quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Júlio Brandão (Lenda de Natal)

Certo homem, já velho, viu chegar o Natal, e pôs-se a pensar na melancolia, no desamparo da sua vida. Dos filhos, uns tinham-lhe morrido, outros tinham-no abandonado... Estava só no mundo, com os pés para a cova, e cheio de desilusões, de ingratidões e de pobreza. Entretanto não havia ambições vis nem rancores no seu coração. Tinha saudades. Por esse lento caminho da vida, hoje ermo de afetos, algumas consolações tivera a sua alma.

Recordava-se, às vezes com os olhos orvalhados, postos no horizonte esfumado do dia triste. Agora era um farrapo, que tinham de levar os redemoinhos da morte. À noite (era a nostálgica noite de Consoada) sentiu duas longas lágrimas a molharem-lhe o rosto. Ele mesmo foi fazer um caldo para a ceia. Os piornos ardiam na lareira do casebre esburacado. O velho encolheu-se ao lume, com os olhos fixos na labareda avermelhada.

Todos estavam, àquela hora, nos lares amorosos. Ele lembrava-se do riso das crianças, desse amoroso e cândido florir de venturas; avivava-se-lhe o passado, claro e benéfico, cuja árvore do Natal era cheia de estrelas, cantada de esperanças, e agora, há quantos anos, um negro e frio cipreste! Para ali estava, sem uma fala amiga, sem um rosto amado, ouvindo a ventania nos soutos (bosques). E pensava que era como esses troncos velhos e partidos, por cima dos quais o enxurro (enxurrada) espumava, e onde nunca mais nasceria flor, ou cantaria ave...

Fez um exame de consciência: fora bom, fora simples. A mulher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha fugira-lhe para a mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era uma santa, e o mundo era ruim... Mais tarde, já trôpego, dois filhos roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava! Fora numa noite como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando ele dormia, arrombaram-lhe a arca, e levaram-lhe a meia dúzia de peças que tinha guardadas no escaninho, para algum ano sáfaro (improdutivo, agreste), de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos, dizia consigo; os filhos lho levaram... Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que ele tanto amara! Depois começou de entrevar; os braços não podiam; e onde o trabalho míngua, vai crescendo a miséria. Ficou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia uma cesta de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por lá acabara, certamente...

Estava escorraçado como um cão, pobre como Job. Apesar disso, na consciência não se apagara a claridade que sempre lha iluminara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja transparência deixa ver na areia loira a sombra de um cardume prateado. Ele sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono — com essa leveza e essa graça dos que olhando para a vida inteira não têm nunca a desviar os olhos de uma torpeza ou de uma mentira.

Curvado sobre as brasas crepitantes, o velho lançou os olhos para o banco chamuscado, que lhe ficava em frente. E de repente ficou estático. O queixo  tremia-lhe fortemente. Santo Deus! Que via ele?! Era inacreditável! A filha e a mulher, a fiarem nas suas rocas, com um sorriso tão suave, uma serenidade tão bela! Jesus, Jesus, eram elas! Que alegria a sua! O velho estremeceu, o coração bateu-lhe como quando era jovem, balbuciou:

— Ó Maria, ó Luísa, vocês vieram?!

Elas sorriram-se mais docemente, sempre a fiar nas suas rocas. E o velho, com os olhos pregados nelas, sentia as pálpebras umedecidas de uma felicidade sobre humana.

— Ó Maria, ó Luísa!...

Assim correram alguns instantes celestes. Ele olhava-as embevecido. Elas resplandeciam, como envoltas num vago luar. Nunca as vira tão lindas, com mais lindo sorriso. E como não falavam, o velho calou-se também num êxtase.

Elas continuavam a sorrir, continuavam a fiar. O vento, fora, soprava rijo nos sobros, assobiava. A noite ia passando a uivar, feia e longa; mas as horas voavam para aquele velho embelezado nas visões. As duas já tinham espiado as rocas. A porta ouviram-se três pancadas.

Truz, truz, truz!

— Quem me procura?! — tartamudeou o velho, como despertando de um sonho imenso.

Truz, truz, truz!

Arrastou-se trôpego, abriu a porta. As duas tinham desaparecido. Na treva espessa e lúgubre, distinguiu a figura doutro velho de grandes barbas, com uma sacola ao ombro.

— Sou eu, compadre, sou eu!

— Será possível! Que felicidade!

E abraçaram-se, num antigo e comovente abraço. O viandante pousou a sacola, sacudiu a neve do capote, e foi-se esquentar ao lume.

— Hás de vir gelado, Manuel!

Vinha, na verdade. Tinha andado muito, a noite estava má, nevava. Mas há quantos anos ele tinha querido vir passar ali o Natal! E contou, ao estalar das raízes secas no lume, naquela paz religiosa e bíblica, a sua crua sorte. 

Os velhos sentaram-se um em frente do outro. Enquanto o caminheiro espalmava as mãos sobre o braseiro, ia narrando a sua vida dura, por terras longínquas e ásperas, à busca de fortuna. Trabalhara muito, sofrera muito. E sempre, através de tormentos, a saudade do seu velho amigo lhe aparecia... A vida tinha-lhe ensinado muitas coisas; mas sobretudo que a felicidade está dentro de nós, vive conosco, e que todo aquele que semeia o bem, há de colher o bem...

O outro escutava-o silencioso, com a vista úmida.

— Acredita que toda a minha pena, compadre, era não poder abraçar-te!

— E eu julgava que tu, por tão longe, nunca mais te lembrarias...

— Pode lá esquecer quem é santo, compadre!

E contou que na volta, mar alto, começou, em pleno dia, a escurecer o céu. A marujada adivinhara a tormenta. Amainaram as velas, fecharam escotilhas, preveniram tudo. Minutos depois o vento rugia, o mar bramia. O navio dançava nos abismos revoltos, fulgentes de relâmpagos. Andaram perdidos, com o leme despedaçado, na água brava. Tiveram fome e sede — e a tempestade a jogar com eles, como com um grão de areia. Nos lábios das crianças, das mulheres, de todos, abrira a flor divina de uma oração. E a dele pedia a Deus que o deixasse vir à sua terra, para ver ainda o seu velho companheiro sem arrimo.

— E Deus ouviu-me. Aqui estou.

O velho atiçou o braseiro, deitou mais lenha ao fogo. O viajante ergueu-se, abriu a sacola, e foi tirando, para cima da masseira velha e carunchosa, os víveres que trazia, as ameixas, as passas, uma garrafa de vinho loiro.

— Não me esqueci da ceia, compadre.

— Assim vejo, Manuel. Deus te pague!

E cearam, como tantos anos antes, quando na aldeia havia alegria e fartura. Foram conversando, pela noite dentro, com a alma abrindo numa inflorescência misteriosa. Depois o viandante perguntou por todos, por tudo. E vieram as tristezas, as recordações pungentes: os filhos maus, a filha amada, a mulher morta!...

De novo o velho olhou para o banco da lareira, e manteve-se estático, com os olhos iluminados.

— Que tens, compadre?

— Olha, estão ali!

— Ah!... — disse o outro, sem surpresa, olhando em torno.

— Também vieram, Manuel, também vieram!...

De feito, o velho lá via de novo as duas, sorrindo-lhe angelicamente, cheias de graça. Uma trança de lírios luminosos tocava-as, o mesmo luar de há pouco as envolvia, como se emergissem, pálidas, de um grande sonho místico.

— A Maria, a Luísa, tão lindas!... — balbuciou o velho. 

O viandante respondeu simplesmente:

— Os que se amam nunca nos abandonam. Estão dentro de nós, vivem conosco.

O velho nem comia, enlevado nas aparições suaves. Via os cabelos loiros da filha, o seu ar virgem e esbelto; a mulher, como no dia em que partira, com os fundos olhos tristes, a boca airosa, onde jamais houvera o veneno da mentira.

— Vê tu que de mais longe vieram elas fazer-te companhia; não fui eu só, compadre.

A cara do viandante estava aureolada agora de uma irradiação magnética. Seguiu-se um diálogo de velhos que padeceram, que nobremente souberam amar, e que em certa hora suprema dizem, num murmúrio de almas, as suas confissões. Parábolas que lembram o mar, lembram estrelas... Belas e tristes como sepulcros, onde puseram flores, à lua cheia. É a lenda dos homens — sombras vagas, que uma luz vaga para sempre desfaz...

— Agora, compadre, vamos descansar. Venho quebrado de fadiga. Dormiremos juntos.

— Pois sim, eu não tenho outra enxerga (colchão).

As visões tinham fugido. E os dois adormeceram, noite alta, quando um galo cantava, como arauto da luz.
* * *

Mas de madrugada, quando pelas frestas entrava um fulgor dourado, o velho perguntou:

— Onde estás, compadre?

Ninguém respondeu. Uma grande paz enchia a casa. O velho procurou com os olhos, sentou-se na cama. Ninguém! Apenas na enxerga e no travesseiro de estopa ficara resplandecendo docemente a figura do compadre, como se fosse um brilho de nebulosas...

O velho ergueu-se, rezou de mãos postas. O dia de festa alvoreceu sem nuvens. Um sol pálido e terno enchia toda a terra de ouro. Da horta emperolada de orvalho reluzente, o velho veio ainda contemplar longamente a concha azul do céu misterioso e plácido...

Fonte:
Vários Autores. Contos de Natal Portugueses

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