sábado, 23 de março de 2013

Luiz Gama (Cristais Poéticos)

QUEM SOU EU?

Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — Ninguém! —
A. E. ZALUAR - Dores e Flores


(...)
O que sou e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos,
Hão de chamar-me tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu, que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode,
Pouca importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muita vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais.
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar e guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Siringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deu Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse, pois, a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

SEREI CONDE, MARQUÊS E DEPUTADO

Pelas ruas vagava, em desatino,
Em busca do seu asno que fugira,
Um pobre paspalhão apatetado,
Que dizia chamar-se - Macambira.

A todos perguntava se não viram
O bruto que era seu, e desertara;
Ele é sério (dizia), está ferrado,
E tem o branco focinho, é malacara.

Eis que encontra postado numa esquina,
Um esperto, ardiloso capadócio,
Dos que mofam da pobre humanidade,
Vivendo, por milagre, santo ócio.

Olá, senhor meu amo, lhe pergunta
O pobre do matuto, agoniado;
“Por aqui não passou o meu burrego
Que tem ruço o focinho, o pé calçado?”

Responde-lhe o tratante, em tom de mofa:
“O seu burro, Senhor, aqui passou,
Mas um guapo Ministro fê-lo presa,
E num parvo Barão o transformou!”

Ó Virgem Santa! (exclama o tabaréu,
Da cabeça tirando o seu chapéu)
Se me pilha o Ministro, neste estado,
Serei Conde, Marquês e Deputado!...

A CATIVA

Nos olhos lhe mora,
Uma graça viva,
Para ser senhora
De quem é cativa.
CAMÕES

Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso
De trigueira coralina,
De Anjo a boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.

Em carmim rubro esgastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dúlios bardos matutinos.

Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre as nuvens das pestanas
Tinha dois astros brilhantes.

As madeixas crespas, negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam.

Tinha o colo acetinado
— Era o corpo uma pintura —
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.

Límpida alma — flor singela
Pelas brisas embalada,
Ao dormir d'alvas estrelas,
Ao nascer da madrugada.

Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas — não consente;
A seus pés de rojo pus-me,
— Tanto pode o amor ardente!

Não te afastes, lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...

Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.

Qual na rama enlanguescida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura:
Ai, senhor, eu sou cativa!...

Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde ao arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair a luz do sol.

A UM NARIZ

Você perdoe,
Nariz nefando
Que eu vou cortando
E ainda fica nariz em que
se assoe.
G. DE MATOS


Aí vai, leitores,
Um monstro esguio,
Que em corropio
De uma rua tem posto os moradores.

Maior que a proa
De nau de linha,
Tem camarinha
Aonde à tarde se obumbra a tocha coa,

Rinoceronte
De tromba enorme,
Mais desconforme
Do que o mero, a baleia, a catodante

Nariz bojante,
Recurvo e longo,
Que lá do Congo
Alcança o Tenerife e monte Atlante.

De raça eslava
Tremenda espiga,
E há quem diga
Que nela Polifemo cavalgava.

Nariz alado,
De cor bringela.
Que de pinguela,
Serviu no Amazonas celebrado.

E se não mente
A tradição,
De lampião
Fazia num farol da Líbia ardente.

Nariz de pau,
Com tal composto,
Que sobre o rosto
Tem forma de bandurra ou berimbau.

Cavado e torto,
Formal tripeça,
Fundido à pressa
Nas forjas de Vulcano — por aborto.

Nariz de forno,
De amplas badanas,
Que mil bananas
Aloja em cada venta, sem transtorno.

É tão famoso
O tal nariz,
Que por um triz
Não fez parte do Cabo Tormentoso.

Qual catatau
Da testa pende,
E alguém entende
Ser ninho de coruja ou picapau.

Nariz de barro,
Mas não cozido,
Que suspendido,
Sobre as grimpas da lua vai de esbarro.

De quanto fiz
Não se enraiveça;
Não enrubesça,
Que pr'a dar e vender sobra nariz.

LÁ VAI VERSO!

Quero também ser poeta,
Bem pouco, ou nada me importa,
Se a minha veia é discreta,
Se a via que sigo é torta.
F. X. DE NOVAIS


Alta noite, sentindo o meu bestunto
Pejado, qual vulcão de flama ardente,
Leve pluma empunhei, incontinente
O fio das idéias fui traçando.

As Ninfas invoquei para que vissem
Do meu estro voraz o ardimento;
E depois, revoando ao firmamento,
Fossem do Vate o nome apregoando.

Ó Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d'urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
Às vias me conduz d'alta grandeza.

Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes,
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
A longínquas regiões da velha Báctria!

Quero que o mundo me encarando veja
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E, qual outro Arion entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo —
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que presa a Líbia adusta.

Com sabença profunda irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo portentosa
À mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.

Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentos — sem juízo,
Irrisórios fidalgos — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;

Espertos maganões de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.

Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote —
Ao rufo do tambor e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes —
Nas danças entrarei d'altas caiumbas.

JUNTO À ESTÁTUA

(No Jardim Botânico da Cidade de S. Paulo)

Já a saudosa Aurora destoucava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E as boninas nos campos esmaltados
De cristalino orvalho borrifava.
CAMÕES - Soneto


Em plácida manhã serena e pura,
Sentado à borda de espaçoso lago;
O corpo recostado em frio marmor,
Tórridos membros sobre a terra quedos.

Qual túmido Tritão de amor vencido,
Transpondo as serras, iracundos mares,
D'Aurora o berço perscrutando ousado,
Dolorosos suspiros exalava
Meu frágil peito, da natura escravo,
Já nas fúlgidas portas do Oriente,
Trajando púrpura, majestoso assoma
Luzeiro ardente, que expandindo os raios,
Deslumbra os olhos, e a razão sucumbe,
E, com furtiva luz, pálidas fogem
Notívagas esferas cintilantes.

(...)

Longe do mundo, das escravas turbas,
Que o ouro compra de avarentos Cresos,
A minh'alma aos delírios se entregava,
À sombra de ilusões — de aéreos sonhos.

Formosa virgem de nevado colo,
De garços olhos, de cabelos louros;
Sanguíneos lábios, elegante porte,
Mimoso rosto de Ericina bela,
Curvando o seio de alabastro fino,
Mimosa imprime nos meus lábios negros
Gostoso beijo de volúpia ardente! —
Vencido de prazer, nadando em gozos,
Já temeroso pé movendo incerto,
Vôo com ela às regiões etéreas
Nas tênues asas de ternura infinda.
....................................

Rasgando o véu das ilusões mentidas,
Que est'alma frágil seduzir puderam,
Imóvel terra, cambiantes flores,

Viram meus olhos no romper da Aurora;
E d'entre os braços, que cerrados tinha,
Gelada estátua de grosseiro mármore!...

Cândidas boninas
E purpúreas rosas,
Violetas roxas
Do luar saudosas;

Verdejantes murtas,
Redolentes cravos,
Lindas papoulas
Da donzela escravos,

Ao soprar da brisa,
Em balanço undoso,
O mortal encantam
Num sonhar gostoso.

Mas fugindo as nuvens
— Que a ilusão fulgura,
Só vagueia à sombra
Da infernal ventura.

O BARÃO DA BORRACHEIRA

Quando pilho um desses nobres,
Ricos só d'áureo metal
Mas d'espírito tão pobres
Que não possuem real,
Não lhes saio do costado,
— Sei que é trabalho baldado,
Porque a pele dura têm;
Mas eu fico satisfeita,
Que o meu ferrão só respeita
A virtude, e mais ninguém!
F.X. DE NOVAIS - A Vespa


Na Capital do Império Brasileiro,
Conhecida pelo — Rio de Janeiro,
Onde a mania, grave enfermidade,
Já não é como dantes, raridade;
E qualquer paspalhão endinheirado
De nobreza se faz empanturrado -
Em a rua chamada do Ouvidor,
Onde brilha a riqueza, o esplendor,
À porta de uma modista de Paris,
Lindo carro parou — Número — X — ,
Conduzindo um volume, na figura,
Que diziam alguns, ser criatura
Cujas formas mui toscas e brutais
Assemelham-na brutos animais.

Mal que da sege salta a raridade,
Retumba a mais profunda hilaridade.
Em massa corre o povo, apressuroso
Para ver o volume monstruoso;
De espanto toda a gente amotinada
Dizia ser coisa endiabrada!

Uns afirmam que o bruto é um camelo,
Por trazer no costado cotovelo,
É asno, diz um outro, anda de tranco,
Apesar do focinho d'urso branco!
Ser jumento aquele outro declarava,
Porque longas orelhas abanava.
Recresce a confusão na inteligência,
O bruto não conhecem d'excelência.
Mandam vir do Livreiro Garnier,
Os volumes do Grande Couvier;
Buffon, Guliver, Plínio, Columella,
Morais, Fonseca, Barros e Portela;
Volveram d'alto a baixo tais volumes,
Com olhos de luzentes vagalumes,
E desta nunca vista raridade
Não puderam notar a qualidade!

Vencido de roaz curiosidade
O povo percorreu toda a cidade;
As caducas farmácias, livrarias,
As boticas, e vãs secretarias;
E já todos a fé perdida tinham,
Por verem que o brutal não descobriam,
Quando idéia feliz e luminosa,
Na cachola brilhou dum Lampadosa
Que excedendo em carreira os finos galgos,
Lá foi ter à Secreta dos Fidalgos;
E dizem que encontrara registrado
O nome do colosso celebrado:
Era o grande Barão da borracheira,
Que seu título comprou na régia-feira!...

O REI CIDADÃO
(Dois Metros de Política)


O Imperador reina, governa, e administra,
tal é o nosso direito público, consagrado
na constituição.
VISCONDE DE ITABORAÍ - Discursos


É o direito coisa alpendurada,
Que põe-nos a cabeça atordoada.
O princípio, a doutrina, a conclusão,
Nas idéias produzem turbação.
Acertar eu pretendo a todo instante;
Mas sinto o meu bestunto vacilante;
Se na tese aprofundo, e bato à fronte,
Todo o Rei me parece um mastodonte!
Pelo que já vou crendo no rifão
— Que o Rei da mista forma é velhacão.

No tempo antigo o Rei obrava só;
De chanfalho na mão cortava o nó;
E os ministros calados como escudos,
Eram todos do Rei criados-mudos.
Hoje em dia, porém, mudou-se a cena,
Quebrou-se o férreo guante, voga a pena;
A pena e a palavra; a língua luta,
Soberana domina a força bruta.
O Rei não obra só; pois na linguagem,
Obra mais do que o Rei a vassalagem.
— Reina o Rei, não governa — é o problema;
— Mas, se reina, governa: eis o dilema!
— Não só reina, governa e administra —
É suprema doutrina monarquista.

De outro ponto o ministro não quer meias,
Quer o Rei regulado, um Rei de peias;
E antolha-se, Penélope do dia,
Capaz de refazer a monarquia;
Um rei feroz não quer, nem Rei tirano,
Mas um Rei cidadão — republicano!

(...)

PACOTILHA

Não ralhem, não façam bulha,
Que eu não sei se isto é pulha.
Polca


(...)

Se trôpego velho
De queixo caído,
Dengoso e rendido,
Com moça se liga;
Lá quando mal cuida
Na fronte lhe saltam,
Relevos que esmaltam,
Em forma de espiga.

Se rapa o que pode
Finório empregado,
Campando de honrado,
Cuidando que brilha;
Em dia aziago
Tropeça, baqueia,
E vai, na cadeia,
Juntar-se à quadrilha.

Se impinge nobreza
Brutal vendilhão,
Que sendo Barão,
Já pensa que é gente;
Aqueles que o viram
Cebolas vendendo
Vão sempre dizendo —
Que o lorpa é demente.

Se em peitos que fervem
Infâmias tremendas
Avultam comendas
E prêmios de honor;
É que, com dinheiro,
Os rudes cambetas
Se levam das tretas
E mudam de cor.

Se fino larápio
De vícios coberto,
Com foros d'esperto,
De honrado se aclama;
É que a ladroeira.
Banindo o critério,
Firmou seu império
C'o gente de fama.

Se audaz rapinanto,
Fidalgo ou Barão,
Por ser figurão,
Triunfa da Lei;
É que há Magistrados
Que empolgam presentes
Fazendo inocentes
Os manos da grei.

Mulato esfolado,
Que diz-se fidalgo,
Porque tem de galgo
O longo focinho;
Não perde a catinga,
De cheiro falace,
Ainda que passe
Por bráseo cadinho.

E se eu que pretácio,
D'Angola oriundo,
Alegre, jucundo,
Nos meus vou cortando;
É que não tolero
Falsários parentes,
Ferrarem-me os dentes,
Por brancos passando.

 SORTIMENTO DE GORRAS PARA A GENTE DO GRANDE TOM

(...)

Se grosseiro alveitar ou charlatão
Entre nós se proclama sabichão;
E, com cartas compradas na Alemanha.
Por mil anos impinge ipecacuanha;
Se mata, por honrar a Medicina,
Mais voraz do que uma ave de rapina;
E num dia, se, errando na receita,
Pratica no mortal cura perfeita;
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Desprezam a vovó que é preta-mina:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se o governo do Império Brasileiro,
Faz coisas de espantar o mundo inteiro,
Transcendendo o Autor da geração,
o jumento transforma em sor Barão;
Se estúpido matuto, apatetado,
Idolatra o papel de mascarado;
E fazendo-se o lorpa deputado,
N'Assembléia vai dar seu — apolhado,
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se impera no Brasil o patronato,
Fazendo que o Camelo seja Gato,
Levando o seu domínio a ponto tal,
Que torna em sapiente o animal;
Se deslustram honrosos pergaminhos,
Patetas que nem servem p'ra meirinhos,
E que sendo formados Bacharéis,
Sabem menos do que pecos bedéis,
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Se temos Deputados, Senadores,
Bons Ministros e outros chuchadores;
Que se aferram às tetas da Nação
Com mais sanha que o tigre, ou que o Leão;
Se já temos calçados — mac-lama,
Novidade que esfalta a voz da Fama,
Blasonando as gazetas — que há progresso,
Quando tudo caminha p'ra o regresso:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

Se contamos vadios empregados,
Porque são das potências afilhados,
E sucumbe, à matroca, abandonado,
O homem de critério, que é honrado;
Se temos militares de trapaça,
Que da guerra jamais viram fumaça,
Mas que empolgam chistosos ordenados,
Que ao povo, sem sentir, são arrancados;
Não te espantes ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!

(...)

 Fontes:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/LUIZ_GAMA.htm
GAMA, Luiz. Trovas burlescas e escritos em prosa. São Paulo: Cultura, 1944

Luiz Gama (1830 – 1882)

Luiz Gonzaga Pinto da Gama
(Salvador BA, 1830 - São Paulo SP, 1882)

Era filho de escravos, e foi vendido pelo pai, em 1840, por causa de uma dívida de jogo.

Comprado em leilão pelo alferes Antonio Pereira Cardoso, passou a viver em cativeiro em  Lorena SP.

Em 1847 foi alfabetizado por Antonio Rodrigues do Prado Júnior, hóspede de Antonio Pereira Cardoso.

No ano seguinte fugiu da fazenda e foi para São Paulo SP.

Lá casou-se, por volta de 1850, e freqüentou o curso de Direito como ouvinte, mas não chegou a completá-lo.

Em 1864 fundou o jornal Diabo Coxo, do qual foi redator. O periódico era ilustrado pelo italiano Angelo Agostini, considerado marco da imprensa humorística em São Paulo.

Entre 1864 e 1875 colaborou nos jornais Ipiranga, Cabrião, Coroaci e O Polichileno.

Fundou, em 1869 o jornal Radical Paulistano, com Rui Barbosa.

Sempre utilizou seu trabalho na imprensa para a divulgação de suas idéias antiescravistas e republicanas.

Em 1873 foi um dos fundadores do Partido Republicano Paulista, em Itu SP.

Nos anos seguintes, teve intensa participação em sociedades emancipadoras, na organização de sociedades secretas para fugas e ajuda financeira a negros, além do auxílio na libertação nos tribunais de mais de 500 escravos foragidos.

Por volta de 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana.

Os poemas de Luís Gama estão vinculados à segunda geração do Romantismo. Entretanto, segundo o crítico José Paulo Paes, "distanciando-se dos literatos da época pelo seu realismo de plebeu, Luiz Gama deles se distanciava também pela concepção que tinha da literatura. Para ele, ser poeta não era debruçar-se sobre si mesmo, num irremediável narcisismo, mas voltar-se para o mundo, medi-lo com olhos críticos, zurzir-lhe os erros, as injustiças, as falsidades.".

Fontes:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/LUIZ_GAMA.htm
Imagem - http://andrelemes.wordpress.com

Ungulani Ba Ka Khosa (Ualalapi)

Ualalapi é o nome de um guerreiro nguni a quem é destinada a missão de matar Mafemane, irmão de Mudungazi (depois chamado Ngungunhane-Gungunhana). Este guerreiro dá o título ao relato, ficcionado por Ba Ka Khosa, da vida e da época do hosi (rei, imperador, em língua tsonga) Ngungunhane, famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do séc. XIX. Mas à medida que a narrativa progride, o quadro que se desenrola aos nossos olhos é bem outro. Numa escrita veloz, forte, densa, violenta, crua, chocante por vezes, recorrendo a metáforas quase brutais, perpassada de aforismos e de uma raiva não disfarçada que a poderosa imaginação visual do autor reforça, Ngungunhane é-nos revelado como um homem cruel, sanguinário, violento, um verdadeiro tirano para o seu povo - a sua designação como imperador ou rei é propositadamente anárquica -, na mesma medida em que os colonizadores portugueses o eram para com esse mesmo povo (vejam-se os testemunhos epocais transcritos, num paralelismo óbvio com o que se vai ler em seguida). Um e outros provocam a destruição do império de Gaza, deixando um rasto de miséria, fome, crueldade, sofrimento e humilhação. Uma «história»-ficção de sangue, de guerra, de arbitrariedades, de morte. Mas sem dúvida tão perturbadora quanto fascinante.

"Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que ... vos aprisionarão. Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres. O papel com rabiscos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas".
[O último discurso de Ngungunhanhe, segundo Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, Associação dos Escritores Moçambicanos, 2ª edição, p. 118]
––––––––

O livro de estréia de Ungulani Ba Ka Khosa Ualalapi, publicado em 1987, é um romance histórico que foi distinguido em 1994 com o prémio Nacional de Ficção, e em 1990, junto com Vozes Anoitecidas de Mia Couto, com o Grande Prémio da Ficção Narrativa. Trata-se da primeira obra de ficção que, como sublinha Chabal (1996: 85), se dedica exclusivamente ao passado colonial de Moçambique e que conta a ascensão de Ngungunhane, o imperador de Gaza, famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do século XIX e a derrocada do seu império.

O livro constrói-se a partir de uma colagem de fragmentos históricos, comentários de oficiais portugueses envolvidos na campanha contra o império de Ngungunhane, e a imaginação de Khosa na reconstrução de episódios deste período na forma de seis contos que constituem o romance. Deste modo o livro aborda exactamente o momento inicial da ocupação efectiva pelos portugueses e a passagem do tempo pré-colonial ao período colonial. Ualalapi, no entanto, não é uma obra que apresenta os grandes feitos heróicos de um Grande Homem contra a violência do domínio colonial, como Ngungunhane vai ser retratado no Moçambique da pós-independência. Em vez disso dedica-se muito mais a uma representação de Ngungunhane que corresponde à realidade histórica, mostrando a imagem de um tirano cruel em relação aos outros povos africanos, mas também para com o seu próprio povo.

É por essa razão que o ‘Outro’, na forma dos ‘brancos, do outro lado do mar’[(citação de Akawitchi Akaporo – armas e escravos, p.31)], se limita na parte fictícia do romance a duas alusões inseridas nos episódios relatados. A primeira encontra-se logo no começo do romance, na referência à morte de Ngungunhane no exílio “em roupas que sempre rejeitara e no meio da gente da cor do cabrito esfolado que muito se espantara por ver um preto” (p.30). Apesar deste anúncio da consequência final da invasão dos portugueses para o rei, verifica-se a presença do invasor europeu na parte fictícia do romance primeiro incidentalmente, como quando os grandes do reino têm de decidir sobre o castigo do guerreiro Mputa, que é falsamente acusado de ter afrontado a primeira mulher do imperador:

(...) Este, com a argúcia que a vida ensinara, disse ao rei, em jeito de síntese, que a morte não seria digna para um homem que ousou cobiçar o corpo da rainha. Era necessário um castigo brutal e memorável na mente dos súbditos; por que não cegá-lo como faziam os tsongas em tempos que não importa recordar? Caso faças isso o teu poder imperial sairá fortificado nestes tempos tumultuosos em que os homens da cor de cabrito esfolado assediam o teu reino vasto (Khosa 1990: 47).

O romance dá-nos assim uma impressão da maneira como os portugueses surgiram lentamente nesta parte da África e como eram percepcionados enquanto seres diferentes. É, por outro lado, um ponto de vista que contrasta com os fragmentos históricos dos oficiais portugueses, intitulados “Fragmentos do fim”, que representam a história do ponto de vista do colonizador. Estes falam sobretudo sobre o andamento da campanha militar e revelam a relação de domínio subjacente.

O significado histórico da presença portuguesa relativamente ao futuro desenvolvimento do território mostra-se no fim do livro, no derradeiro capítulo “O último discurso de Ngungunhane”, que é um monólogo no qual Ngungunhane profetiza o período colonial, antes da sua partida para o desterro:

Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão (Khosa 1990: 118).

Segue-se uma séria de descrições pormenorizadas das conseqüências socio-culturais do tempo colonial referindo-se à alienação da sociedade moçambicana em relação às culturas africanas e à dinâmica e ao impacto social do período do domínio português. Manua, o filho de Ngungunhane a que se refere aqui o imperador, é relativamente às diferentes formas em que se manifesta o ‘Outro’ certamente uma das personagens mais interessantes do livro, por ser, como afirma, um “dos poucos na minha tribo, que teve acesso ao mundo dos brancos, à sua língua, aos seus costumes e à sua ciência (...)” (p.100). A alienação dele em relação à sua origem africana revela-se nitidamente, nesta passagem:

Quando eu for imperador eliminarei estas práticas adversas ao Senhor, pai dos céus e da Terra. Serei dos primeiros, nestas terras africanas a aceitar e assumir os costumes nobres dos brancos, homens que estimo desde o primeiro dia que tive acesso ao seu civismo são (p.100).

         Manua revela-se aqui um adepto fervoroso dos costumes do ‘Outro’, colonizador e da cultura europeia, um forte contraste com a profecia de Ngungunhane no fim do livro que mostra um ponto diferente de vista do imperador em relação à cultura europeia, indicando uma grande diferença entre as posições do pai e do filho:

(...); e haverá homens com vestes de mulher que percorrerão campos e aldeias, obrigando-vos a confessar males cometidos e não cometidos, convencendo-vos de que os espíritos nada fazem, pois tudo o que existe na terra e nos céus está sob o comando do ser que ninguém conhece mas que acompanha os vossos passos e as vossas palavras e os vossos actos. A noite terá caído definitivamente nestas terras que mudarão de face com o vosso suor (p.119).

         Trata-se aqui de uma alusão aos efeitos da “desvalorização das formas de culturas indígenas, que caracterizou a política colonial de assimilação” (Leite: 1998: 90), em que Manua representa um dos primeiros moçambicanos envolvidos neste processo, que “contribuiu para a descaracterização e rasura de valores ancestrais” (idem), o que se pode verificar também na descrição do moço pelos outros passageiros no navio a Lourenço Marques que afirmam que se veste “como um branco (...), (...) não tem cara de maltês, (...), (...) e estudou muito mais que o compadre” (p.104). O filho de Ngungunhane apresenta-se, portanto, como um dos primeiros africanos assimilados, o que nos indica a alienação de uma parte da sociedade moçambicana através da influência da cultura europeia.

Por outro lado, a violência excessiva no romance que caracteriza os métodos de Ngungunhane mostra um paralelo com a brutalidade deste ‘Outro’, colonizador e português nos “Fragmentos do fim”. Faz com que o imperador, a personagem central nesta época crucial na história de Moçambique, se revele um tirano que não se distingue dos portugueses na opressão e destruição das culturas africanas, que considera com uma inferioridade semelhante:

(...) Trouxemos a chuva para estas terras adustas e educamos gente brutalizada pelos costumes mais primários. E hoje essa gente está entre vocês. Nguni! (p.29).

A crueldade com que Ngungunhane governava exibe-se frequentemente no romance e pode ser lida nas entrelinhas das palavras do rei a respeito do castigo de Mputa que “puseram em delírio o povo tsonga que esquecera que estava perante o invasor que poisara naquelas terras com o sangue dos inocentes guerreiros nunca relembrados, (...)” (p.49), o que sublinha mais uma vez a semelhança entre a maneira de agir do imperador de Gaza e os métodos dos portugueses. É um facto que se pode verificar também no capítulo “O cerco ou fragmentos de um cerco” que comprova a ferocidade com que o imperador submeteu outros povos e onde se pode observar como os nguni correspondem ao ‘Outro’ do ponto de vista dos machopes:

– Vamos lutar e morrer se for necessário, mas o nosso desprezo pelos nguni manter-se-á por séculos, porque esta terra é e será nossa. (...) O nosso não é para que as nossas mulheres não sejam escravas e os nossos filhos não engrossem as fileiras desse exército bárbaro. (...).

– Iremos para a luta com a certeza da vitória, apesar deste cerco criminoso que moveram contra nós, um cerco que contraria os princípios mais elementares de uma guerra de homens, de uma guerra que os nossos antepassados mais remotos cultivaram com a certeza de que os homens olham-se de frente e as lanças chocam-se sob o olhar atento dos guerreiros (...) (p.86).

         O trecho sublinha obviamente a destruição de algumas partes da sociedade autóctone que se deu, portanto, já sob o domínio de Ngungunhane cujo regimento se caracterizava pela inobservância das regras da tradição. O fragmento comprova que o não respeito por uma cultura tradicional e a relação subjacente de domínio, que certamente entrou numa fase de aceleração sob domínio colonial português, já começou no período do império de Gaza no fim do século XIX, onde a opressão de povos e tradições já fazia parte da estratégia imperial de Ngungunhane.

O mesmo pode verificar-se no que diz respeito à própria tradição nguni, como consta do caso da doença misteriosa da sua mulher preferida, Damboia, caso que mostra como Ngungunhane se sobrepõe à tradição, proibindo a realização do nkuaia devido à convicção dele que “e se ela se vai, vai-se o império, homens!” (p.63), quebrando a regra de só não realizar a cerimónia no caso da morte do rei, visto que Damboia não era soberana nem estava morta:

E por isso e outras coisas mais que vos aprouver dizer, para o bem do reino, o nkuaia não se realiza. Na capital não ressoarão esses cânticos de louvor que nos rejuvenescem. Os guerreiros não baterão os escudos do bayete, levantando a poeira pré-histórica dos nossos antepassados esquecidos. (...) Por isso, as leis que vigoraram até aqui irão vigorar, e eu serei homem de mais leis emanar quando para isso for necessário, porque o império é meu, e o poder pertence-me; (...) (p.63).

         O absurdo da guerra e o carácter violento de Ngungunhane, descontrolado pela estranha e vergonhosa doença que atinge Damboia, mostra-se também na ordem dada ao comandante para que as suas tropas ataquem e massacrem um reino vizinho:

Ide, vassalos, e apagai as tochas que por este império estiveram acesas. E para que os machope não se riam da nossa dor, tu Maguiguane, vai por essas terras espalhar a morte e a dor. Eu quero que todos, mas todos, se compadeçam com a dor que nos atacou. Ide, guerreiros, que o império vos salvaguarda, agora e depois da morte (p.63).

     Em resumo, pode-se dizer que os métodos do império de Gaza mostram semelhanças com a táctica que os portugueses aplicarão contra os povos de Moçambique. Desta maneira pode-se verificar como Ngungunhane pretende construir um ‘Mesmo’ por exclusão do ‘Outro’, em processos idênticos à da colonização portuguesa, baseado numa relação de domínio. No último capítulo, no qual o imperador desenvolve um discurso profético acerca das consequências da presença portuguesa a respeito do desenvolvimento socio-cultural do território, mostra-se o significado histórico da chegada do português em toda a sua dimensão histórica, indicando as transformações da sociedade causadas por esta intervenção ao longo do tempo:

Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs ordem nestas terras sem ordem, (...) (p.118).

     Esta passagem indica ao mesmo tempo que as palavras de Ngungunhane correspondem a um dos aspectos centrais na representação da identidade pós-colonial nos romances de Mia Couto. A alienação da sociedade moçambicana em relação à sua origem africana através da perda dos nomes africanos das pessoas é um assunto que já encontrámos na personagem Marta em A Varanda do Frangipani, afirmando que os membros da sua família “já há muito perderam seus nomes africanos” (VFA: 129). No que diz respeito às consequências socio-culturais da presença dos portugueses, nota-se como o monólogo do imperador refere explicitamente o período do colonialismo, descrevendo pormenorizado o sofrimento da população indígena:

(...) Começarão a abandonar as vossas aldeias ante a vergonha e a impotência de verem as vossas filhas violadas em plena rua, os vossos pais mortos como reses, os vossos irmãos chicoteados por peidarem de medo frente ao branco que vos aviltará por todo o sempre, queimando as vossas casas, usurpando a terra que vem dos vossos antepassados, cobrando as moedas pelas palhotas que erguestes com suor, obrigando-vos a trabalhar em machambas enormes, onde dia e noite andarão como sonâmbulos, comendo jibóias e macacos, escalavrando a terra com os dedos descarnados e tirando a merda da criança do vosso patrão (p.120).

     É interessante como Khosa conseguiu traçar um paralelo entre o império de Gaza e o tempo colonial através do fictício último discurso de Ngungunhane. Por um lado esclarece que a tradição da exploração já existiu antes da chegada dos portugueses. Por outro lado faz com que a profecia chegue pela boca de Ngungunhane, um tirano igual aos portugueses, o que faz com que a significação do tempo colonial ganhe ainda maiores dimensões. A ocupação efectiva pelos portugueses aparece assim como um ponto de não-retorno, significando o início de um processo que não só conduz à construção de uma nação moçambicana, mas também traduz uma transformação irrevogável, como resume Ngungunhane na previsão dos futuros acontecimentos:

E aí o mundo terá mudado para sempre (p.121).

Apesar disso apresenta exemplos concretos como esta transformação se manifestará na sociedade moçambicana, no surgimento de uma nova classe social:

E por todo o lado, como uma doença que a todos ataca, começarão a nascer crianças com a pele da cor do mijo que expelis com agrado nas manhãs. Serão crianças da infâmia (p.119).

Ngungunhane alude aqui à posição difícil dos mulatos em Moçambique, um assunto que aparece também na obra de Mia Couto. Além disso, pode-se verificar como o afastamento da sociedade da sua origem exprime-se de maneira semelhante como em A Varanda do Frangipani e Terra Sonâmbula, visando a tensão entre o passado e a modernidade em Moçambique, aqui anunciado por Ngungunhane:

Fora das grades os vossos netos esquecer-se-ão da língua dos seus antepassados, insultarão os pais e envergonhar-se-ão das mães descalças e ocultarão as casas aos amigos. A nossa história e os nossos hábitos serão vituperados nas escolas sob o olhar atento dos homens com vestes de mulher que obrigarão as crianças a falar da minha morte e a chamarem-me criminoso e canibal (p.121).

         O processo de alienação por causa da fusão da cultura europeia com as culturas africanas mostra-se evidentemente na religião:

         (...) Mas começarão a aprender novas doutrinas que rejeitarão os espíritos, os feiticeiros e curandeiros. Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo, (...). (p.122).

         A profecia de Ngungunhane alude assim à convivência do passado com a modernidade em Moçambique, neste lugar na forma da coexistência da religião cristã e das tradições africanas. Apesar disso, aponta o facto de que não só se trata de uma mera aquisição de elementos da cultura europeia, mas que a situação inicial do embate das culturas imediatamente dá lugar a um processo de deslocações nas quais os africanos se apropriarão das novas doutrinas que o europeu traz para encontrar um caminho para a liberdade. Mas processo também no qual os europeus se moçambicanizaram:

(...) Outros transformar-se-ão em serpentes, entrarão no campo inimigo, estudarão os seus passos e verão o quantitativo. E esta será a nossa guerra vitoriosa contra os homens que entraram nestas terras sem autorização de ninguém. Muitos dos filhos destes homens ficarão nestas terras e aprenderão as nossas línguas e dançarão as nossas danças e casarão com as nossas mulheres à vista de toda a gente e serão os nossos irmãos de verdade (...) (idem).

         Por outro lado, esta passagem mostra que a chegada do português provocará mudanças sociais de carácter definitivo. O presságio do futuro limita-se, porém, não só ao papel do intruso no período colonial, mas mostra que a miséria profetizada por Ngungunhane não terminará com o fim do domínio do português:

Chegada a vitória tereis um preto no trono destas terras. (...) Mas não tereis chegado ainda ao tempo da vossa felicidade, seus cães, porque a maldição que abraçou estas terras, perdurará por séculos e séculos. (...) A desordem será de tal ordem que as casas mudarão de cor, passando a ter a cor da morte que se instalará nas vossas terras que terão a extensão de meses e meses de percurso (p.122-123).

         No seu último discurso Ngungunhane exprime que a libertação e independência em 1975 ainda não significarão o fim da guerra, mas uma transformação da guerra de carácter colonial em guerra civil, guerra que se estendeu até 1992. O romance faz assim uma ligação entre o tempo do império Gaza e os acontecimentos históricos dos últimos trinta anos em Moçambique. É por essa razão que Ualalapi deve ser considerado como um romance em diálogo ou em confronto com a história e com as fabricações da história, assumindo como tema central a questão do ‘Outro’ no processo político e cultural de construção de uma identidade nacional.

Fonte:
Capítulo de tese de Christoph Oesters (Utrecht, 11/2005)
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaAfricana/Ungulani_Ba_Ka_Khosa.htm

Ungulani Ba Ka Khosa (1957)

Escritor moçambicano, de nome verdadeiro Francisco Esau Cossa, nascido a 1 de Agosto de 1957, em Inhaminga, província de Sofala.

Khosa fez o ensino primário na provincia de Sofala e o ensino secundário, parte em Lourenço Marques e parte na Zambézia. Em Maputo tira o bacharelato em História e Geografia na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane e exerceu a função de professor do ensino secundário.

Em 1982 trabalha para o Ministério da Educação durante um ano e meio. Seis meses depois de ter saído do Ministério da Educação é convidado para trabalhar na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), da qual é membro.

Iniciou a sua carreira como escritor com a publicação de vários contos e participou na fundação da revista Charrua da AEMO.

Foi a realidade vivida em Niassa e Cabo Delgado, onde existiam as zonas de campos de reeducação que eram mal organizadas, que o fez inclinar mais para a literatura e, por isso, sentiu a necessidade de escrever para falar e expor essa realidade para as pessoas

Tem publicadas a seguintes obras: Ualalapi (1987), Orgia dos Loucos (1990), Histórias de Amor e Espanto (1999) e No Reino dos Abutres (2002).

Centrada sobre a crueldade e despotismo de Ngungunyane, o último Imperador de Gaza, Ualalapi , a primeira das obras citadas, foi distinguida, em 1990, com o Grande Prémio da Ficção Narrativa; em 1994 com o Prémio Nacional de Ficção e, em 2002, foi considerada como um dos melhores livros africanos do século XX.

Ungulani Ba Ka Khosa por Ungulani:

"Os editores têm sempre a mania de exigirem uma pequena resenha das nossas vidas. Somos obrigados a abrir algumas estradas e enveredarmos por carreiros que só a nós nos diz respeito. É assim a vida. Mas vamos a ela: Nasci em Inhaminga, Distrito de Cheringoma (província de Sofala) a um de Agosto do ano 57. Nunca assentei arraiais por largo tempo num determinado local. Andei pelo país inteiro (exceptuando Tete). De formação tenho um bacharelato que sustenta o Ungulani. De livros posso mencionar Ualalapi, Orgia dos Loucos, e Estórias de Amor e Espanto. Pronto. Cá está parte do meu percurso. "

(contra-capa de No Reino dos Abutres, Imprensa Universitária, 2002, Maputo)

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaAfricana/Ungulani_Ba_Ka_Khosa.htm

Paulo Lima (Americanos)

Para Karen Gadient

As casas, uma pequena fileira de cinco ou seis, eram brancas, feitas de madeira e rodeadas por cercas baixas – também de madeira. As portas e janelas tinham telas de proteção contra mosquitos, e abriam para fora.

Ficavam no alto de um conjunto de dunas a caminho da praia. A brancura das dunas ajudava a realçar a solidão daquelas casas, em vez de ocultá-las.

A gente observava de longe, como se fosse uma aparição do outro mundo. E era de fato de um outro mundo.

– São americanos! – meu pai explicava, com uma pontinha de admiração e respeito.

Os americanos. Eu tinha visto na televisão os astronautas passeando na lua pela primeira vez. Eram americanos. Aquelas manchas brancas se moviam lentamente na escuridão. Seriam mesmo astronautas? E aquilo lá era a lua? Às vezes a imagem ficava tão ruim que eu chegava a duvidar. E então as manchas brancas voltavam a se mover mais uma vez.

As pessoas se aglomeravam em frente ao único televisor da rua pra ver os americanos realizarem a conquista da lua.

Quanto a mim, abandonei a cena e subi a rua correndo pra comprar pão. Mas tomei cuidado com o cachorro da esquina. Por que diabos eles adoram perseguir crianças?

Aqueles americanos que moravam naquelas casas de madeira eram astronautas? Todos os americanos eram astronautas? Achei que talvez fossem todos cowboys. Ou Tarzans. E todos deviam ser muito altos e louros. E suas mulheres eram altas e louras e tinham os lábios com um batom de um vermelho forte e vivaz.

Eu via no cinema.

Um dia, no cinema, deram coca-cola de graça pra gente. Diziam que era invenção americana. Aquilo descia pela garganta sufocando e ardendo. A gente sentia vontade de tossir. E os olhos se enchiam de água. Mas era bom. Era muito bom.

Então os americanos bebiam aquilo?

Nos fins de semana a gente ia pra a praia. Mas não era a praia que me atraia. Era a chance de ver as tais casas de perto. Aquelas casas dos americanos, tão diferentes das nossas casas. A gente passava a uma certa distância delas. Os pés afundavam na areia das dunas. Os dedos se enroscavam na vegetação rasteira. Eu esticava o pescoço pra ver melhor as casas.

Eu ficava esperando que alguém aparecesse na porta de uma delas. Um americano. E dissesse alô pra a gente. Mas se ele surgisse de algum lugar é bem provável que eu tivesse medo e ficasse calado. Eu me esconderia atrás do meu pai e deixaria que ele respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Um dia meu pai chegou com várias caixas de leite em pó. Ele explicou que eram distribuídas pelos americanos da Aliança para o Progresso. Eu não sabia o que era Aliança, nem o que era Progresso. As caixas eram brancas com letras azuis. Tinham o desenho de uma águia. Minha intuição de criança entendeu que recebíamos ajuda porque éramos muito pobres. E eles, os americanos, eram muito ricos.

Eu tinha visto no cinema uma cidade dos americanos. A cidade era Los Angeles, com muitos viadutos, muitos carros, muitos ônibus e muitas pessoas nas ruas. Havia prédios muito altos. A minha cidade, ao contrário, era atravessada por sítios e terrenos baldios. Quando queríamos ir a algum lugar distante, íamos a pé. Às vezes a gente entrava num sítio e roubava caju. Mas a gente sentia medo, pois se o dono nos visse dava um tiro de sal. Não matava, mas dizem que doía bastante. E, além disso, havia o medo de que fôssemos chamados de ladrão, uma palavra tão feia.

Algumas vezes eu ouvia o pai ou a mãe cochichando segredos. – Você sabia que o filho de fulano é ladrão? Ou pior ainda. – Você sabia que a filha de sicrano é safada? E um silêncio grave se instalava no meio deles.

Os americanos eram muito ricos. E nós, muito pobres. Entre eles não havia filhos ladrões nem filhas safadas.

Eu ficava olhando as casas ao longe, tentando decifrar sua rotina, o movimento dos americanos dentro delas, suas conversas, suas brigas. Eu queria ter super poderes pra perscrutar melhor aquelas casas. Como o Super Homem, Fantasma, Capitão Marvel.

Eu sei, porque lia nas revistas de quadrinhos.

Mas eu não sabia que esses heróis eram americanos. Eu pensava que eles eram meus amigos, somente isso.

E se eu fosse invisível? Se eu fosse invisível eu ia entrar na casa dos americanos, sentar com eles à mesa, comer a comida deles, andar na bicicleta do filho deles e quem sabe dar um beijo na filha deles.

Eu tinha visto no cinema. As filhas dos americanos têm nomes curtos, como Mary ou Joan, têm cabelos loiros e bem lisos, tomam sorvete, mascam chiclete e vão para a colônia de férias.

Os filhos dos americanos têm nomes também curtos, como John ou Peter, têm cabelos loiros e lisos, mascam chicletes, andam de bicicleta, vão para a colônia de férias e adoram brigar entre eles. Os mais velhos pedem o carro dos pais emprestados e saem com suas namoradas.

Isso eu vi no cinema.

Os pais e as mães americanos deixam os filhos dormindo com a baby-sitter e vão ao ball dançar com os amigos. Lá eles enchem a cara, falam de negócios, fumam seus cigarros, e às vezes provocam uma briga em que podem praticar um pouco de boxe.

Depois os homens voltam pra casa pressionando um pouco de gelo contra o olho machucado, e confiam os volantes às suas mulheres, a quem chamam de honey e darling.

Um dia quis saber de meu pai:

– Como é que falam os americanos?

Hoje à noite você vai saber, ele disse. E quando a noite chegou, ele pôs seu velho rádio sobre a mesa, girou uns botões e de dentro dele saiu uma voz forte e metálica com uns ruídos estranhos, como se fritassem algo na frigideira.

This is voice of America.

Tornei-me um ouvinte cativo da Voz da América, serviço radiofônico que durante décadas funcionou como um dos emissários da política americana para a América Latina.

Não entendia uma palavra, mas pontualmente, no mesmo horário, eu aguardava meu pai girar uns botões do seu velho rádio pra sintonizar mais uma vez a Voz da América.

This is voice of America.

A gente ia pra a praia nos fins de semana, e meu interesse era bisbilhotar aquelas casas. Meus pés afundavam na areia, se enroscavam na grama rasteira, eu esticava o pescoço e olhava sobre o ombro. Dali de uma daquelas casas deveria sair algum americano e dizer alô. Eu sentiria medo, e esperaria que meu pai respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Mas, pra falar a verdade, eu nunca vi nenhum americano sair de uma daquelas casas. Soube muito tempo depois que eram missionários mórmons, mas houve quem dissesse que eram famílias de engenheiros contratados para auxiliar a Petrobras em trabalhos de prospecção de petróleo por estas bandas.

Meu pai ligava seu velho rádio sempre à mesma hora da noite, girava alguns botões e dele saía, em ondas, uma voz metálica e forte, cheia de ruídos.

This is voice of America.

Décadas depois fui ser estudante em Moscou. Só pra você ter ideia de como são as coisas.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2013/02/americanos-paulo-lima.html

VIII Jogos Florais de Niterói/RJ - 1978 (Trovas Vencedoras)

MAC Niterói
TROVADORES DE BRASIL E PORTUGAL
(exceto Rio de Janeiro)

1º TEMA:  MENSAGEM/NS

VENCEDORES


Guarda sempre esta mensagem
da própria vida, que diz:
- É feliz quem tem coragem
de acreditar que é feliz!
CAROLINA RAMOS - Santos

Queimei tudo, destruí
tuas mensagens de outrora,
mas, amor, não consegui
mandar as cinzas embora...
CIPRIANO FERREIRA GOMES - São Paulo

Expondo roupas rasgadas,
ora zombando, ora séria,
a vida põe nas calçadas
as mensagens da miséria...
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo
Na mensagem mentirosa
tu dizes: "Tenho saudade..."
e esta mentira gostosa
é bem melhor que a verdade...
IZO GOLDMAN – São Paulo

O mensageiro fiel
dos sonhos da meninada
é um barquinho de papel
correndo junto à calçada...
SARA MARIANY KANTER – São Paulo
Em tuas cartas havia
mensagens de amor, tão belas,
que eram falsas, eu sabia,
mas como eu gostava delas!...
SILVINA ANTUNES LEAL - Santos
As mensagens de esperança
que trocamos, tu e eu,
são hoje apenas lembrança
da esperança que morreu...
SILVINA ANTUNES LEAL - Santos

MENÇÕES  HONROSAS:


No meu olhar já cansado,
guardo estrelas, guardo luas,
as mensagens de um passado
feito de noites só tuas.
CAROLINA RAMOS – Santos

Vibrante, um sino badala...
Em sua mensagem santa,
é a voz de Deus que nos fala,
na voz do sino que canta...
SILVINA ANTUNES LEAL - Santos

Seis horas... O sol no adeus...
E entre os cânticos e os hinos,
chega a mensagem de Deus,
na voz plangente dos sinos!
DAVID DE ARAÚJO - Santos

Dentro da noite um queixume
a embalar meu sofrimento,
traz mensagens no perfume
que tu deixaste no vento...
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo

Das mensagens que mandaste,
o tempo apagou as linhas,
mas lembranças que deixaste,
jamais se apagam, são minhas...
GRAZIELLA LYDIA MONTEIRO - Belo Horizonte

Sou poeta... Em tudo eu ponho
um pouco de fantasia,
trazendo a ilusão e o sonho
na mensagem da poesia.
DAVID DE ARAÚJO – Santos

No meu refúgio deserto
tua mensagem me diz:
"Mesmo que o amor não dê certo,
quem ama, já é feliz.."
MARIA TERESA GUIMARÃES NORONHA - São Paulo
Na mensagem tu dizias:
"Chegarei na terça-feira!"
E eu descobri que três dias
demoram a vida inteira...
IZO GOLDMAN – São Paulo

Mensagem de amor não leio...
A velhice, esse tropeço,
fez com que pombos-correio
perdessem meu endereço.
SEBASTIÃO SOARES - Natal

As mensagens mais bonitas
que a natureza escreveu,
estão nas flores escritas,
e pouca gente entendeu.
THARCÍLIO GOMES DE MACEDO - Taubaté
Quando o céu em chamas arde,
um sino, ao longe, parece
levar mensagens à tarde,
que morre em tempo de prece.
VASQUES FILHO - Fortaleza

2º TEMA: ESPUMA/S

VENCEDORES


Trapos de espuma estendidos
pelas varandas do mar:
lenços molhados, vencidos
de tanto pranto enxugar...
CIPRIANO FERREIRA GOMES - São Paulo

Selvagem, de vida inquieta,
há no peito da cascata,
um coração de poeta
jorrando espumas de prata...
CIPRIANO FERREIRA GOMES -São Paulo
Tarde... Um chorão se curvava
para ver na água, faceira,
a flor do ipê que bailava
nas espumas da cachoeira!
ELIZABETH MARTHA NOTZ PASCHOAL - Taubaté
Cigano amor que me afagas,
tens a leveza das plumas,
a impermanência das vagas,
a inconstância das espumas...
HUMBERTO LYRIO - Salvador

Teu amor foi como a bruma
que o vento espalha no mar;
onda franjada de espuma
que nem chegou a chegar...
IZO GOLDMAN -São Paulo

Eu confesso, estou cansada,
cansada deste brinquedo:
- ser espuma apaixonada
pela sombra de um rochedo...
SARA MARIANY KANTER -São Paulo

MENÇÕES  HONROSAS:


Meu viver nunca é tristonho,
do mar copiando a investida,
eu jogo espumas de sonho
por sobre as pedras da vida
CAROLINA RAMOS - Santos

Bailando cheia de graça,
sobre as ondas, uma a uma,
a lua se despedaça
em precipícios de espuma.
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo

Felicidade acontece.
Bate à porta, entra, perfuma...
E depois desaparece,
como se fosse de espuma...
CIPRIANO FERREIRA GOMES – São Paulo


Ó praia, para que escondas
teu corpo, é que o mar costuma
trazer, na crista das ondas,
os rendilhados de espuma...
DAVID DE ARAÚJO - Santos

Ó bela praia, por serdes
rendeira, mesmo entre a bruma,
no tear das ondas verdes,
teceis as rendas de espuma...
DAVID DE ARAÚJO - Santos
A vida - senda de abrolhos -
tal como a espuma se esvai,
pondo mágoa nos meus olhos,
de onde a lágrima não cai...
HELVÉCIO BARROS - Bauru

O branco luar flutua
e sobre a espuma passeia:
é o mar carregando a lua,
que vai dormir sobre a areia.
LUCY SOTHER ALENCAR DA ROCHA - Belo Horizonte

Vão-se as espumas das águas,
nas correntezas sem fim...
Mas nunca passam as mágoas
que gemem dentro de mim...
OLÍMPIO M. DA CRUZ - Brasília/DF

Ondas de espumas coroadas
batendo em costas bravias
são espumas de meus nadas,
vividos todos os dias!...
FERRER LOPES - Queluz/Portugal
Alguns amigos parecem
espumas de maré cheia:
na crista, se as ondas crescem,
se as ondas baixam... na areia...
IZO GOLDMAN – São Paulo
Eu sei que não te acostumas,
mas deste amor o que resta?
Pobres vestígios de espumas
na taça de um fim de festa.
MARIA TERESA GUIMARÃES NORONHA – São Paulo

Com a maciez de uma pluma,
o mar, que de amor desmaia,
vestindo luvas de espuma,
alisa as formas da praia!
WALTER WAENY - Santos

A Natureza costuma
semear lições, ao léu:
em cada bolha de espuma
cabe todo o azul do céu!
WALTER WAENY - Santos

PARA TROVADORES DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

1º TEMA:  MÃO/S

VENCEDORES

Trocando afagos, um dia,
aprendi nobre lição...
- Nunca se encontra vazia
a mão que afaga outra mão!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA - Nova Friburgo

Bendita a mão calejada
que, à noitinha, se consola,
trocando o cabo da enxada
pelo braço da viola!
ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO - Niterói
Trovadores meus irmãos,
vamos viver de mãos dadas:
onde há correntes de mãos,
não há mãos acorrentadas!...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro
Não me gabo das conquistas,
nem dos troféus que são meus,
porque nas mãos dos artistas
há sempre o dedo de Deus...
OCTÁVIO VENTURELLI- Rio de Janeiro

Louvo essas mãos calejadas,
que, sem escola e instrução,
aprenderam, com as enxadas,
todo o alfabeto do chão!...
P. DE PETRUS- Rio de Janeiro

MENÇÕES  HONROSAS:


Os homens, nas mãos piedosas
de Cristo, pastor das almas,
em vez de palmas e rosas,
puseram cravos nas palmas!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo

Por mais, Senhor, que repartas
teus peixes na multidão,
há sempre mãos, de ouro fartas,
e outras carentes de pão!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo

As estrelas da amplidão,
nem todos conseguem vê-las...
E o sonhador põe a mão
muito além dessas estrelas!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo
Que as mãos dos homens, na terra,
corrigindo um erro antigo,
sobre as trincheiras  de guerra,
façam leiras... plantem trigo!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo
Buscando melhores dias
pelos caminhos da vida,
eu volto de mãos vazias,
porém, de cabeça erguida.
ANA MARIA MOTTA - Nova Friburgo

As tuas mãos tão suaves,
fiandeiras de carinhos,
tendo a esquivança das aves,
têm o aconchego dos ninhos.
JOÃO RANGEL COELHO - Rio de Janeiro

Nas obras que se encadeiam
em benefício da Paz,
bendigo as mãos que as semeiam
nos sulcos que a guerra faz!
JOSÉ COELHO DE BABO - Nova Friburgo

Faço o Bem todos os dias
e, depois que o Bem pratico,
olho as minhas mãos vazias
e vejo o quanto sou rico!...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro
Minhas mãos cheias de amor
plantam amor pelas ruas...
E mais não plantam, Senhor,
porque só me deste duas!...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro
Mãos humildes que se arqueiam
enchendo a terra de grãos...
Benditas mãos que semeiam
para os donos de outras mãos...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO - Rio de Janeiro

Eu sempre tentei ser justo
e sempre me injustiçaram...
- Confesso que foi a custo
que estas mãos não se mancharam.
NYDIA IAGGI MARTINS - Nova Friburgo
Por entre os vãos dos meus dedos
fugiram meus sonhos vãos,
que foram simples brinquedos
nos dedos das tuas mãos...
OCTÁVIO VENTURELLI – Rio de Janeiro

Foi um gesto de nobreza,
nas lides duras e bravas:
mãos livres de uma princesa
libertando mãos escravas!...
RODOLPHO ABBUD - Nova Friburgo

Ao traçar vidas sem rumo,
do desgraçado, do louco,
não sei não, mas eu presumo
que a mão de Deus treme um pouco...
WALDIR NEVES- Rio de Janeiro

2º TEMA: FAROL

VENCEDORES


Sobre os sonhos naufragados
nas águas do meu desgosto,
são os meus olhos molhados
faróis sem luz no meu rosto!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA - Nova Friburgo
Deus que é luz e que é bonança,
ante os meus olhos tristonhos,
pôs um farol de esperança
sobre a torre dos meus sonhos...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA - Nova Friburgo

Cai a tarde! Que tristeza!
Soluça o mar... E o farol
parece uma vela acesa
ante a agonia do sol!
ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO - Niterói
Noite quieta e, de repente,
dois faróis surgem na estrada,
e a escuridão sai da frente,
como quem foge assustada.
DURVAL MENDONÇA - Rio de Janeiro
Nenhum barco... o mar parado...
noite... silêncio... abandono...
E o velho farol, cansado,
parece piscar de sono.
DURVAL MENDONÇA - Rio de Janeiro
Como faróis enganosos,
porque a vaidade os conduz,
quantos homens presunçosos
dão mais sombra do que luz!
ELTON CARVALHO - Rio de Janeiro
Farol velho, não entendes
o contraste que eu te trago:
tu de esperanças te acendes,
eu, de saudades me apago...
OCTÁVIO VENTURELLI - Rio de Janeiro
Soltando as cordas da amarra
da barca do meu destino,
cruzei o farol da barra
dos meus sonhos de menino...
OCTÁVIO VENTURELLI – Rio de Janeiro

MENÇÕES  HONROSAS:

Minha alma, na qualidade
de alma de bom marinheiro,
guarda faróis de saudade
dos portos do mundo inteiro!...
ALOÍSIO ALVES DA COSTA – Nova Friburgo

Amor! Farol! Dois brilhantes
- preciosidades sem par -
ambos salvam navegantes:
um, da vida; outro, do mar!
CARLOS R. DE OLIVEIRA - Niterói

Meu farol mais verdadeiro
foi meu pai, quando eu menino,
pondo luz no meu roteiro
e um porto no meu destino.
DURVAL MENDONÇA – Rio de Janeiro

Ereto em sua tristeza,
o velho farol tomou
um jeito de vela acesa
pelos que o mar condenou.
DURVAL MENDONÇA – Rio de Janeiro

Quanta amargura incontida
n'alma dos cegos magoados...
Seus olhos tristes, sem vida,
são dois faróis apagados...
HEDDA DE MORAES CARVALHO - Nova Friburgo

Teu olhar que me fascina,
lembra tristeza, abandono,
farol envolto em neblina,
nas noites frias de outono!...
HEDDA DE MORAES CARVALHO - Nova Friburgo

Na rocha, em perenes rondas,
à noite, o farol seduz,
ao disparar sobre as ondas,
douradas flechas de luz!
JACY PACHECO - Niterói
Esse farol que, de longe,
nos torvos mares reluz,
tem a doçura de um monge,
lançando bênçãos de luz.
JOÃO RANGEL COELHO – Rio de Janeiro

Bate ao longe a Ave Maria...
A noite vem, devagar,
e o farol é a estrela-guia
para os pastores do mar...
MANITA - Niterói

Certos olhos, já cansados
pelo tempo que passou,
lembram faróis embaçados
que o mar da vida embaçou.
P. DE PETRUS – Rio de Janeiro

Depois que tudo termina,
na indiferença ou na dor,
nenhum farol ilumina
o naufrágio de um amor...
RODOLPHO ABBUD - Nova Friburgo

Na casa do faroleiro
esta ironia ferina:
Lá fora o imenso luzeiro...
- e dentro,uma lamparina.
RODOLPHO ABBUD - Nova Friburgo
Ao voltar, ela sorriu,
e aquele olhar de perdão
foi um farol que surgiu
nas trevas da solidão...
ROMEU GONÇALVES DA SILVA – Rio de Janeiro


Fonte:
Colaboração de Amélia Aparecida Silva/RJ

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 24. Um Borracho

O bonde vinha tão silencioso, ontem à tarde, como se por ele tivesse passado um sopro de solenidade histórica. Os passageiros, alinhados, taciturnos, pareciam compenetrados de representar algum papel de responsabilidade. Ou dir-se-ia que iam jogar a própria vida numa linha de fogo, logo ali adiante.

A certo momento, entrou um bêbedo, que mal se sustinha nas pernas, como um fardo que trepasse a custo arrastado por uma corda invisível. Mas falava sem parar e ria-se numa grande jovialidade enternecida e patusca. Tudo lhe ria, a barba crespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos pequenos e azuis, como dois botões de esmalte, o chapéu amolgado e caído sobre a orelha, os longos caracóis de cabelo bamboleantes sobre a testa como gavinhas de aboboreira, e que se haviam despregado da pastinha rala, transversalmente colada por cima da calva. Ria a próprio casaco de pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavam como bolsas, e ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com as pontas a esvoaçar como bandeirolas.

Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima de duas mulheres, que recuaram espavoridas "Scusate, signore!" E tirou largamente o chapéu com a mão que segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima das cabeças vizinhas. "Scusate, io sono un pó allegro, Oggi ê festa!" E disparou a cantar.

O condutor veio lá do fundo como uma flecha e, com o sobrecenho mais autoritário que pôde compor:

"Ó aquele, aqui não se canta!"

-"Non si può. Bene, bene. Non si può. È giusto. Si. Stà benissimo... Eh! condutore, mi dà un fiammífero?"

E, enquanto acamava com o polegar o fumo negro contido no pipo, cantou, numa voz que podia bem ser a de um ex-barítono:

-"Io voglio un fiammifero!" O condutor voltou a ele e, com redobrada energia no cenho e na voz:

-"Já lhe disse que não pode cantar!"

-"Eh!... io già sabia che non si può cantare. Domandavo a lei un fiammifero."

-"Não tem fiammifero. Você vai é já para baixo, se não fica quieto."

-"Pra basso, io?! Dio b...! E che ho fatto io, conduttore... O conduttore! che ho fatto io per esser messo giu... in mezzo alla strada?"

O homem largou o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com as mãos bambas, remexeu, e não encontrava o dinheiro. Tirou um lenço, uma laranja, duas metades de charuto toscano, um pedaço de barbante, uns restos de amendoim, uma medalha, um jornal; e resmungava: -"Come no! io tenho dinero. Si! Anche della carta moneta... Vucê truca cinque milla, conduttore? Ebbene, aspetti. Si, ió tenho... eh! Un pó de pazienza, caro."

A muito custo, deu com a nota num dos bolsos do colete, junto do relógio de prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cédula, fê-lo num gesto de triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e, estendendo a mão com o dinheiro ao condutor irritado, esboçou um canto jacundo e nobre como um ofertório, em voz retumbante: "Ecco, o signor, prendetela!"

O condutor não lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou o cantor a descer, com tácita aprovação dos demais passageiros. Quando se viu na rua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão, gritando sonoramente, à maneira de insulto e de ameaça: "Portoghese! Vado dal presidente dello Stato!"

Mas o bonde já ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor. Precisamente nesse momento, eu ficava sério, e aquele homem alegre e inofensivo, posto do veículo abaixo como uma lata velha, me começava a interessar. Era a vítima simpática de um lote de imbecis. E eu no meio destes.

Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, devera ser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam os doidos, criaturas sagradas, ou como os gregos consideravam os devotos delirantes de Dionísios, condensadores momentâneos desse mistério de jovialidade e de exaltação que em certas épocas circula através das coisas, e preme os úberes da terra, e desata as ofertas do céu.

Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado para a rua pela austera
comunidade do bonde. E minha alma lhe dizia:

Ri, ri, ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua vontade. Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino de liberdade e de loucura alegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmão, minha vítima.

A tua risada não me alivia, mas vinga um pouco a minha ânsia recolhida de libertação impossível, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo das Regras, dos Horários, dos Regulamentos, dos Códigos e das Necessidades criadas.

Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! canta, nessa efusão de lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressão sem palavra de alegria vital, inconsciente, expansiva, cósmica, alegria do gafanhoto que salta e voeja, da maritaca gritadeira e gloriosa, da água que foge às guinadas fervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, de tudo que não é esta nossa desgraçada alma superficial de bicho domesticado e diminuído.

Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além ou aquém do Bem e do Mal, Homem! pobre Homem, bom Homem, meu irmão.

Ri, ri, ri, até que estoures de repente com o riso, como a cigarra a cantar, e acabes assim na mais bela das mortes, fulminado por uma explosão de vida!"

Agora, ao rememorar esta minha ode, com a pena entre os dedos, já não me parece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal é um vício detestável. Embriaguez por embriaguez, é preferível uma consciência clara e um sentimento profundo e sutil das realidades. Também isto é uma espécie de bebedeira; mas lúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo de um vício artificial.

"Sede duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e a verdade é que a dureza é um ingrediente da vida e uma condição de ordem."

Nada mais saboroso do que o diálogo de Tolstói com a sentinela do Cremlim. Esta enxotava um mendigo de certo lugar onde não se permitia a permanência de estranhos. Tolstói aproxima-se, vê, sofre, e aborda o soldado, perguntando-lhe se não conhecia os versículos do Novo Testamento em que se recomenda tratar o próximo como a um irmão. Retruca o militar: "E o senhor não conhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço."

Palavra profunda! A primeira necessidade é cumprir cada um o seu dever particular, o seu dever concreto, positivo, limitado, pequenino.

O dever particular às vezes é duro, como pedra, como prego, duro como pau, mas é dele que se faz a ordem, a ordem que é edificação, que é obra, que é abrigo e desfrute, oficina e palácio, lavoura e escola, a ordem que é civilização. Os deveres mais gerais são também mais flutuantes: discutem-se; oscilam com a temperatura do sentimento, com as marés da idealidade. Mas o dever imediato e cotidiano é fixo e indiscutível: não há senão obedecer-lhe. E a obediência é a segurança e o alimento de cada um e de todos. Coisa insignificante, um homem que regularmente cumpre os seus deveres de cada dia: coisa majestosa, uma nação em que todos procedem assim!

O ideal é talvez juntar ao livro de Tolstói a espada do soldado. Em todo caso, eu daria ao soldado uma fria aprovação, e a Tolstói um abraço.

Fonte:
Domínio Público

Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XIX)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

FALAS DE CIVILIZAÇÃO
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

GOZO OS CAMPOS
Gozo os campos sem reparar para eles.
Perguntas-me por que os gozo.
Porque os gozo, respondo.
Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente
E ter uma noção do seu perfume nas nossas idéias mais apagadas.
Quando reparo, não gozo: vejo.
Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,
Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos
À dureza fresca da terra cheirosa e irregular;
E alguma cousa dos ruídos indistintos das cousas a existir,
E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas,
E só um resto de vida ouve.

HOJE DE MANHÃ

Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
assim quero que possa ser sempre —
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.

NÃO BASTA

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

NAVIO QUE PARTES

Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades do que não existe,
Sinto-a em relação a cousa nenhuma;
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade.

NOITE DE SÃO JOÃO

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

NUNCA SEI

Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ter uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?

O ESPELHO

O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.

ONTEM O PREGADOR

Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer.
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse faze-lo zangar-se.

O QUE OUVIU OS MEUS VERSOS
O que ouviu os meus versos disse-me: "Que tem isso de novo?
Todos sabem que unia flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, (?.......... )
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, diretamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.

O ÚNICO MISTÉRIO DO UNIVERSO

O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas — eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.

O UNIVERSO

O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 3

Pegadinha 9

Confesso que me simpatizei com ela.

O verbo simpatizar, como também seu antônimo antipatizar não são empregados com pronomes. Portanto, escreve-se correto, grafando-se assim:

Confesso que simpatizei com ela.

Abaixo, seguem outros exemplos de frases corretamente escritas:

Você simpatizou com a moça, mas ela antipatizou com você.
Antipatizo com políticos em geral.
Simpatizamos com a nova professora.
Eles antipatizam conosco.

Pegadinha 10

Ela quer se aparecer.

Isso é o fim da estrada da ignorância. Daí em diante, só resta adentrar no campo da bestialidade.

Certos verbos são essencialmente pronominais como suicidar-se, por exemplo. Outros, porém, jamais podem ser usados com pronomes, como os verbos da dica anterior, simpatizar ou antipatizar. Trazemos um desses verbos que jamais são usados com pronome, que é o verbo aparecer. Esse é um típico verbo intransitivo. Não admite voz reflexiva, objetos de espécie alguma. Não se pode aparecer ninguém e, também, aparecer a si mesmo. Escreve-se corretamente, assim:

Ela quer aparecer.

Pegadinha 11

Começou nevar hoje cedo em Urubici.

Certas notícias são dadas de modo negligente, sem nenhuma preocupação com as regras do idioma. O verbo começar forma locução com outro verbo, no infinitivo, por intermédio da preposição a.

Exemplos:
Nice começou a chorar.
Naquela hora, Eliane começou a rir.
Começou a chover.

Eis a frase do topo corretamente escrita:

Começou a nevar hoje cedo em Urubici.

Pegadinha 12

Vou mostrar-lhe meu caderno, mas não repare a desorganização.

O verbo reparar assume dois significados. O que irá determiná-los é a presença ou não da preposição em. Veja, a seguir:

Com a preposição em significa notar, observar:

Repare nos exemplos que damos nesta lição de gramática.
 
Entre, mas não repare na bagunça.
Posso escrever, porém não reparem em meus erros de português.
Sem a preposição em, significa consertar, indenizar:
O técnico reparou o computador que estava avariado.
A empresa reparou os danos causados.
O juiz condenou o prefeito a reparar os prejuízos sofridos pelos camelôs.
O mecânico reparará o motor do carro.

Então escreve-se corretamente a frase original da seguinte maneira:

Vou mostrar-lhe meu caderno, mas não repare na desorganização.

Pegadinha 13

Residente à Rua Joana Sartóri.

As palavras residente, morador, situado e sua forma reduzida sito não admitem a preposição a para ligar-se ao respectivo logradouro, mas, sim, a preposição locativa em. Não se diz, por exemplo, que um imóvel está situado a Campinas, porém em Campinas.

Veja os exemplos que seguem:

O escritório, sito na Rua Filisbina, recebe seus clientes de segunda a sexta-feira.
O prédio está situado na Avenida Duque de Caxias.
Márcio, morador na Travessa Cotia, prestou depoimento ontem.
Resido na Alameda Tabajara.

A frase do topo escrita corretamente fica assim:

Residente na Rua Joana Sartóri.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Raquel Ordones (A Vida Segue)

Fonte:
http://raquelordonesemgotas.blogspot.com

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte XIII – Estátuas

O Satanás ao sair do Paço, levando consigo a filha, parou um momento no largo, procurando apertar o coração para lhe conter as palpitações.

Ah! parecia incrível aquilo... tê-la de novo, louca embora, embora desonrada, mas tê-la enfim, poder de novo apertá-la nos braços, purificá-la com o batismo dos seus beijos, tentar à força de carinhos e de afetos restituir-lhe a razão e a felicidade.

O outro vencera... que importava? O essencial para ele era possuir de novo a filha.

Amanhecia. Perto o mar cintilava espumando contra o cais. Passavam negros descalços, nus da cintura para cima, carregando os tigres, barris cuidadosamente fechados e ainda assim empestando o ar. O largo começava a encher-se de trabalhadores e catraieiros.

O Satanás compreendeu que era preciso sair dali. Podia causar suspeitas a sua presença naquele lugar, ao lado de uma mulher, cujo estado de loucura se via logo no desvario do olhar, no desalinho das roupas, no desordenado dos gestos.

E, arrastando consigo a filha, caminhou para o cais.

Um catraieiro acorreu logo:

- Uma canoa, patrão?

- Sim e depressa.

Mas, o catraieiro um brutamontes espadaúdo e barbado, de camisa de flanela branca listrada de azul, olhava agora com desconfiança para o Satanás. Via-se que hesitava, com receio de se ver comprometido em algum crime: receava conduzir aquele homem suspeito e aquela mulher de fisionomia estranha e de vestido ensangüentado, porque o pouco sangue perdido por d. Bias caíra sobre ela.

- Então! que é que esperas?

- Eh! patrão! quem é você?

- Homem, vamo-nos embora e deixa-te de falar, bruto! - gritou-lhe o escultor, metendo-lhe na mão uma moeda de ouro.

Não hesitou mais o catraieiro. Saltou para a canoa e ajudou a descer Branca e o pai.

- Pr'a onde arriba, patrão?

- Para a Lapa. Depressa.

Daí a pouco, saltavam os dous, pai e filha, na praia da Lapa, e entravam, por uma porta baixa, numa casa espaçosa, cheia de janelas.

Era o atelier do Satanás.

Sentia-se, desde a entrada, um cheiro incômodo de mofo, um ar abafado de casa longo tempo fechada, onde ninguém mora, onde ninguém vai. Ao entrar na sala principal, foi necessário que o escultor corresse imediatamente a abrir as janelas, tão forte, tão sufocante era o cheiro do gesso mofado.

Havia muito tempo que o Satanás não entrava ali. O seu tempo andava ocupado em outras cousas, nas correrias noturnas com o príncipe, nas conjurações, nas vigílias vagabundas pelas tavernas e pelas casas de batota. Pallingrini era um nevrótico. Passava meses inteiros na convivência única do copo e da espada, numa boêmia infernal, cheia de bebedeiras e de duelos, sem se lembrar da sua arte. De repente, vinha ao atelier, fechava-se lá oito dias, começava com entusiasmo uma estátua, um busto, trabalhava com ardor, numa impaciência febril, numa alucinação doentia, aborrecia-se, atirava ao chão a pá de modelagem, dava um pontapé no camartelo, e voltava a atirar-se à vida airada, deixando a obra incompleta.

A sala era toda envidraçada. Enchiam-na, cobertos de pó, estragados pela umidade e pelo sol, os esboços do escultor.

Nada acabado, nada completo. Aqui um projeto de digladiador, sem cabeça, levantava-se, cheio de manchas de mofo, esticando os músculos atléticos. Adiante, uma cabeça de mulher, anjos de asas quebradas, grupos disformes, misturados com instrumentos de trabalho, ossos humanos, caveiras e manequins. Uma estátua do príncipe, modelada em gesso, estava atirada a um canto, partida pelo meio.

Foi para aí, para essa casa povoada de estátuas, que o escultor levou a filha: e ela também parecia uma estátua tão fria e tão branca como as outras, arrastando-se pelo atelier, durante os dous dias que se seguiram ao do malogrado duelo.

Foi debalde que o Satanás formou em torno da filha uma atmosfera de cuidados e de carinhos. A vida desaparecia aos poucos, visivelmente, daquele corpo consumido pela febre. E era o que torturava mais o escultor: ver que ela teria de morrer, sem voltar à razão, sem conhecê-lo, sem pela última vez chamá-lo - pai!

No terceiro dia, mais fraca do que nunca, Branca amanheceu ardendo em febre. Tinha a pele abrasada, os olhos vermelhos, o corpo sacudido de calafrios.

- Paulo! meu Paulo! gemia de instante a instante...

O Satanás torcia as mãos, alucinado, à beira do leito. Ao cair da tarde, a febre baixou: e ela ficou serena, com um longo filete de sangue ao canto da boca, murmurando sempre:

- Paulo! meu Paulo!

O Satanás abriu as janelas: extinguia-se já o fogo do ocaso. A noite crescia sobre o mar. Um dilúvio de cinzas invadiu o céu. Tudo cinzento. Longe, no ponto em que o céu beijava as águas, a primeira estrela erguia a pálpebra de ouro. E uma grande tristeza saía de tudo, velando tudo para os funerais do dia. Ainda uma vez a voz de Branca suspirou dentro:

- Paulo! meu Paulo!

O Satanás, à janela, soluçava, com o rosto escondido nas mãos. Mas, de repente, uma gritaria confusa soou lá fora. Um magote do povo aproximava-se entre aclamações: a alma brasileira andava na rua, exultando e cantando, na aurora da emancipação. E aos ouvidos do escultor chegou distintamente a aclamação popular:

- D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!

- Paulo! meu Paulo! - gemia a pobre louca na sua agonia.

O Satanás foi ajoelhar-se aos pés do leito. Oh! era demais! era demais! o outro vencia, aclamado e forte, enquanto ela, a sua filha, morria!

- D. Pedro! D. Pedro! - gritava o povo mais perto.

- Paulo! meu Paulo! - ouviu-se a voz de Branca, ainda uma vez.

A voz saía-lhe agora difícil e fraca, soluçante, como um gemido, da boca que a hemoptise pintava a carmim, e que na alvura polar da sua face parecia a poética e misteriosa flor das neves da Lapônia.

- D. Pedro! D. Pedro!

Todo o corpo da moribunda estremeceu, inteiriçaram-se-lhe os braços, vidraram-se-lhe os olhos. Um último suspiro lhe saiu da boca:

- Paulo! - e ficou imóvel.

O Satanás atirou-se de bruços, com um grande grito de desespero. E o povo passava justamente sob as janelas do atelier: e a aclamação troou, violenta e vitoriosa, invadindo a sala:

- D. Pedro! D. Pedro! D. Pedro!

O temperamento do Satanás reagiu logo contra a sua grande dor sagrada.

Morta... Que lhe restava fazer? renunciar a luta, fugir para longe, para muito longe da terra maldita onde sofrera tanto, e ir preparar nas trevas do seu exílio voluntário, a obra sinistra da vingança, fazê-la amadurecer longamente, até que soasse a hora oportuna para fazê-la rebentar aos pés do príncipe... Mas não quis partir sem levar a filha consigo. Não a levaria viva, mas modelada na pedra dura, que, nas suas alucinações ele procuraria aquecer e animar, a custa de beijos e de abraços.

E atirou-se desesperadamente ao trabalho. Todo o seu talento, estragado e consumido pelo ócio e pelas orgias, voltou como por encanto, ao apelo da dor suprema que lhe vergastava a alma. Ao toque dos seus dedos, o gesso dócil se submetia, obedecendo-lhe aos caprichos da inspiração.

Toda a noite e toda a manhã seguinte, o escultor trabalhou sem descanso. O atelier, abandonado e poeirento, encheu-se de alegria e de vida. O sopro do trabalho animava tudo aquilo; e quando, de madrugada, o sol entrou vitoriosamente pelas janelas, vindo encontrar o artista embebido na sua obra piedosa, as estátuas pareciam sorrir...

Pouco a pouco, da massa informe do gesso, Branca saia, ressuscitada pelo amor do artista. Cercaram-lhe a fronte as ondas do cabelo, rasgaram-se-lhe os olhos, arqueou-se-lhe a boca dum sorriso inocente, empinou-se-lhe o colo virginal.

E ela aparecia assim aos olhos do escultor e ao coração do pai, tão pura e tão bela, como naqueles tempos felizes em que o alcoviteiro do príncipe ia purificar-se, ao seu lado, no pequeno santuário da rua do Conde...

Quando a estátua ficou pronta, o estatuário ajoelhou-se. Duas lágrimas rolaram pelas suas faces: e ele rezou, talvez pela primeira vez na vida.

Mas, acabada a oração, o Satanás transfigurou-se: era outra vez o mesmo espírito forte, o mesmo ousado e diabólico espírito da vingança e do ódio.

Levantou-se, olhou para o mar que se estendia infinito e calmo, ergueu o braço num juramento solene de nunca esquecer e nunca perdoar...

No outro dia, o Satanás fazia-se de vela, a bordo de um navio negreiro, para longe das terras do Brasil; e Branca ficava sob a lápide fria de uma sepultura do cemitério do Carmo, transformando a sua carne moça na seiva que mais tarde rebentaria em rosas na terra que ela purificara com a sua rápida passagem.
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continua…parte final