sábado, 22 de dezembro de 2018

Herman Hesse (O Jovem Apaixonado: Uma Lenda)


Esta história aconteceu no tempo de Santo Hilário. Na terra natal deste santo, em Gaza, vivia um casal humilde e crente, a quem o Senhor abençoara com uma linda e esperta menina. Para alegria de todos, a menina cresceu em recato, modéstia e temor a Deus, guiada pelos pais para a prática do Bem. Tanta pudicícia e suavidade de modos eram comparáveis às de um anjo do Senhor. Os cabelos escuros e sedosos esvoaçando em torno dos ombros, os olhos modestamente baixos, que longas pestanas sombreavam, caminhava ela sob as palmeiras com movimentos graciosos, esbelta e leve como uma gazela. Não tinha olhos para homem algum, pois aos catorze anos de idade, após grave doença, foi prometida por seus pais, no caso de salvar-se, como noiva de Deus. E Deus aceitara a oferenda.

Foi por essa moça pura que um jovem da mesma terra se apaixonou. Também ele era formoso e  esbelto, filho de pais abastados que o haviam criado e educado com esmero. Mas desde que se apaixonara pela linda donzela não pensava em outra coisa senão buscar oportunidades para vê-la e dirigir-lhe olhares ansiosos. Mas nos dias em que não lograva encontrá-la ficava triste e pálido, recusando alimentos e passando horas a fio entre suspiros e lamentos.

O jovem recebera uma boa educação cristã, era de índole delicada e religiosa, mas essa paixão avassaladora tornara-se dona absoluta de sua alma. Já não conseguia rezar e, em vez de elevar o pensamento para as coisas santas, recordava apenas, obsessivamente, os longos cabelos pretos da donzela, seus belos e tranquilos olhos pestanudos, a cor e os contornos delicados de seu rosto e lábios, o alvo e fino colo, os pequenos e ágeis pés. Temia, porém, comunicar seu grande amor, pois bem sabia que ela não tencionava aceitar homem algum e pretendia devotar seu amor somente aos pais e a Deus.

Por fim, consumindo-se de desejo dirigiu-lhe extensa e fervorosa carta, na qual falava de seu grande amor e lhe implorava encarecidamente que o aceitasse para que, num futuro não muito distante, pudessem gozar uma vida conjugai feliz e abençoada por Deus. Perfumara essa missiva com finos pós da Pérsia, enrolara-a com um cordão de seda e ordenara que a entregassem à donzela, em segredo, por intermédio de uma velha criada.

Quando ela leu a carta, seu rosto fez-se escarlate, como se tivesse sofrido um ataque de rubéola. Em sua confusão inicial, inclinara-se a rasgar a carta ou mostrá-la imediatamente à mãe. Não o fez, porém, não só por conhecer o jovem desde criança e gostar dele mas também por notar que suas palavras eram repassadas de delicadeza e bondade. Decidiu então devolver a carta à velha, com as seguintes palavras:

— Devolve esta carta àquele que a escreveu e diz-lhe que nunca mais me dirija semelhantes palavras. Diz-lhe também que fui prometida a Deus por meus pais, não podendo jamais dar minha mão a um homem, e que devo e quero permanecer em meu estado virginal para servir e honrar a Deus, cujo amor é infinitamente superior e mais valioso do que qualquer afeto humano. E diz-lhe ainda que, enquanto eu não encontrar alguém cujo amor seja superior e mais valioso do que o amor a Deus, permanecerei fiel aos meus votos de castidade. A ele, porém, que escreveu esta carta, desejo que viva na paz do Senhor. E agora vai, e faz-lhe saber que nunca mais aceitarei mensagem alguma.

A criada, surpreendida por tanta firmeza, voltou a seu amo com a carta e lhe pôs a par de tudo o que a donzela lhe dissera. Apesar das palavras de consolo da velha, o moço apaixonado entregou-se a ruidosas lamentações, rasgando as roupas e espalhando cinza e terra sobre a cabeça. Não se atrevia mais a procurar a donzela, em seus passeios, limitando-se a segui-la com olhares à distância. À noite, em sua alcova, não conciliava o sono, murmurava o nome da amada e dirigia-lhe milhares de carinhosas e doces palavras, chamando-a de sua luz, sua estrela, sua gazela, sua palmeira, sua pérola e seu consolo... e quando despertava de tais fantasias, e via-se só em sua alcova, tinha acessos de raiva, maldizia o nome de Deus, rangia os dentes e batia com a cabeça nas paredes.

Por causa dessa paixão terrena, o temor a Deus toldara-se e acabara por se extinguir de seu coração, onde apenas o demônio tinha agora acesso, dominando o jovem ao sabor de seus desígnios tenebrosos. Foi assim que, certo dia, o tresloucado rapaz jurou que possuiria a donzela, nem que para tanto tivesse que recorrer à força. Viajou para Mênfis e ingressou na escola do sacerdote pagão Asclépio, tomando com ele lições de feitiçaria. Dedicou-se com afinco, durante um ano, a tais estudos e voltou em seguida a Gaza.

Começou então a gravar signos mágicos e palavras de sortilégio em placas de cobre com infalíveis poderes de feitiço. Durante a noite, ia furtivamente colocar essas placas sob a soleira da porta onde morava a donzela. Já no dia seguinte à aparição da primeira placa a donzela parecia mudada: seu recatado olhar cabisbaixo tornou-se mais franco, mais animado; soltou os cabelos, deixando-os ondear ao vento; desleixou as orações e serviços religiosos; e ouviram-na cantar uma serenata de amor que ninguém lhe ensinara. Esta conduta tornava-se mais escandalosa com o passar dos dias, e de noite, remexia-se nas almofadas do leito, gritando o nome do jovem, chamando-o de seu bem-amado e confessando desejos carnais.

Essa mudança na donzela enfeitiçada não podia, evidentemente, passar despercebida a seus pais. Cientes de tão estranhos modos e palavras, ficaram vigilantes, espiavam-na discretamente e tanto se apavoraram com o que ouviram uma noite que o indignado pai logo quis expulsar de casa a depravada filha. A mãe, contudo, implorou paciência; era preciso examinar bem o caso e reconhecer que a filha fora levada a tão estranho comportamento certamente por algum feitiço.

Como a donzela continuasse possessa, proferindo até blasfêmias e gritando cm altas vozes que desejava seu amado, lembraram-se os pais de um santo eremita, Hilário, que vivia há longos anos fora da cidade, em pleno deserto, e tão perto de Deus que todas suas preces eram ouvidas. Curara tantos enfermos e exorcizara tantos demônios que bem podia ser tido na conta — ao lado de Santo Antônio — do mais poderoso agente de Deus daqueles recuados tempos. 

A donzela foi então  levada por seus pais a Hilário, a quem contaram tudo o que estava acontecendo e imploraram ajuda. Hilário acercou-se da donzela e assim falou:

— Quem fez de ti , serva de Deus, um receptáculo de maus desejos?

A moça, encarando aquele que tinha o corpo esquálido e a pele queimada, começou ridicularizando-o, chamando-o de espantalho sarnento e entoando em voz dolente:

— Vede minha pele branca e macia, meu corpo liso, meus apetitosos seios!

Aterrorizados, os pais caíram de joelhos e esconderam a cabeça entre as mãos, tomados de vergonha. Mas Hilário sorriu, e reconhecendo o Diabo que se apossara da donzela, fustigou-o tanto que, sentindo-se acossado por uma força superior à sua, acabou dizendo seu nome e confessando todas as suas artimanhas. O santo expulsou violentamente o demônio, que opunha a maior resistência na alma da donzela, e esta acabou tombando sem sentidos. Quando acordou, como de um sono febril, reconheceu e saudou os pais, que choravam, pediu a Hilário sua bênção e, dessa hora em diante, voltou a ser a boa serva de Deus.

Entrementes, o jovem esperava que os feitiços de amor fizessem efeito na donzela e a levassem a seus braços ávidos. Passava os dias acalentando essa esperança, certo de um desfecho propicio, ao mesmo tempo ern que a donzela, depois das provações acima narradas, reencontrava o caminho da virtude e, curada, voltava à cidade. O jovem, ao passar por uma rua, viu-a surgir ao longe e encaminhar-se na sua direção. Quando já estavam perto um do outro, ele viu que no rosto da donzela refulgia a antiga pureza e que toda ela irradiava uma beleza tranquila, como se tivesse acabado de descer do Paraíso. Surpreendido, o jovem estacou e, envergonhado de sua malfeitoria, teve um súbito impulso de afastar-se. Mas dominou-se e, como ela se acercasse bastante, presumiu que o feitiço tivera algum efeito. Chegou perto da donzela e, tomando-lhe as mãos, disse:

— É certo, pois, que me tendes amor?

A donzela, sem enrubescer, ergueu os olhos para que ele pudesse contemplá-los como se contempla uma estrela pura e distante. Uma indescritível bondade resplandecia em seu rosto suave. Reteve entre as suas mãos a mão do jovem e respondeu:

— Sim, meu irmão, eu vos amo. Amo a vossa pobre alma e vos rogo que a liberteis do Mal. Entregai-a a Deus para que readquira a pureza e a formosura de outrora.

Uma mão invisível tocou o coração do jovem. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele exclamou:

— Ah, devo então renunciar ao vosso amor para sempre? Pois ordenai-me que o faça. Quero unicamente fazer aquilo que for de vosso agrado.

Ela sorriu como um anjo e disse:

— Não deveis renunciar a mim para sempre. Chegará o dia em que todos estaremos irmanados diante do trono de Deus. Tratemos pois de proceder de modo a que possamos olhá-lo sem temor e passar em Seu Juízo. Quero ser vossa amiga. Será por pouco tempo que vivereis separado de mim.

Soltou lentamente suas mãos e, sorrindo, prosseguiu em seu caminho. O jovem ficou imóvel, como que fascinado. Depois dirigiu-se para casa, fechou-a e foi para o deserto servir a Deus. Sua formosura dissipou-se, emagreceu, a pele escureceu; dividia seu tugúrio com os animais do campo. Quando se sentia exausto e dúvidas o assaltavam, seu único consolo era repetir centenas de vezes as palavras da donzela: "Será por pouco tempo..."

Embora o tempo se alongasse, os cabelos encanecessem e ele ficasse neste mundo até à idade de oitenta anos, o eremita pensava: Que são oitenta anos? Os anos vêm e morrem como se tivessem as asas de um pássaro. A Eternidade me espera, após este voo breve pelo mundo. 

Desde os recuados tempos em que viveu esse jovem, muitas centenas de anos já transcorreram e com que rapidez serão também esquecidos os nossos atos e os nossos nomes, e não ficará outro vestígio de nossa vida senão, talvez, uma pequena e incerta lenda...

Fonte:
Herman Hesse. O Livro das Fábulas. 

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