sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Carlos Drummond de Andrade (Drink)


A poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas ainda, pela indecisão da palavra. 

Certa amiga comum nos manda lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano? Parece que é difícil encontrá-lo em casa, qual a melhor hora? As informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez, inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob a capa elegante. É alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a cabeça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde - é claro - não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão esquerda, sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro contato com o exterior. Passamos à ofensiva:

- Que é isso que você tem aí?

- Isso quê?…

- O livro.

- Nada, não. É um livro.

- Deixe ver, se não é segredo de Estado.

Não era, mas o inimigo contemporiza: “Daqui a pouquinho”. O leitor, que
acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta; com o nosso
relativo conhecimento da alma literária, diremos que ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado, comentado sem amor. Por isso a moça nos sondava antes de praticar a doação.

Acabou admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e, conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e ouvimos o conto:

- Levei um exemplar ao Barata, colunista da Folha.

- Então?

- Me convidou para um drink.

- Que mal tem nisso, minha filha?

- Bom… Nem olhou para o livro, olhou só para mim, entende?

Entendíamos. Mas o Barata - ponderamos - não é propriamente crítico literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma big diferença entre reviewer e crítico.

- Pois sim, o Lessa é crítico e também me convidou para um drink. Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor, antes de ler?

Não soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os drinks lhe flagelam o fígado. Ela sorriu.

- Eu adoro um alexânder ou uma cuba-libre. Mas pensei que não fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.

Tranquilizamo-la a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não frequentamos bares, não a convidaríamos para drincar. Parece que a assustou um pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem dedicatória.

- Não vai escrever nada?

- Que gostaria que eu escrevesse?

- Ah, isso você não era capaz de escrever.

Queria oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de outro jeito: queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar um drink.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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