O homem de estático semblante, sem a dinâmica que os traços da face oferecem, recostado à porteira, como se fosse possível ao inteiramente inerte suportar o peso dos vivos, mesmo que os vivos sejam quase mortos, assistia ao drama que a terra passava. As plantas e os bichos em prolongada agonia da fome e da sede, a tombarem nos sertões sob os acordes mais do que fúnebres da seca desoladora. Do lado de fora da cerca uma grande árvore de galhos desfolhados parecia abrir os braços em súplicas dos horrores, clamando por água que pudesse sanar a secura das raízes ou sarar as feridas do calor abrasante. Sob o vegetal, morreu a vaca malhada, de couro branco e manchas negras que desenhavam o mapa de todas as desditas. E o predador dos céus, de um preto muito preto, um desses com a marca da realeza no encarnado da cabeça, desceu para cumprir o desiderato da hora: limpar o mundo das podridões e das carniças.
Rios que secaram e inúteis barreiros, leitos expostos aos ares do nada, infeliz momento da natureza chorando o pranto seco da caatinga, sem lágrimas! A mulher morena, de pele curtida, segurava nas mãos os filhos que tinha! Crianças tristonhas, de semblantes parados, olhando o infinito das coisas em busca de um sinal que fosse, de nuvens chegando. Nada para ver e nada para olhar! O caçador que armou a espingarda com a pólvora e o chumbo não encontrou a caça do dia e de volta pra casa, com o vazio no bornal, fez a mãe de sua prole cozer a palma endurecida e amarelada de antigo plantio. O mandacaru na panela deixou-se virar em baba, imitando a quiabada bem cuidada, alimentou a família e sufocou o grito enorme dos estômagos em contrações do oco. Há muito não se tem por cá, nessas bandas do Sertão, Canindé acima e Canindé abaixo, comida de gente que mate a fome. E na mesa do almoço, o menino de olhar pidão fitava o prato, absorto! O homem, então, sofre a metamorfose de sua natureza e em bicho se transforma!
O cavalo mais que esquálido, de costelas à mostra e de pernas cambaleantes, passou à frente do carro, atravessando lentamente a rodovia, buscando, na verdade, um lugar no qual pudesse expirar definitivamente. Entregar-se ao destino cruel do tempo e da hora! Ao longe, a égua e o seu filhote procuram na terra um resto de relva, do verde viçoso de um antes de esperanças nascentes, mas é a palha do chão que engana o herbívoro animal, adulto e velho, de cujas tetas não goteja mais o branco do leite. Resistem os carneiros, o bode e a cabra, mesmo que magros, sem a lã das friorentas paragens e de pelos quebradiços, indeléveis marcas das secas vividas, da água faltando e do capim rareando. Se agrupam e o rebanho segue, investindo aqui e ali na amarelada penugem que ainda resta no solo. Comem até pedra, explica o moço, justificando o pouco de vida na paisagem desgraçada dos sertões esturricados.
O Velho Chico, porém, nas proximidades daquela secura, corre caudaloso e fértil, traz nas águas o húmus que faz a terra parir comida para alimentar a gente e o gado, para nutrir o homem trabalhador e o bicho pachorrento, a vaca e o boi, mas também a galinha poedeira e o peru de roda. Se à força da bomba a água sai e vai regar o roçado, cresce o quiabo e o milho brota, o feijão desabrocha e a mandioca mergulha nas intimidades do telúrico, a cebola ganha peso, cheiro e cor para temperar na cozinha a costela ou a cabidela, a buchada ou a dobradinha, o sarapatel de sangue pisado ou o fígado reluzente do criatório de casa. Não é à-toa que as experiências da Companhia Hidroelétrica do São Francisco mostram a valia da irrigação, complementando a geração de energia, dando à criatura a completude do humano. Engenheiros humanizados, inquietos com a natureza, insatisfeitos com a dignidade do habitante das desprezadas margens do grande rio. Gerentes dos convívios, das vivências e das convivências tupiniquins!
Eis o pranto da caatinga, que é o choro dos sertões, que vi e que ouvi em minha viagem a Xingó!
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* Crônica de uma viagem a Xingó. Um diário da paisagem e da gente simples nos caminhos de Canidé. Visões que tive de uma seca enorme, contrastando com a fartura das margens do rio São Francisco.
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GERALDO JOSÉ MARQUES PEREIRA nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.
Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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