terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Guy de Maupassant (O Colar de diamantes)


Era uma dessas moças lindas e encantadoras, nascidas, como por um erro do destino, numa família de funcionários. Não tinha dote nem esperanças, nenhum meio de ser conhecida, compreendida, amada, desposada por um homem rico e distinto; e deixou que a casassem com um amanuense do Ministério da Instrução Pública.

Ela foi singela e modesta, já que não podia entregar-se ao luxo, mas infeliz como uma desclassificada; pois as mulheres não têm casta nem raça, e a sua beleza, a sua graça e o seu encanto é que lhes servem de nascimento e de família. A delicadeza nata, o instinto da elegância, a finura de espírito são a sua única hierarquia, e fazem das filhas do povo rivais das mais altas damas.

Sentindo-se nascida para todas as delicadezas e para todos os luxos, ela sofria continuamente. Sofria com a pobreza da sua casa, a miséria das paredes, com as cadeiras puídas, os estofados de mau gosto. Todas essas coisas, que qualquer outra mulher da sua casta nem mesmo teria notado, a torturavam e indignavam. Avista da pequena bretã que a servia despertava nela profundos pesares e sonhos sem fim. Ela pensava nas antecâmaras silenciosas, forradas de panos orientais, iluminadas por altos candelabros de bronze, e nos dois grandes lacaios de calções curtos que cochilam nas vastas poltronas, com o calor pesado do aquecedor. Pensava nos grandes salões revestidos de seda antiga, nos móveis finos carregados de bibelôs inestimáveis, e nos graciosos salõezinhos perfumados, feitos para a conversa das cinco horas com os amigos mais íntimos, os homens conhecidos e cortejados, cuja atenção todas as mulheres invejam e desejam. Quando, na hora do jantar, sentava-se à mesa redonda coberta de uma toalha de três dias, defronte ao marido que destapava a terrina, declarando com um ar encantado: "Ah! Que lindo cozido! Não há nada melhor que isto...", ela pensava nos jantares finos, na prataria brilhante, nas tapeçarias a povoarem os muros de personagens antigos e de pássaros estranhos em meio a uma floresta de magia; pensava nos pratos esquisitos, servidos em maravilhosas baixelas, nas galanterias ditas num sussurro e escutadas com um sorriso de esfinge, enquanto mordiscava a carne rósea de uma truta ou uma asa de frango.

Não tinha toaletes, nem jóias, nada. E só gostava disso, sentia-se feita para isso. E gostaria tanto de agradar, de ser invejada, sedutora, assediada!

Tinha uma amiga rica, uma colega do colégio, que não queria mais visitar, tanto isto a fazia sofrer. Pois na volta ela chorava durante dias inteiros, de desgosto, de pensar, de desespero e desolação.

Ora, uma tarde o marido chegou com um ar triunfante, trazendo na mão um grande envelope.

— Olhe — disse ele —, eu trouxe uma coisa para você. 

Ela rasgou vivamente o papel e retirou um cartão impresso com os seguintes dizeres:

O ministro da Instrução Pública e Mme. Georges Ramponneau têm a honra de convidar M. e Mme. Loisel para o sarau que se realizará no Palácio do Ministério, no dia 18 de janeiro, segunda-feira.

Em vez de ficar radiante, como esperava o marido, ela atirou com despeito o convite em cima da mesa, murmurando:

— Que quer que eu faça com isso?

— Mas, minha querida, pensei que você ficaria-contente. Você nunca sai, nunca aparece. E esta é uma belíssima ocasião. Não imagina o trabalho que eu tive para conseguir esse convite. Todos querem; é muito procurado; e há muito poucos para distribuir aos funcionários. Você verá lá todo o mundo oficial.

Ela o analisava com um olhar irritado e declarou com impaciência:

— Mas o que você quer que eu vista para ir? 

Ele não tinha pensado nisso, e balbuciou:

— O vestido com que vai ao teatro... Ele me parece muito bem...

Calou-se, estupefato, desorientado, vendo que sua mulher chorava. Duas grossas lágrimas desciam, lentamente, do canto dos olhos para o canto dos lábios; ele gaguejou:

— O que você tem? O que você tem?

Mas, num violento esforço, ela se dominara e respondeu com uma voz calma, enxugando as faces úmidas:

— Nada. Somente que eu não tenho toalete e por conseguinte não posso ir a essa festa. Dê o convite a qualquer colega cuja mulher possa vestir-se melhor do que eu.

Ele estava desolado. Falou-lhe:

— Vejamos, Mathilde. Quanto custaria uma toalete conveniente, que ainda pudesse servir em outras ocasiões, alguma coisa bastante simples?

Ela refletiu alguns segundos, fazendo suas contas e pensando também na soma que poderia pedir sem provocar uma recusa imediata e uma exclamação de horror do econômico amanuense. Enfim, ela respondeu, com hesitação:

— Não sei ao certo, mas me parece que com uns quatrocentos francos eu poderia arranjar a coisa.

Ele empalidecera um pouco, pois tinha reservado justamente aquela soma para comprar um fuzil e fazer caçadas com alguns amigos, aos domingos, no próximo verão, em Nanterre. Mas disse:

— Está bem. Eu te dou quatrocentos francos. Mas trate de arranjar um belo vestido.

Aproximava-se o dia da festa, e Mme. Loisel parecia triste, inquieta, ansiosa. Contudo, seu vestido estava pronto. O seu marido lhe disse uma noite:

— O que você tem? Há três dias que anda com um jeito esquisito.

E ela respondeu:

— Aborrece-me não ter uma joia, uma pedra, nada para pôr.

Assim, continuarei com um aspecto de miséria. Eu até preferia não ir a essa festa. Ele insistiu:

— Ponha flores naturais. É muito chique nesta estação. Por dez francos, terá duas ou três rosas magníficas.

Ela não estava convencida.

— Não... não há nada mais humilhante do que ter um ar de pobre em meio de mulheres ricas.

Mas o marido exclamou:

— Como você é tola! Vá procurar sua amiga Mme. Forestier e peça-lhe uma joia emprestada. Tem bastante intimidade com ela para isso.

Ela lançou um grito de alegria:

— É verdade. Eu não tinha pensado em tal coisa.

No dia seguinte ela foi à casa da amiga e lhe expôs sua situação. Mme. Forestier foi ao seu armário de espelho, pegou um grande cofre, trouxe-o, abriu-o, e disse a Mme. Loisel:

— Escolha, minha querida.

Ela examinou uns braceletes, depois um colar de pérolas depois uma cruz veneziana, ouro e pedrarias, de um admirável valor. Experimentava as jóias diante do espelho, hesitava, não podia decidir-se a deixá-las, a devolvê-las. Perguntava sempre:

— Não tem mais outra coisa?

— Claro. Procure. Eu não sei o que pode agradá-la. De repente ela descobriu, num estojo de cetim negro, um soberbo colar de diamantes; e o seu coração pôs-se a bater num imoderado desejo. Suas mãos tremiam ao segurá-lo. Ela o atou por cima do peitilho, e ficou em êxtase diante de si mesma.

Depois perguntou, hesitante, cheia de angústia:

— Pode emprestar-me este, somente este?

— Como não? Está às ordens.

Ela saltou no pescoço de sua amiga, beijou-a com frenesi, depois fugiu com o seu tesouro.

Chegou o dia da festa. Mme. Loisel obteve um verdadeiro sucesso. Ela era a mais linda de todas, elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria.Todos os homens a olhavam, perguntavam seu nome, procuravam ser apresentados. Todos os adidos do gabinete queriam dançar com ela. O ministro notou-a. 

Ela dançava com embriaguez, com êxtase, arrebatada pelo prazer, sem pensar em mais nada, na apoteose da sua beleza, na glória do seu sucesso, em uma espécie de nuvem de felicidade, feita de todas aquelas homenagens, de todas aquelas admirações, de todos aqueles desejos despertados, daquela vitória completa e tão grata ao coração das mulheres. 

Ela partiu pelas quatro da manhã. Seu marido, desde a meia-noite, dormia numa saleta deserta com três outros senhores cujas mulheres se divertiam muito. Ele lançou-lhe sobre os ombros os abrigos que trouxera para a saída, modestos abrigos da vida ordinária, cuja pobreza contrastava com a elegância do vestido de baile. Ela o percebeu e quis fugir, para não ser notada pelas outras mulheres, que se envolviam em luxuosos casacões.

Loisel a segurava:

— Espere. Vai se resfriar assim. Eu vou chamar um fiacre.

Ela, porém, não escutava e descia rapidamente a escadaria. Quando chegaram à rua, não encontraram carro; e puseram-se em busca de um, chamando os cocheiros que viam passar ao longe.

Desciam ambos na direção do Sena, desesperados, tiritantes. Enfim, acharam no cais um desses velhos cupês, noctâmbulos, que só aparecem em Paris ao cair da noite, como se ficassem envergonhados da sua miséria durante o dia.

Ele os levou até sua porta, na rua dos Mártires, e os dois subiram tristemente para os aposentos. Estava acabado para ela. E ele pensava que seria preciso estar no Ministério às dez horas. Ela tirou o abrigo que pusera nos ombros diante do espelho, a fim de verse uma vez mais em toda sua glória. Mas de súbito soltou um grito. O colar não estava mais no seu pescoço.

O marido, já meio despido, perguntou:

— O que você tem?

Ela voltou-se, louca de medo:

— Eu... eu... eu não tenho mais o colar de Mme. Forestier.

Ele ergueu-se desvairado:

— Quê!... Como!... Não é possível!

E procuraram nas pregas do vestido, nas dobras do casacão, nos bolsos, por toda parte. Ele perguntava:

— Tem certeza de que ainda o tinha ao deixar o baile?

— Sim, eu toquei nele no vestíbulo do Ministério.

— Mas se o houvesse perdido na rua, nós o teríamos ouvido cair. Deve estar no fiacre.

— Sim. É provável. Guardou o número?

— Não. E você, não reparou?

— Não.

Eles se contemplavam aterrados. Enfim Loisel tornou a vestir-se.

— Eu vou — disse ele — refazer todo o trajeto que fizemos, a pé, para ver se o encontro.

E ele saiu. Ela ficou de vestido de baile, sem forças para deitar-se, atirada numa cadeira, sem ânimo, sem um pensamento. O marido voltou pelas sete horas. Nada havia encontrado. Ele foi à chefatura de polícia, aos jornais, para prometer uma recompensa, às pequenas companhias de transportes, a toda parte, enfim, aonde uma suspeita de esperança o levava.

Ela esperou todo o dia, no mesmo estado de terror ante aquele medonho desastre. Loisel voltou à noite, desfigurado, pálido, nada descobrira.

— É preciso — disse ele — escrever à sua amiga, contando-lhe que você quebrou o fecho do colar e que mandou consertá-lo. Isto nos fará ganhar tempo.

E ele ditou-lhe a carta.

Ao fim de uma semana, toda esperança estava perdida. E Loisel, envelhecido cinco anos, declarou:

— É preciso substituir o colar.

Tomaram no dia seguinte o estojo que o encerrara, e foram ao joalheiro cujo nome se achava impresso no seu forro. Ele consultou seus livros:

— Não fui eu, madame, quem vendeu o colar. Devo ter fornecido apenas o estojo.

Então foram de joalheiro em joalheiro, procurando um colar igual ao outro, consultando a sua memória, ambos doentes de pena e de angústia. Acharam, numa loja do Palais Royal, um colar de diamantes que lhes pareceu corresponder exatamente ao que procuravam. Custava quarenta mil francos. Mas o deixariam por trinta e seis mil. Pediram então ao joalheiro que não o vendesse antes de três dias. E ficou combinado que o devolveriam por trinta e quatro mil francos, se o primeiro fosse encontrado antes do fim de fevereiro.

Loisel possuía dezoito mil francos, que seu pai lhe havia deixado. Pedira emprestado o resto. Conseguiu mil francos com um, quinhentos com outro, cinco luíses aqui, três luíses acolá. Assinou promissórias, assumiu compromissos ruinosos, houve-se com usurários, com toda casta de agiotas. Comprometeu todo o fim da sua existência, arriscou sua assinatura sem saber se poderia garanti-la, e atemorizado com as angústias do futuro, com a miséria negra que ia abater-se sobre ele, com a perspectiva de todas as privações físicas e de todas as torturas morais, ele foi buscar o colar novo, pousando sobre o balcão do negociante os trinta e seis mil francos.

Quando Mme. Loisel levou o colar a Mme. Forestier, esta disse, com um ar irritado:

— Você deveria tê-lo trazido mais cedo, pois eu poderia precisar dele.

Ela não abriu o estojo, o que mais temia sua amiga. Se ela notasse a substituição, o que não pensaria? O que não diria? Não a teria tomado por uma ladra?

Mme. Loisel conheceu a vida horrível dos necessitados. Ela tomou seu partido, aliás, sem hesitações, heroicamente. Era preciso pagar aquela dívida terrível. Ela pagaria. Despediram a criadinha, mudaram de casa, alugaram uma água-furtada.

Ela conheceu os trabalhos grosseiros da casa, as odiosas tarefas da cozinha. Lavou os pratos, estragou as unhas róseas na louça gordurenta e no fundo das caçarolas. Ela ensaboou a roupa suja, as camisas e os esfregões, que fazia secar numa corda; manhã após manhã, carregou o lixo para a rua e a água para dentro, parando a cada andar para tomar fôlego. E, vestida como uma mulher do povo, foi ao mercadinho, ao vendeiro, ao açougueiro, regateando e recebendo injúrias, defendendo cobre a cobre o seu miserável dinheiro.

Era preciso cada mês pagar letras, renovar outras, conseguir prazo. O marido fazia à tardinha a escrita de um comerciante e, de noite, muitas vezes, fazia cópia a cinco sous a página. E esta vida durou dez anos.

Ao fim de dez anos, haviam restituído tudo, tudo, com a taxa do ágio e o acúmulo dos juros superpostos.

Mme. Loisel parecia velha agora. Tornara-se a mulher forte, rija e rude, dos lares pobres. Mal penteada, com as saias de viés e as mãos vermelhas, ela falava alto, lavava os soalhos. Mas às vezes, quando seu marido estava na repartição, ela sentava-se junto à janela e pensava naquela festa de outrora, naquele baile em que fora tão bela e tão festejada.

Que teria acontecido, se não houvesse perdido aquele colar? Quem sabe? Quem sabe? Como a vida é estranha, mutável! Basta um quase nada, para nos perder ou para nos salvar!

Ora, um domingo, ao dar uma volta pelos Campos Elíseos, para descansar dos trabalhos da semana, ela avistou de repente uma mulher que passeava com um menino. Era Mme. Forestier, sempre jovem, sempre bela, sempre sedutora. Mme. Loisel sentiu-se comovida. Deveria falar-lhe? E, agora que já havia pago, lhe contaria tudo. Por que não?

Aproximou-se.

— Bom-dia, Jeanne.

A outra não a reconhecia, espantando-se por ser chamada de modo tão familiar por aquela mulher do povo. Ela balbuciou:

— Mas... madame!... Eu não compreendo... Deve estar enganada.

— Não. Eu sou Mathilde Loisel. 

A amiga soltou um grito:

— Oh!... minha pobre Mathilde, como estás mudada!...

— Sim, eu tenho atravessado dias bastante duros, desde que a vi pela última vez; e muita miséria... e tudo isto por sua causa!...

— Por minha causa! Como assim?

— Não se lembra daquele colar de diamantes que me emprestou para a festa do Ministério?

— Sim. E daí?

— Pois bem, eu o perdi.

— Mas como? Se o devolveu.

— Eu devolvi um outro igual. E levamos dez anos para pagá-lo. Bem compreende que não era muito fácil para nós, que não tínhamos nada... Enfim, acabou-se, e eu sinto-me contente, afinal.

Mme, Forestier estacou, de súbito.

— Está me dizendo que comprou um colar de diamantes para substituir o meu?

— Sim. Não notou nada, hein? Eles eram idênticos. – E ela sorria com uma alegria orgulhosa e ingênua. Mme. Forestier, muito comovida, lhe tomou as duas mãos.

— Oh! minha pobre Mathilde! M as o meu colar era falso. Valia quando muito uns quinhentos francos!…

Fonte:
Guy de Maupassant. Bola de sebo e outros contos. Rio de Janeiro/RJ: Globo, 1987.

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