domingo, 9 de março de 2025

Adega de Versos 131: Erigutemberg Meneses

 
    

Eduardo Martínez (O Leitor)

Lia tudo! Sempre leu, antes mesmo de ser alfabetizado, quando ainda desconhecia a ordem certa das letras nas palavras. Era desse tipo que gostava de ler até nas entrelinhas, mesmo que elas fossem apenas espaços vazios para a maioria. Mesmo aquelas letras minúsculas nos rótulos de cosméticos eram minuciosamente exploradas. 
       
Ele se entretinha com tudo que possuía letras, palavras, frases pequenas e enormes. Não que ligasse para o tamanho delas, haja vista conseguia vislumbrar beleza em qualquer bula de remédio. Sua mãe não se conformava, parecia até falta de educação. Quantas e quantas vezes havia sido repreendido por ela: "Largue esse livro, menino! Não vê que temos visita?"

As crianças na rua corriam de um lado para outro, enquanto a sua mente viajava o mundo nas páginas, muitas vezes amareladas, dos livros da estante da avó. Não que ele também não brincasse com a galerinha, pois o suor chegava a pingar da sua testa, caía nos olhos e ardia. Ele esfregava as vistas com o dorso da mão, balançava a cabeça e, então, algo parecia guiá-lo para a leitura, mesmo que na imaginação. Nessa idade já trocava algumas figurinhas com o Machado de Assis, com o Lima Barreto, arriscava até umas investidas na Clarice Lispector.

A adolescência foi entrando, os interesses aumentaram, começou a namorar. Quando ia ao cinema com a namorada, ele não queria sair após o final da película. Ah, os letreiros eram o máximo para ele. A namorada tentava arrastá-lo pelo braço, mas ele, firme, resistia. "Quem é que se importa com os créditos de um filme?", insistia a namorada. Ah, para ele era a parte principal, seus olhos corriam a tela na frustrada tentativa de captar todas as palavras. 
    
Tanto é que, já caminhando pela calçada, ele tentava adivinhar o que era aquilo que ele deixou de ler. "George de quê? Produzido por quem?" Nem prestava atenção no som que cismava em continuar saindo da boca da namorada. Ele apenas olhava aqueles lábios vermelhos se abrindo e se fechando, pois, pensava, talvez as respostas para os seus questionamentos pudessem sair dali a qualquer momento. Mas nada! 

Quando já estava na sua cama, muitas vezes a madrugada lhe fazia companhia. Todavia, a sua mãe, sempre a sua mãe, lembrava-o que a hora de ir para a escola havia chegado. "Que sono!!!" Seus pés, quase pregados, arrastavam-no até o banheiro, já que os olhos pareciam que ainda estavam fincados no cinema na frustrada tentativa de captar todas as letrinhas, por mais miúdas que fossem, cismavam em correr pela telona.

Chegou a vida adulta! E como chegou rápido esse tempo de tantos compromissos inadiáveis! Não tinha carro, ia a pé pro trabalho. Lia todas as placas, todas as ruas, mal entrava no trabalho, uma montanha de papéis lhe eram atiradas na mesa pela chefe: "Leia tudo e me faça um relatório!". Ela era carrancuda, ele se divertia com a montanha de palavras espalhadas à sua frente. Todos os outros empregados olhavam com pena para aquele infeliz. Nem desconfiavam que aquilo era seu oásis.

Acabou se casando. Não foi com aquela namorada que cismava em puxá-lo pelo braço. Não que ligasse para isso. Os filhos vieram com o tempo, seus cabelos foram perdendo a cor, sua barriga não cresceu como a da maioria dos maridos, pois ele se alimentava principalmente de palavras, frases, orações subordinadas, verbos transitivos e intransitivos, vocativos. Até que um dia, sentado na cadeira de balanço da varanda, suas mãos fraquejaram e soltaram o volume, que despencou sem qualquer cerimônia no piso gelado. A cabeça pendeu para o lado, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz. 

O enterro foi breve, não havia muita gente, a chuva era fina. Todos foram embora antes mesmo do coveiro começar a jogar a terra sobre o caixão. O silêncio tomou conta do cemitério São João Batista, até mesmo os passarinhos pararam de cantar. Lá embaixo, seu corpo rijo e gelado parecia se incomodar com algo. Tentou se mexer, mas sem sucesso. "Cadê meus óculos?", A angústia o tomava por inteiro. Ele não conseguia decifrar as palavras na sua lápide.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Baú de Trovas “15”

 
701
Casou-se. Tem nova vida.
E como me custa agora,
eu, que a chamei de "querida",
ter que chama-la "senhora"!
ANÍBAL VITRAL MONTEIRO
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702
Tropeço nos seus brinquedos...
Na saudade que me embala,
vejo marcas de seus dedos,
numa parede da sala!
ANTÔNIO CARLOS TEIXEIRA PINTO
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703
As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
ANTÔNIO SIÉCOLA MOREIRA
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704
Quando os sonhos esvanecem
e os amores acabarem,
os poetas aparecem
para ilusões recriarem.
ARTHUR THOMAZ
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705
Nós nos vemos com tal pressa
e tamanha raridade,
que, mal o encontro começa,
começo a sentir saudade.
BITENCOURT DE SÁ
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706
Veneno e inveja, empreiteiros
da enorme parede erguida
entre os nossos travesseiros
e entre a minha e a tua vida...
DARLY O. BARROS
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707
Sonhei que estava abraçando
alguém que tinha teus traços.
Quando acordei, soluçando,
tinha a saudade nos braços!
DULCE DE MELLO MONTEMÓR
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708
Vou meu rancho erguer no fundo
do sertão cheirando a flor,
e viver longe do mundo,
nos braços do meu amor.
DURVAL BORGES
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709
Saudade — tempo da infância,
que transcorre de repente...
A gente mede a distância
pela saudade que sente!
EDMUNDO RÊGO FERREIRA
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710
Na queda, não esmoreço:
levanto-me e sigo avante,
pois é a pausa de um tropeço
que torna o passo gigante!
EDWEINE LOUREIRO
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711
Contei ao céu meu desgosto
e o céu afligiu-se tanto
que pôs cinza sobre o rosto
e fogo desfez-se em pranto.
ELIAS BARBOSA
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712
Que me imporia ser um louco,
por gostar de ti, meu bem?!
Importa é que, pouco a pouco,
fiques louquinha também.
EVANDO MARINHO SALIM
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713
Sonhando escuto teu passo,,,
Doce raio de esperança!
— Tão distantes pelo espaço,
tão juntos pela lembrança!
EVANGELINA MAIA CAVALCANTE
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714
Amor de espécie tão vária!
— Quem teve a ideia de por
a tanta coisa contrária
o mesmo nome de Amor?
FERNANDES COSTA
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715
Há quem diga que sou feio,
que sou triste e vivo só.
Mas o calor de teu seio
dos outros me faz ter dó.
FERNANDO MEIRELLES
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716
Das glórias do meu passado,
a maior — meu peito diz —
seria haver conquistado
um amor que não me quis.
FLORÊNCIO ARGOLO
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717
— "Adeus!..." disseste-me, "esquece
minhas constantes ternuras..."
Ah, como se o sol pudesse
deixar a Terra às escuras!..,
FRANCISCO PEREIRA DA SILVA
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718
A dor da tua partida,
que não me saí da lembrança,
já me levou mais que a vida:
levou-me toda esperança!
FRAZÃO TEIXEIRA
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719
Na Ordem dos Capuchinhos,
sem espinhos não há flores.
Haja flores sem espinhos
na Ordem dos Trovadores!
FREI MARCELINO DE ANGATUBA
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720
Se tens de vir e voltar,
não venhas, por caridade!
— Uma esperança a brilhar
sempre é melhor que a saudade...
FLÁVIO JARBAS
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721
Quando o teu rosto de santa
junto ao meu empalidece,
a minha ternura é tanta
que o beijo termina em prece!
GARCIA ROSA
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722
És mais bela do que a rosa,
és mais pura do que a neve:
não sei descrever-te em prosa,
e o verso não te descreve!
GERALDO ALVIM
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723
Ermo de ti, cheio de ânsia,
meu olhar nos longes erra...
Oh, como eu amo a distância,
quando a distância te encerra!
GÍLKA MACHADO
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724
Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá.
Não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá.
GONÇALVES DIAS
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725
Ante a “maçã” do pecado,
na dúvida, vou sofrendo:
- Se como... sou castigado;
- Se não como... me arrependo!...
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO
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726
Benditas são as paredes,
testemunhas sem pudor,
que amparam ganchos e redes
... e ouvem murmúrios de amor!
HÉRON PATRÍCIO
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727
Triste é alguém ser como aquelas
paredes velhas, pesadas,
que têm portas e janelas
eternamente fechadas...
IZO GOLDMAN
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728
Amo-te mais, cada dia;
longe de ti — que sou eu?
Sou como a concha vazia
de quem o mar se esqueceu.
JENY DE LIMA
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729
O beijo da despedida
é triste, mas mesmo assim
podias passar a vida
a despedir-te de mim...
JERÔNIMO BRAGANÇA
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730
Se o fracasso tem dois lados,
vale muito a decisão:
chorar os planos frustrados
ou bendizer a lição.
JÉRSON LIMA DE BRITO
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731
Minha ventura, querida,
é ser, com o maior fervor,
escravo de tua vida
e dono do teu amor!
JOÃO GUIMARÃES
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732
Você ficou aturdida
na bagunça de meu quarto.
Se visse a da minha vida,
você teria um infarto.
JOSÉ EL-JAICK
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733
Olhos que brilham de vida,
mas o corpo já se cansa.
Em cada ruga, uma lida…
no tempo vive a lembrança.
JOSÉ FELDMAN
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734
Encontrar-te em cada sonho
e te perder em seguida...
Este é o clichê mais medonho
das noites da minha vida!...
JOSÉ OUVERNEY
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735
Diz ela, vendo a intenção
de seu noivinho devasso:
- mude o rumo dessa mão...
Minha coceira é no braço!
JOSÉ TAVARES DE LIMA
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736
— "Não há mãe melhor que a minha!"
Diz a filha à mamãezinha.
E a mãe, sorrindo: — "Filhinha,
melhor que a tua, era a minha"...
LIA PEDERNEIRAS DE FARIA
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737
Que momentos cruciais
nos umbrais das invernadas,
quando ecoam nossos ais
pelas decisões erradas...
LUCIANA PESSANHA PIRES
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738
Se há tantos pobres que pedem
e a todos te vejo dar,
nunca teus olhos me neguem
a esmola do teu olhar.
MANUEL GIRALDES DA SILVA
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739
Na humildade dos seus passos,
lembre sempre a decisão
de dar a mão, nos fracassos,
a quem lhe estendeu a mão...!
MARA MELINNI GARCIA
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740
Não vou culpar o destino
pelos erros cometidos;
culpo, sim, meu desatino
por impulsos incontidos.
MARINA VALENTE
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741
O nosso nome, juntinho,
gravei num galho de ipê;
e o povo todo, todinho,
inveja a mim e a você!
NAIR STARLING
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742
É teu amor ouro puro,
por isso sou rica assim;
e as outras todas, te juro,
morrem de inveja de mim.
ODÉLIA BELÉM BONESCHI
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743
Sempre que a pinga os refresca,
qual mentira tem mais graça:
- a do Juca, quando pesca,
ou do Joca, quando caça?...
ORLANDO BRITO
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744
Ei-lo, de todos os casos,
o mais estranho do mundo:
como, nuns olhos tão rasos,
cabe um olhar tão profundo?
PEREIRA DA SILVA
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745
Decidiste impor intrigas,
mas a distância, sem voz...
Diz que é melhor nossas brigas
que esse silêncio entre nós!
PROFESSOR GARCIA
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746
Por crer sempre em que lhe deve,
meu coração é um credor
que vai sofrer muito em breve
perdas e danos no amor.
SÉRGIO BERNARDO
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747
Dá-me os teus olhos profundos
e o mundo pode acabar!
Que importa o mundo, se há mundos
lá dentro do teu olhar!...
SILVA TAVARES
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748
Naquele encontro fatal,
ao olhar nos olhos teus,
tive a certeza final:
não era encontro, era adeus!
SÔNIA MARIA SOBREIRA DA SILVA
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749
De alguém que amamos, a imagem,
que está longe, vemos perto...
— Saudade é como miragem
que engana o olhar no deserto.
STÉLIO AUTRAN
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750
Quando passa o encantamento
de um amor que nos devora,
fica um saído de tormento
que nunca mais vai embora.
VITORINA SAGBONI TEIXEIRA
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José Feldman (Desabafo)

PRÓLOGO

A madrugada é um abrigo. Resumir uma vida inteira em poucas linhas é como tentar capturar o infinito em um frasco. Cada experiência, emoção e aprendizado é uma camada complexa que não pode ser reduzida à simplicidade das palavras. As nuances das relações, os desafios enfrentados e os sonhos cultivados se entrelaçam de maneiras únicas. Uma vida é um mosaico de momentos que, juntos, formam uma história rica e intricada. Assim, qualquer resumo sempre deixará de lado a profundidade da verdadeira experiência humana.

O sol se põe no pequeno quintal onde um homem de cerca de 70 anos, se encontra. O céu, tingido de laranja e roxo, parece refletir as cores de sua vida: um espectro de emoções, alegrias e tristezas, que se entrelaçam como as nuvens que passam lentamente. Ele respira fundo, sentindo a brisa suave que traz consigo o cheiro dos jasmins que florescem no jardim. Com sua cadela, Raio de Sol, deitada aos seus pés, decide que era hora de desabafar.
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DESABAFO

Desde a infância, fora moldado por pais que, embora judeus, não eram religiosos. Eles lhe ensinaram a importância dos valores, mas sempre o fizeram sob a rígida ótica dos mandamentos bíblicos. Cresceu ouvindo que deveria ser um homem de bem, mas em algum ponto, perdeu de vista o que realmente significava ser ele mesmo. A vida lhe deu rasteiras, e ele aprendeu a se levantar, mas a cada queda, um pedaço de sua essência se despedaçava.

Na juventude, enquanto trabalhava num laboratório, se apaixonou por Yasmin, uma mulher árabe, cujo sorriso iluminava até os dias mais sombrios. Juntos, enfrentaram o preconceito e a guerra que cercava suas vidas numa época de intolerância entre árabes e judeus, criando uma filha que, por um breve momento, trouxe luz ao seu mundo. Mas o destino, sempre cruel, não lhes deu tempo para sonhar. A menina foi tragicamente assassinada por assaltantes, e Yasmin, em um ato de desespero, tirou a sua própria vida, deixando ele em um abismo de dor e solidão.

Ele se lembra da noite em que tentou tirar a própria vida, atormentado pela crença de que Deus o condenara por amar alguém fora de suas crenças. A culpa e o luto se tornaram sombras que o acompanharam, enquanto buscava ajuda em terapias que nunca tocavam a raiz de sua dor. E assim, a vida passou, sem que ele conseguisse concluir nenhum projeto, sem que a sociedade e sua família entendesse a profundidade de suas cicatrizes.

Sozinho, se fechou em uma redoma e se lançou na literatura e na música, buscando preencher o vazio que parecia se alargar a cada dia. Mas, por mais que estudasse e se dedicasse, um sentimento de vazio o acompanhava. O olhar desaprovador dos outros, que viam sua falta de formação acadêmica como um fracasso, só alimentava sua frustração.

A literatura, a música e outras paixões foram as âncoras que o mantiveram à tona durante suas tempestades emocionais. Quando a dor da perda de Yasmin e da filha Samara, se tornava insuportável, ele encontrava refúgio nas páginas de livros que o transportavam para mundos distantes. Autores o ajudaram a explorar as profundezas da condição humana, refletindo sobre a dor, a culpa e a busca por sentido. Cada página virada era um passo a mais em seu processo de luto, permitindo-lhe externalizar sentimentos que, de outra forma, teriam permanecido aprisionados em seu coração.

A literatura ofereceu não apenas uma fuga, mas também a capacidade de dar voz ao seu sofrimento. Ele começou a escrever, não como um autor, mas como um catarse*. Poemas e contos curtos se tornaram diários de sua dor, em que registrava suas lembranças, seus medos e suas esperanças. As palavras se tornaram um espaço seguro onde ele podia chorar, gritar e, eventualmente, aceitar a realidade de sua perda.

A escrita se transformou em um refúgio e um processo terapêutico essencial em sua jornada de luto. Desde o momento em que a dor da perda se instalou em seu coração, ele percebeu que precisava de uma forma de liberar suas emoções e dar voz ao que sentia. A caneta se tornou sua aliada, e o papel, seu confidente. Cada palavra escrita era uma liberação. Começou a escrever como uma forma de catarse; suas emoções, antes sufocadas pelos traumas, encontravam espaço para serem expressas. Ao registrar suas lembranças, lágrimas e angústias, ele não apenas falava sobre a dor, mas também a confrontava. A escrita ofereceu um meio de transformar o sofrimento em algo tangível, permitindo que ele olhasse para sua dor de uma nova perspectiva.

Ao escrever, se viu mergulhado em um processo de reflexão. As páginas tornaram-se um espelho onde ele podia observar suas lutas internas. Ele começou a questionar suas crenças, suas decisões e as influências que moldaram sua vida. Começou a construir narrativas que lhe permitiram ressignificar suas experiências. Ele escrevia para Yasmin e Samara, não apenas como figuras trágicas, mas como partes essenciais de sua história. Ao recontar suas memórias, ele pôde celebrar os momentos felizes que viveram juntos, transformando a dor da perda em uma homenagem ao amor que compartilhavam. Ao escrever sobre essa experiência, ele conseguiu explorar sua dor e sua luta interna. Através das palavras, ele começou a libertar-se do fardo da culpa, compreendendo que o amor não era um pecado, mas uma força poderosa que transcendia barreiras.

Em suas reflexões, começou a escrever cartas que nunca seriam enviadas, endereçadas a Yasmin e à sua filha. Essas cartas, embora não destinadas a serem lidas, tornaram-se uma forma de diálogo com aquelas que ele perdera. Essa prática o ajudou a sentir uma conexão contínua com elas, como se pudesse compartilhar seus pensamentos e sentimentos, mesmo na ausência física.

A música, por sua vez, era como um bálsamo para a alma. Encontrou consolo nas melodias de compositores clássicos, cujas sinfonias pareciam compreender sua tristeza. As notas de Chopin e Beethoven ecoavam em sua casa, preenchendo o ar de uma beleza que contrastava com sua dor. Ele aprendeu a tocar saxofone, cada som se tornando uma extensão de seu coração partido. Quando a melancolia o envolvia, ele se entregava à música, permitindo que as emoções fluíssem através de suas mãos.

A música também o conectava a memórias de Yasmin. Havia uma canção que ela costumava cantar para a filha, Acalanto, de Caymmi; ao tocá-la, sentia como se estivesse revivendo aqueles momentos e as lágrimas vertiam por sua face como cachoeiras. Essa conexão o ajudou a navegar pela dor, transformando-a em algo mais palatável. Em vez de ser um mero espectador de sua tragédia, ele se tornou o protagonista de uma sinfonia de luto e amor.

Através da literatura e da música, ele encontrou um propósito renovado, um modo de honrar a memória de Yasmin e de Samara. Ele entendeu que a vida continuava, e que, apesar das cicatrizes, ainda havia espaço para o amor àqueles que lhe foram caros na vida.

A solidão tornou-se sua única companheira, até que encontrou um amor inesperado nos animais.

Seus cães e gatos tornaram-se irmãos, preenchendo o vazio que a vida lhe deixara. Raio de Sol, uma cadela resgatada das ruas, entrou em sua vida como um sopro de esperança. Com ela, redescobriu a capacidade de amar. Ela é a razão de seu sorriso, o motivo de suas caminhadas e as tardes de sol. Com ela ao seu lado, ele se sente menos sozinho, mesmo que a dor da perda ainda o assombre, mesmo após 50 anos.

Agora, sentado no quintal, olha para Raio de Sol, que o observa com aqueles olhos cheios de amor incondicional. Ele sente que, apesar de tudo, ela é a sua salvação. Com diversos problemas de saúde e o tempo se esvaindo entre os dedos, ele reza diariamente. Não por um Deus que o abandonou, mas por uma vida mais longa para Raio de Sol. Que sua cadela tenha o tempo que ele não pôde dar à sua filha, que possa sentir o amor que ele não pôde oferecer à Yasmin.

“Se eu tiver que partir”, pensa, “quero que seja ao lado dela. Que minha alma a acompanhe, onde quer que vá.” A paz verdadeira parece distante, mas ele sente que, ao menos, não estará sozinho na partida.

O amor que ele dá e recebe de Raio de Sol, que, mesmo em meio à dor, lhe proporciona momentos de pura felicidade. E assim, ele sorri, no silêncio, sabendo que, apesar de tudo, tinha vivido um amor que transcendeu todas as barreiras e preconceitos.

Ele fecha os olhos, desejando que o amor que sente por sua cadela seja o último legado que deixará ao mundo.
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EPÍLOGO

A madrugada é a mais fiel companheira, é ela que abraça e envolve em seu cobertor.

Madrugada, suave manto,
que me envolve em teu calor,
teu silêncio é um canto,
que acalma minha profunda dor.

Em teus braços a solidão se esconde,
e as estrelas, testemunhas do meu sofrer,
a lua, amiga que responde,
a cada lágrima que insiste em verter.

Teus sussurros são bálsamo e abrigo,
enxugando as dores que venho a sentir,
teu cobertor um carinho antigo,
que me ensina a esperar e a resistir.

A noite tece sonhos em meio ao pranto,
e na escuridão encontro a luz.
Madrugada… teu amor é um canto,
que me abraça, que me conduz.

Em cada pensamento que flutua,
teu silêncio se torna um lar.
Madrugada… doce e nua,
é em ti que aprendo a amar.

E quando a aurora, tímida, chega,
leva com ela o peso da dor,
mas em ti, ó madrugada, o mundo se aconchega, 
pois é em ti que vive o amor.
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* Catarse = em psicologia, liberação de emoções ou tensões reprimidas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas, não concluiu o curso superior de psicologia na FMU. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil-Suiça, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, União Brasileira dos Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, O Voo da Gralha Azul dedicado exclusivamente às trovas e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Divorciado há alguns anos, assina seus escritos por Campo Mourão/PR, onde pertence a entidades da região. Publicou mais de 500 e-books. Dezenas de premiações em trovas e poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing