Ao pé de uma frondosa paineira vivia uma minhoquinha chamada Milena. Ali vivia com a família desde que nascera. Sua infância foi muito feliz. Sempre a brincar com os irmãozinhos, parentes e demais crianças da redondeza. Tomava parte nas cantigas de roda, jogos de Amarelinha, para os quais ela não tinha lá muito jeito, mas sempre se alegrava nesses folguedos. Sim, porque a sua turma era tão unida que até chegou a criar um teatrinho para se divertir e melhor e mais depressa passar o tempo. No teatro ela fazia o papel de uma cobrinha que dançava muito bem, numa coreografia em círculos, muito aplaudida por aquele auditório ao ar livre.
Milena, como a maioria das crianças de sua idade, vivia sempre transbordando felicidade porque vivia intensamente o presente sem se preocupar com o futuro. Era aplicada nos estudos . Seus professores eram os seus próprios pais, pois ninguém melhor do que o minhoco Mimi e mamãe minhoca Tetê para ensinar-lhe a profissão familiar e prepará-la para o convívio na sociedade. À medida que foi crescendo, no entanto, nossa amiguinha passou por uma transformação. Já não era mais aquela menina alegre, sorridente e saltitante de alguns anos atrás. A bem da verdade, se ela não fosse minhoca, poderíamos dizer que Milena estava colocando minhocas na cabeça. Sabem o que aconteceu com Milena? O mesmo que acontece, infelizmente com frequência, a um grande número de seres humanos: começou a comparar-se aos outros.
Ora, isto não pode acontecer para ninguém, porque não existe atitude mais prejudicial do que julgar as coisas, pessoas e situações pelas aparências. Principalmente quando ao assim fazer começamos a perder o nosso senso do valor próprio, que é único. Assim procedendo ficamos com a auto-estima em baixa, que a Psicologia define como complexo de inferioridade. O desabafo de Milena à medida que o tempo passava, aqueles seus companheiros de infância, assim como ela, cresceram e constituíram famílias.
O Sapo Jorjão nunca deixava de convidá-la para as festas de aniversário ou casamento de seus filhos. Nas Festas Juninas até aparecia o vagalume e familiares para dar um colorido luminoso aos bailes. Não só aos forrós de Jorjão, mas do Tatu Alcides, da Tartaruga Silvana ou de quem os convidasse. Os filhos de Jorjão, enquanto ele batucava, davam seus espetáculos de nado livre e eram hábeis também em terra-firme, em saltos à distância e outros números. Afinal, festejos não faltavam na Fazenda Brilhante. Esse era o nome daquele lugar que podia ser comparado a um paraíso. Mas a pobre minhoquinha começou a se sentir em nível inferior aos demais animais, pequenos e grandes com os quais convivia.
Assim foi que, certo dia, Milena se surpreendeu falando sozinha, em voz alta, sobre o seu desconforto pessoal em não passar de uma simples minhoca.
– Não sei saltar como o Sapo Jorjão, onde todos os de sua família são lépidos e ágeis, tanto na água como no seco. Não tenho asas como o compadre João de Barro e sua esposa Joana. Muito menos a habilidade que o consagra como o pedreiro da floresta, ou arquiteto silvestre. Não sei gorjear como o canário, nem tenho penas bonitas como o beija-flor, tão elogiado pelos poetas. O macaco, então, não precisa nem abrir a boca e todos caem na risada com suas micagens. E o papagaio com suas piadas, muitas delas até sem graça nenhuma, faz com que mesmo os animais mais sérios como o Leão, e os próprios homens deem lá suas gargalhadas. É tão carismático que, assim como os cães e os gatos, até virou animal de estimação de Dona Lúcia, dona da fazenda. E eu? Moro num buraco. Na verdade, eu trabalho em casa, porque abro brechas no solo onde resido e…
Neste momento, o papagaio que ouvia essas lamúrias da minhoca Milena, agora mãe de família, não perdeu a deixa:
– Escuta aqui sua chorona, pare com essa conversa mole como você, antes que o Seu Paulo Sérgio resolva espetar seu corpinho num anzol, fazer dele uma isca e você ir parar na boca de uma traíra. Eu, hein?
Minhoca Milena sentiu arrepios por todo o corpo. As palavras do Louro Manoel atingiram-na em cheio. Afinal, quer ela admitisse ou não, o papagaio estava dizendo a pura verdade. Então a minhoca acabou por dizer-lhe:
– Eh, Louro Manoel, você sempre brincalhão! Mas agora está parecendo uma ave de mau agouro.
– Calma, Milena, quem está se diminuindo é você mesma. Além disso, com esse seu desprezo por si mesma e esse pessimismo, sabe o que vai lhe acontecer?
– Manoel, eu estou sendo realista – respondeu Milena. Ou você quer que eu me compare ao meu compadre João de Barro? Um dia poderei ousar construir uma casa como a dele? Lá em cima, perto do céu, com ar fresco e o perfume das flores exalando do bosque?
– Ah, sua boba – replicou o Papagaio Manoel – eu acho que os cientistas quando usam a palavra meio ambiente, talvez seja para que ninguém bata no peito e diga que é o ambiente inteiro. Todos dependemos uns dos outros. É a Associação Biológica, da qual nem o homem, esse presunçoso, pode esquecer e ir fazendo o que bem entender.
– Ué! Olha só quem está falando! - disse Milena em tom irônico - Outro dia você entrou na sua casinha, ficou lá e se escondeu do Gavião Penacho, sem dar um pio.
– E daí? Acha que eu iria contar uma piada de gavião pra ele. O que você queria que eu fizesse?
– Seja sincero, Manoel, acho que se dependesse de você os gaviões não existiriam, ou pelo menos, teriam um outro comportamento, senão esse de aterrorizar todas as aves, a começar dos galos que, quando ele grita lá em cima, eles calam a boca aqui embaixo. Até deixam o Seu Paulo Sérgio e Dona Lúcia perderem a hora de se levantar, com medo de anunciar a alvorada.
Responde o Papagaio, virando as asas em volta, sem esconder sua sábia ironia:
– Currupaco, você está dizendo bobagem, minhoca Milena. Há uma grande utilidade nessas ameaças do Penacho: – foi assim que aprendi a rezar. Cruz Credo!!! Além disso, dou um descanso para as minhas cordas vocais e para a minha língua e garganta. Até tiro um cochilo enquanto aquele paspalho faz aquele alvoroço como se o céu estivesse desabando.
O João de Barro, lá de sua casinha no alto da paineira, ouviu o desabafo da minhonquinha e ficou muito penalizado. Até comentou com sua esposa:
– Joana, nós precisamos fazer algo pela Milena.
– Você tem razão, João. Embora Milena não tenha motivos reais para reclamar da vida, encontra-se muito infeliz porque perdeu um dos bens mais preciosos de qualquer criatura na face da terra. Ela não tem mais estima por si mesma. Sua auto-estima está a zero por conta da sua forma errada de avaliar a si mesma e ao seu próprio trabalho.
– Sim, Joana, respondeu o pássaro marido. Que tal se a convidássemos para passar uma tarde conosco e a gente bater um bico com ela?
– Combinado, João. Se você quiser, dou um voo até lá embaixo e faço o convite.
Assim falou e assim fez, descendo com leveza o seu corpo em movimentos graciosos até o espaço onde vivia a Minhoquinha. E gritou pelas imediações:
– Ô de casa ! Ô de casa!
Uma voz bem aguda, de tom mole e preguiçoso, respondeu não escondendo uma leve ponta de irritação.
– Que casa, comadre Joana ?! Eu não tenho casa coisa nenhuma. Vivo com a minha família ao rés da terra ! A senhora e seu marido, sim, têm uma mansão lá na paineira que vale a pena. Eu hein ? Pobre de mim !
– Falando em casa – disse Joana Passarinho para Milena Minhoca, vim fazer-lhe um convite para ir conhecer nossa moradia.
– Outra piada da comadre!… Como posso, na condição de simples operária da terra, custear uma viagem aérea para chegar lá em cima da paineira?
– Ora, Milena – disse a passarinha Joana protestando calmamente – basta você grudar em minhas asas que a levarei em menos de um minuto para nossa casa. E prometo trazê-la sã e salva no momento que você desejar.
– É…comadre. Eu sempre tive a curiosidade de conhecer a casa de vocês. O que a senhora diz me parece um sonho…
– Parecia um sonho, mas vamos subir então, comadre Milena. Você vai comprovar, nesta oportunidade, que tudo aquilo que a gente acredita que vai acontecer em nossa vida, sempre acaba se sucedendo. E o que é melhor: há vezes em que a felicidade que nos chega supera aquela felicidade que a gente imaginou…
– Nossa! Mas como a comadre é otimista! Até criei coragem de fazer esse meu primeiro voo para o céu a bordo de suas asas.
Milena a custo elevou-se sobre um cupinzeiro para facilitar sua subida nas asas da solícita passarinha. Zás! Num segundo Joana decolou rumo ao céu com a minhoca às costas empenadas. Milena ficou extasiada ao ver a paisagem lá de cima. Bem que ela tinha razão ao pensar que os João de Barro dispunham de uma visão privilegiada por disporem de asas para voar e uma casa tão no alto, acima da mina, do pasto crivado de arvoredo e animais. Em questão de segundos a passarinha Joana alcançou a paineira, dando um grito para que o marido João de Barro viesse receber Milena com todas as honras. Milena desceu sobre o galho, num movimento meio desajeitado e um pouco acanhada diante da (para ela) enorme casa do anfitrião que ali se postava à sua espera.
– João! gritou Joana. Venha ver quem está aqui!
– Eu sei quem está aí! E fico muito feliz em receber nossa comadre Milena. Hoje está um dia propício para ela ouvir também o que diz aquele ecologista…
– Ah! – atalhou Joana – é mesmo, comadre Milena! Mora aqui por perto um senhor, o Seu Geraldo Machado, que senta aqui embaixo da paineira todas as tardes para conversar com a netinha sobre as maravilhas da Natureza.
– Chi, comadre! Tenho certeza que ele vai falar sobre o mico leão dourado, que até virou ilustração de cédulas de dinheiro, e com essa história de estar em extinção só dá ele nos assuntos desses tais ecologistas.
– Ó, comadre Milena. Deixe de lado esse pessimismo, levante a sua cabeça e acredite mais em si mesma. Você é tão importante quanto qualquer outro animal, seja doméstico ou selvagem.
– Tem razão, comadre Joana. Eu sou uma privilegiada por merecer a sua amizade e confesso que estou muito feliz em estar aqui…nas alturas.
– Mas vamos entrar, disse João de Barro. Venha conhecer a nossa casa. Além disso, daqui dá para ouvir as lições do Seu Geraldo Machado. Ele tem um bom timbre de voz.
Nesse momento os três ouviram o ponteio de uma viola, que de repente silenciou para dar lugar ao leve ruído de passos sobre a relva, lá embaixo, nas proximidades da mina d’água. Era o velho ecologista, cabeça branca, mas ainda forte e ágil, em seus oitenta e tantos anos de idade. Descansou a viola sobre o mourão da porteira e iniciou sua lição de ecologia para a netinha Bianca. A menina era toda olhos e ouvidos, e ansiava por ouvir as sábias lições de vovô Geraldo. Adivinhem só qual foi o tema do ecologista?
A FUNÇÃO DA MINHOCA NA NATUREZA – O diálogo teve início com uma pergunta de Bianca ao ancião:
– Vovô, por acaso a minhoca é parente da cobra?
– Não, minha querida netinha. Não tem nada a ver. As cobras são répteis. As minhocas são vermes – ensinou o velho.
– Então quando se diz que alguém que está com verme, poderia ser dito que está com minhoca na barriga? – atalhou Bianca.
– De modo algum, Bianca. É outra espécie de verme. As minhocas são anelídeos. Não habitam o organismo humano como os vermes parasitas do intestino. Elas são operárias do solo. Sua utilidade é muito grande e hoje é bem conhecida pelos cientistas.
De lá de cima da casa do casal de pássaros, Minhoca Milena aguçou ainda mais a atenção, torcendo para que o Sr.Machado continuasse a falar sobre a sua importância na vida terrestre. Assim, continuou o naturalista a sua aula ao ar livre:
– O nome anelídeo é porque o corpo da minhoca é formado de anéis. Graças a ela a terra se fertiliza e hidrata, isto é, ela vai fazendo furos no solo e isto permite que a água da superfície penetre nas camadas de terra mais abaixo. Não sei o que seria da vida na Terra se não fossem as minhocas com sua ação silenciosa e sem aplausos, mas indispensáveis à Natureza – concluiu o Sr.Machado.
– Vovô,é verdade que na Califórnia há até criação de minhocas?
– Sim, Bianca. Há fazendeiros que recebem muito dinheiro com seus minhocários e até exportam para outros países.
– Olha, Vovô, o mais interessante é que elas trabalham em silêncio, sem barulho e, pelo que o senhor diz, são muito úteis.
– Sim, Bianca. São úteis para a lavoura, porque permitem a melhoria das colheitas e ajudam a respiração do solo. São, sim, muito modestas, como sempre são humildes aquelas criaturas que verdadeiramente trabalham em favor dos outros.
– Sem as minhocas seria difícil viver, Vô? – perguntou Bianca com os olhinhos arregalados.
– Seria impraticável viver sem elas. Nem mesmo o João de Barro teria feito aquela casinha tão bonita se não fosse o trabalho das minhocas em favor do solo.
Milena sorriu. Olhou para as paredes da casa e sentiu saudades de seu próprio ninho. Agora, consciente de seu valor próprio, com a auto-estima recuperada, pediu encarecidamente aos donos da casa:
– Aqui está muito bom, comadre Joana e compadre João. Mas preciso ir. Estou com saudades de casa e o trabalho me espera.
Minhoca Milena voltou para as suas atividades com alma renovada e passou a produzir muito mais, agora na alegria de sentir-se útil na sua vida e no seu trabalho.
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