E assim aquela eficiente dona de casa do Leblon resolveu o problema do arroz, do feijão, da carne e de outras preciosidades da nossa era: mudando de mercearia.
- Não! - exclamou a amiga. - Não vá me dizer que Nossa Senhora Aparecida desceu por aqui e montou um supermercado. Milagre não vale!
Pois não era milagre, quem falou nisso? Era apenas a federação, que divide (e reúne) o Brasil em nações autônomas, com seus recursos econômicos e seu comércio próprios. Os novos fornecedores de dona Araci ficam ali no estado do Rio. Não é precisamente no bairro em que ela mora, mas o casal comprou um carrinho paulista, e o marido de dona Araci é um amor: concordou em ir de lotação para o escritório. Ela pegou os dois garotos, botou-os no carro e tocou para o País da Fartura, Caxias chamado:
- Vocês dão um passeio e me ajudam a carregar os sacos.
O merceeiro de Caxias vendeu a dona Araci umas duas arrobas de magnificente arroz, mas ponderou-lhe, com o saber de experiências feito:
- Madame não passa na barreira com esse sortimento. O máximo permitido são cinco quilos.
- Não seja por isso. Trouxe fronhas em quantidade, e vou transformar meus feijões e meu arroz em travesseiros para os meninos repousarem a cabeça - retrucou-lhe a precavida senhora.
Assim foi feito, e, de novo com o pé na tábua, a família voltou muito feliz para o País do Está-em-Falta, conhecido também por Guanabara.
Junto à barreira, a fila de caminhões e automóveis era longa, e os guardas procediam a uma investigação cabal. A Alfândega de Nova York não seria mais rigorosa, ao farejar entorpecentes ou engenhos nucleares. Alguns veículos retrocediam, e de outros os motoristas retiravam pacotes condenados, que eram entregues à lei, na pessoa de seus agentes implacáveis.
- Qual, não atravesso esse muro de Berlim - suspirou dona Araci, desanimada. - Eles fazem até radiografia da gente.
Nisso apareceu um cortejo fúnebre, que os guardas deixaram passar sem formalidades, dando-lhe preferência, e dona Araci não teve dúvida: incorporou-se a ele, recomendando aos garotos:
- Vocês aí: façam cara triste!
E lá se foi o enterro, enorme. Que defunto seria aquele, tão estimado, a julgar pelo número de acompanhantes, pelas fisionomias compungidas? Eis que aparece o cemitério, na curva da estrada, e de súbito o imenso acompanhamento deixa o carro mortuário quase sozinho, com um ou dois carros na retaguarda, e toca para o Rio. Os motoristas interpelam-se aos gritos:
- Quantos quilos você trouxe?
- E você?
- E você?
Dona Araci não chegou a apurar quem era o morto a que prestara aquela homenagem de emergência. Os outros também não sabiam. E daí, o caixão talvez não contivesse nenhum defunto, quem sabe?
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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