quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Luís Vaz de Camões (Sonetos Comentados)


001

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
________________________

Camões fala da matéria prima de sua poesia - o Amor - e alerta que, para ser entendido, é necessário que se partilhe o mesmo sentimento
_____________________________________________

002

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo:-Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
__________________________

Soneto narrativo de influência petrarquiana. O amor de Jacó por Raquel transcende a tudo e simboliza a fidelidade e a constância, fazendo com que o pastor viva para e pelo amor, embora a possibilidade de concretiza-lo seja remota. O amor é idealizado, perfeito. Inspirado no personagem bíblico do Gênesis.
_________________________________________

003

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
__________________________

Mudanças são contínuas. O interessante neste soneto é o jogo de imagens sucessivas que em si mesmas expressam a movimentação dos acontecimentos,
pontos de reflexão do autor. Percebe-se que o ritmo vai acompanhando a estrutura do soneto até o final inesperado, quando é revelada uma mudança da própria mudança.
___________________________________________

004

Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,
num'hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ü'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
_________________________

Soneto em que Camões compõe o retrato feminino ideal. Pouco descritivo, no sentido físico, encerra aspectos psicológicos do ente amado - "morrer de olhos", "riso brando", "despejo quieto"... A força paradoxal dessa mulher aparentemente tão revoltada e frágil por aprisioná-lo.
_______________________________________

005

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
_____________________________
Inspirado em Petrarca, de quem toma o último trecho, estes versos trazem um dos temas mais trabalhados por Camões: a importância do engenho e da arte para cantar plenamente as diferentes faces do amor, materializado na beleza inatingível ("de vosso gesto / A composição alta e milagrosa") da mulher que o desprezara.
___________________________________________

006

Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.
_______________________________

Soneto descritivo em que o poeta oscila entre o ato de ser a natureza e o de ser visto por ela. Neste jogo, existe a troca de sensações que vão de benfazeja alegria, oferecida pela natureza ao poeta, a profunda amargura, causada pelo "mal" (saudade do amor perdido) que o entristece.
___________________________________________

Fonte:
Luís de Camões. Lírica de Camões: melhores poesias. Notas de Célia A. N. Passoni.  
2.ed. São Paulo: Núcleo, 1997.

Nenhum comentário: