azulado,

sorte, algumas palavras boas
que ainda funcionam, e o instante.

II

A história verdadeira perdeu-se
durante o caminho para a praia, é alguma coisa

que nunca tive, esse negro emaranhado
de ramos numa luz evanescente,

as minhas pegadas apagadas
cobrem-se com sal

 água, esta mão cheia
de pequenos ossos, a matança daquela coruja;

uma lua, papéis amassados, uma moeda,
o brilho de um antigo piquenique,

as covas feitas pelos amantes
na areia, cem
 anos atrás: nenhuma pista.

III

 A história verdadeira existe
no meio das outras histórias,

uma confusão de cores, como roupa despida
amontoada ou atirada fora,

como corações em mármore, como sílabas, como
despojos de carniceiros.

A história verdadeira é viciosa
e múltipla e falsa

afinal de contas. Para que precisas
tu dela? Não me peças nunca
a história verdadeira.

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