sábado, 22 de dezembro de 2018

Euclides da Cunha (Poemas Escolhidos) III



A CRUZ DA ESTRADA
A meu amigo E. Jary Monteiro

Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado — pálido, dolente,
Em procura de Deus — da fé ardente
Em meio das soidões...

Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante,
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor...

Se sondares da selva e entranha fria
Aonde dos cipós na relva extensa
Noss'alma embala a crença.

Se nos sertões vagares algum dia...
Companheiro! Hás de vê-la.
Hás de sentir a dor que ela derrama
Tendo um mistério, aos pés, de um negro drama,
Tendo na fronte o raio de uma estrela!...

Que vezes a encontrei!... Medrando calma
A Deus, entre os espaços
No desgraçado, ali tombado, a alma
Que tirita, quem sabe? Entre os seus braços.

Se a onça vê, lhe oculta a asp'ra, ferrenha
Garra, estremece, pára, fita-a, roja-se,
Recua trêmula, e fascinada arroja-se,
Entre as sombras da brenha!...

E a noite, a treva, quando aos céus ascende
E acorda lá a luz,
Sobre os seus braços frios, frios, nus,
— Tecido de astros em brial estende...

Nos gélidos lugares
Em que ela se ergue, nunca o raio estala,
Nem pragueja o tufão... Hás de encontrá-la
Se acaso um dia nos sertões vagares...

A FLOR DO CÁRCERE 

Nascera ali — no limo viridente
Dos muros da prisão — como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola —
Aquela flor imaculada e olente...

E 'ele' que fora um bruto, e vil descrente,
Quanta vez, numa prece, ungido, cola
O lábio seco, na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!...

E — ele — que sofre e para a dor existe —
Quantas vezes no peito o pranto estanca!...
Quantas vezes na veia a febre acalma,

Fitando aquela flor tão pura e triste!...
— Aquela estrela perfumada e branca,
Que cintila na noite de sua alma...

AMOR ALGÉBRICO 
(Título anterior: "Álgebra lírica")

Acabo de estudar — da ciência fria e vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz — sem aura, sem manhã,
A Álgebra criou — a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pálido, cansado,
Dumas dez equações os véus hei arrancado,
Estou cheio de 'spleen', cheio de tédio e giz.

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar do seu olhar o luminoso X

SONETO
Dedicado a Anna da Cunha

"Ontem, quanto, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão, louca, suprema,
E no teu lábio, essa rosa da algema,
A minha vida, gélida prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
— Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...

Hoje, que vives desse amor ansioso
E és minha, só minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste, sendo tão ditoso!

E tremo e choro, pressentindo, forte
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida, que é a morte..."

D. QUIXOTE

Assim à aldeia volta o da "triste figura"
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcabouço dobrado — um grande desalento,
No entristecido olhar — uns laivos de loucura...

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.

Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;

Porque há coisa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões — e não se ficar louco!

Fonte:
Euclides da Cunha. Onda e outros poemas esparsos. RJ, 1883.

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