sábado, 15 de dezembro de 2018

Mário Quintana Em Prosa e Verso 2


DATA E DEDICATÓRIA

Teus poemas, não os dates nunca... Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas,
Não os date, porém:
As almas não entendem disso…

NOTURNO

Apenas, aqui e ali, uma janelinha de arranha-céu... Perdida... Enquanto, do fundo do único terreno baldio, um grilo insiste em transmitir, na sua frágil Morse de vidro, não se sabe que misteriosa mensagem às estrelas ausentes.

INTERIOR

As persianas, entrefechadas, deixam passar uma réstia de sol, onde zumbe uma mosca. Silêncio.

Somente, na última prateleira, há um velho boião que diz: " Viva Dom Pedro Segundo!" - única nota exclamativa neste silêncio tecido (e não interrompido) pelo zumzum da mosca em seu vaivém. Tudo é definitivo, tudo é tão agora que até o relógio, o velho bruxo, está parado.

CAMINHO DA FONTE

A linha casimiriana da poesia brasileira começou antes, em Tomás Antônio Gonzaga. É um regato límpido, por vezes interrompido aparentemente, mas que reponta sempre, quando tudo parecia perdido

QUANDO ME PERGUNTAM

Quando me perguntam por que não aderi a essa história de "estória", respondo (e não evasivamente) que é simplesmente porque, para mim, tudo é verdade mesmo. Acredito em tudo. Acreditar no que se lê é a única justificativa do que está escrito. Ai do autor que não der essa impressão de verdade! Que é uma história? É um fato - real ou imaginário - narrado por alguém. O contador de histórias não é um contador de lorotas. Ou, para bem frisar a diferença, o contador de histórias não é um contador de estórias. E depois, por que hei de escrever "estória" se eu nunca pronunciei a palavra desse modo? Não sou tão analfabeto assim. Parece incrível que talvez a única sugestão infeliz do mestre João Ribeiro tenha pegado por isso mesmo... Também um dia parece que Eça de Queirós se distraiu e o Conselheiro Acácio, por vingança, lhe soprou esta frase pomposa: "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia". Tanto bastou para que lhe erguessem um monumento, com a citada frase perpetuada em bronze! Pobre Eça...

O mundo é assim.

LIMITES DA CONVERSAÇÃO

Há certas coisas que não haveria mesmo ocasião de as colocarmos sensatamente numa conversa - e que só num poema estão no seu lugar. Deve ser por esse motivo que alguns de nós começaram, um dia, a fazer versos. Um modo muito curioso de falar sozinho, como se vê, mas o único modo de certas coisas caírem no ouvido certo.

Fonte:
Mário Quintana. Caderno H. Porto Alegre/RS: Globo, 1973.

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