sábado, 28 de março de 2009

97* Aniversário de Nascimento de Luís Antônio Pimentel

Fotomontagem = José Feldman

Antônio Augusto de Assis (Cadeira de Poesias)


Carnaval

É sexta-feira,
véspera da folia.
Lá vai Maria.

Lá vai lavar em lágrimas
a vida ávida de vida,
sofrida vida dividida
em dívidas e dúvidas.

É sábado, é domingo,
é segunda, é terça gorda.
Roda no asfalto o samba,
geme o povo em sobressalto.
Roda rotunda a moça moma,
peitos nus lançando chamas.
Gemem bocas de crianças,
barrigas ocas
mendigando mamas.
Roda impávido o desfile
na avenida multicor.
Gemem pálidos
rostos esquálidos
desfilando a dor.
O sonho roda, geme o horror.

O samba-enredo, o medo em roda.
A serpentina, o ser penante.
A passarela, o pária ao lado.
O palanque, a pelanca.
O pandeiro, a pancada.
O sambeiro, o sem-nada.
O tamborim, o camburão.
O saxofone, o saque-sem-fundo.
A fantasia, a mão vazia.
A apoteose, a verminose.
A alegoria, onde a alegria?

O trilo do apito,
o grito do aflito,
o confete, o conflito.

É quarta-feira, cinzas.
Lá vai Maria.
Lavai, Maria.
Lavai o mundo, Maria.
Lavai o imundo,
mundo imundo vasto mundo,
lavai o mundo, Maria!
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Luolhar

Duas luas
viu Ismália
na noite em que enlouqueceu:
“viu uma lua no céu,
viu outra lua no mar”.

Bem mais louco,
vejo três,
quando me ponho a cismar:
a terceira é a que flutua
tentadoramente nua
na noite do teu olhar.
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Terceira infância

Meu neto
me disse um dia:
— Converse comigo, vô,
mas converse como amigo,
mais amigo do que vô.

Desfez-se logo a distância.

Conversamos.
Conversamos.
Conversamos.

Ele na primeira,
eu na terceira infância.
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Aurora bela

Da janela do meu quarto
vejo Aurora na janela.

Toda tarde, à mesma hora,
Aurora lá.
Que será que ela olhará?

Aurora, Aurora,
Aurora bela,
bela Aurora da janela,
Aurora
de olhar sem fim...

Se sobrar uma olhadinha,
por favor, olha pra mim!
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Por um beijo

Por um beijo eu lhe dou o que sou e o que tenho:
os bons sonhos que sonho, as plantinhas que planto,
a pureza, a alegria, as cantigas que eu canto,
e o meu verso se acaso houver nele arte e engenho.

Por um beijo eu lhe dou, se preciso, o meu pranto,
as angústias da luta em que há tanto me empenho,
as saudades da infância e do chão de onde venho,
as promessas que eu faço em segredo ao meu santo.

Por um beijo eu lhe dou meus anseios de paz,
minha fé na ternura e no bem que ela faz,
meu apego à esperança e ao que a possa manter.

Por um beijo, um só beijo, um momento de amor,
eu lhe dou meu sorriso, eu lhe dou minha dor,
o meu todo eu lhe dou, dou-lhe inteiro o meu ser!
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Fontes:
- A Cadeira. Revista Virtual. Ano 2. N.4 Out/nov/dez 2008. Academia Niteroiense de Letras. (Prata da Casa). http://www.academianiteroiense.org.br/
- Fotomontagem em cima do logotipo da revista virtual A Cadeira = José Feldman

sexta-feira, 27 de março de 2009

Comemoração de Aniversário da Biblioteca Comunitária Prof. Waldir de Souza Lima (Itu)

CONVITE

O PONTO DE LEITURA - Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima - tem o prazer de convidar V. Sa. e família para a comemoração de um ano de atividade, a ser realizada no dia 28 de março de 2009 (sábado), a partir das 16 horas na sede localizada à Rua Floriano Peixoto, 238 - Centro - Itu (SP).

Na ocasião acontecerá um Sarau Literário e Musical com a presença dos grupos Coesão Poética (Sorocaba), Sarau Largo 13 (São Paulo), Cia. Teatral Metamorfose (Itu) e Apotheke Blues Band (Itu).

Contamos com sua presença. A entrada é gratuita.
Fonte:
Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima

Bolsas de pesquisa em Portugal



A Cátedra Jaime Cortesão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, está oferecendo bolsas de estágio de pesquisa em Portugal. As inscrições vão até o dia 31 de março.

A cátedra, criada em 1991, tem entre seus objetivos promover o desenvolvimento de pesquisas no campo da história e cultura de Portugal e do mundo de língua portuguesa. Com apoio do Instituto Camões, selecionará cinco pesquisadores interessados em bolsas de duração máxima de dois meses para a realização de pesquisas em arquivos, bibliotecas ou centros de memória e documentação em Portugal durante 2009.

O auxílio de 700 euros por mês se destina ao custeio da permanência em Portugal (diárias). Os candidatos devem estar inscritos em programas de pós-graduação (em nível de mestrado ou doutorado).

O processo seletivo ocorrerá em duas fases. Para se inscrever, os candidatos devem apresentar os documentos indicados até o dia 31 de março. Com base na análise dos documentos, no dia 13 de abril serão divulgados os selecionados na primeira fase, que serão convocados para entrevista.

Valor do auxílio:

700,00 € (euros) / mês

Duração:

Um ou dois meses, de acordo com o interesse e o plano de trabalho do candidato.

Prazos de inscrição

05/03/2009 a 31/03/2009 inscrição no processo seletivo – nos dias e horários indicados

13/04/2009 divulgação do resultado da primeira fase

22 a 24/04/2009 entrevistas com os candidatos

30/04/2009 divulgação do resultado final

Documentos para inscrição:

1. ficha de inscrição preenchida - disponível no site da cátedra

2. projeto de pesquisa (mestrado, doutorado ou pós-doutorado);

3. plano de trabalho em Portugal (descrevendo as atividades a serem realizadas, como entrevistas, pesquisas em arquivos, bibliotecas e/ou centros de memória e documentação), com definição do período almejado para a viagem e aceite do orientador;

4. carta-convite de um pesquisador em Portugal;

5. duas cartas de recomendação de pesquisadores reconhecidos no Brasil;

6. comprovação (declaração) de inscrição em programa de pós-graduação;

7. histórico escolar da graduação;

Envie e-mail, com todos os documentos e ficha de inscrição anexos, de preferência, de segunda à sexta-feira, das 11h às 19h.

O e-mail não deve conter texto, apenas arquivos, um para cada documento e ficha de inscrição
O título do email deve ser: INSCRIÇÃO (SEU NOME) Exemplo: INSCRIÇÃO PAULO TIAGO

Aguarde o e-mail de confirmação da inscrição e sigas as instruções nele contidas.

Mais informações: www.fflch.usp.br/cjc e (11) 3091-1511/2010 (das 11h às 19h).

Fontes:
Douglas Lara.
http://www.sorocaba.com.br/acontece
http://www.fflch.usp.br/cjc/bolsas/bolsaportugal2009/index.html

quinta-feira, 26 de março de 2009

Arioswaldo Trancoso Cruz (1942) poesias


Contraponto

Eu fui feliz quando te vi cantando,
Como feliz eu fui quando sorrias.
Na tua vida fui-me abandonando,
Nos teus caprichos consumi meus dias.

Hoje, tu passas, nem sequer notando
Este coitado em quem tu te valias
Quando, de angústia, muita vez chorando,
Neste ombro amigo as mágoas desfazias.

Mas, pouco importa se tudo esqueceste,
Pois, de nós dois, somente tu perdeste
Quando, afinal, me deste liberdade.

Um coração magoado injustamente,
Compreende logo que uma dor mordente
É o contraponto da felicidade
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Despertando

Não temo este universo em que desperto
Da fuga interminável de sonhar,
Quando nem consegui reter por perto
Fragmentos do estar, ou do passar.

Foi um completo turbilhão, deserto
De valores vitais em que apoiar
O leque de experiências em aberto
Que nunca me cabiam vivenciar.

Pressinto já momentos de beleza,
Numa vida juncada da certeza
Multiforme do despertar seguro,

Que é saudade agridoce o sonho albino
Deste misto de humano e de divino
Cujo ser se projeta no futuro.
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Sobre o Autor

Filho de Bernardo Cruz e de Oscália Trancoso Cruz, nasceu em Morretes, Paraná, em 29 de julho de 1942. Sua formação acadêmica e profissional foi realizada em Porto Alegre, onde viveu dos 7 aos 38 anos de idade. Retornou ao Paraná, em Curitiba, em 1980, atuando alguns anos no comércio de panificação.

Professor de Filosofia e História na Rede Pública Estadual de Ensino.

Poeta, artesão e desenhista.

Integrante das entidades culturais:
- Centro de Letras do Paraná;
- Academia de Letras José de Alencar (atualmente como presidente)
- Sala do Poeta do Paraná

Possui sonetos premiados por estas entidades curitibanas, além de poesias publicadas em periódicos locais e no livro "Poetas e Poesias de Ouro", da Editora Litteris, Rio de Janeiro.

Fonte:
Antologia dos Acadêmicos. Edição Comemorativa dos 60 anos da Academia de Letras José de Alencar. SP: Scortecci, 2001.

72. Aniversário do Nascimento de Affonso Romano de Sant'Anna

Fotomontagem = José Feldman

Affonso Romano de Sant'Anna (O vôo da águia)


Já que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa tipo "propostas para um novo milênio", como o fez Ítalo Calvino. Mas à$ vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros pretensamente objetivos. Ei-lo:

"A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.

Nessa idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.

Nesse momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150 dias.

A nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após cinco meses ela pode sair para o vôo de renovação e viver mais 30 anos."

Esse texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o titulo geral é "Renovação".

Achei que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos inunda com sua luz.

Este texto vale mais que mil ilustrações.

Sei como é difícil uma nova ou surpreendente idéia para cartão de fim de ano. Mas esse, além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de correlações e desdobramentos.

A: abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.” ·

Já li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas de sua personalidade.

Já ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque ficar estagnado é apenas adiar a morte.

Já mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard) que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.

O ano está começando.

Mais grave ainda: um século está se iniciando.

Gravíssimo: mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.

Três vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.

Sísifo — aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria que empurrá-la, de novo, lá para o alto.

Pois bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o peito. Voar já é difícil.” ·

Nossa sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.

Mas aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.

Então a águia, digamos, acabou de descasar.

(Tem que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos, realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)

Então a águia, digamos, acabou de perder o emprego.

(Tem que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)

Então, a águia,digamos, acabou de mudar de país.

(A crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)

Então, a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.

(É como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)

Então, a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar sua competência.

(Tem medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)

Então, a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos achaques de velhice.

Pois bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.

Época de metamorfose.

Os estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas metamorfoses.

Enfim, parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e carne se converte em pó.

Mas que fique sempre no azul o imponderável vôo da águia.

Fontes:
Jornal “O Globo”. Segundo Caderno, 3 de janeiro de 2001.
Imagem = http://blog.cancaonova.com/

Affonso Romano de Sant'Anna (1937)



Affonso Romano de Sant'Anna nasceu em 27/03/1937, em Belo Horizonte - MG

É um caso raro de artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.

Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.

Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória.

Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista “Imprensa”, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país.

Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país. Trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e apesar das dificuldades impostas pela ditadura realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a “ Expoesia” - evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira.

Durante sua gestão, pela primeira vez no país a chamada literatura infanto-juvenil passou a ser estudada na universidade e a ser tema de teses de pós-graduação. Foram também abertos cursos de Criação Literária com a presença de importantes escritores nacionais.

Foi autor, dentro da universidade, de trabalhos pioneiros sobre música popular, como o livro "Música popular e moderna poesia brasileira".

Como jornalista trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil (pesquisa e copydesk), Senhor(colaborador) ,Veja(critico), Isto É(Cronista), colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi cronista d da Manchete e do Jornal do Brasil . e está n'O Globo desde 1988.

Considerado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond, realmente substituiu este último como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. E foi sobre Carlos Drummond de Andrade a sua tese de doutoramento (UFMJ), intitulada:"Drummond, o gauche no tempo", que mereceu quatro prêmios nacionais.

Nos duros tempos da última ditadura militar, Affonso Romano de Sant'Anna publicou corajosos poemas nos principais jornais do país, não nos suplementos literários, mas nas páginas de política . Poemas como “ Que país é este?” (traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão), foram transformados em “posters”, aos milhares, e colocados em escritórios, sindicatos, universidades e bares.

Nessa época produziu uma série de poemas para a televisão (Globo) .Esses poemas eram transmitidos no horário nobre, no noticiário noturno e atingiam uma audiência de 60 milhões de pessoas.

Como presidente da Biblioteca Nacional — a oitava biblioteca do mundo, com oito milhões de volumes — realizou entre 1990 e 1996 a modernização tecnológica da instituição, informatizando-a, ampliando seus edifícios e lançando programas de alcance nacional e internacional.

Criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reúne 3.000 instituições e o PROLER ( Programa de Promoção da Leitura), que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios em 1991 lançou o programa “Uma biblioteca em cada município”.

Criou na Biblioteca Nacional os programas de tradução de autores brasileiros, de bolsa para escritores jovens e encontros internacionais com agentes literários.

Seu trabalho à frente da Biblioteca Nacional possibilitou que o Brasil fosse o país-tema da Feira de Frankfurt( 1994), o país-tema, na Feira de Bogotá(1995) e no Salão do Livro( Paris, 1998).

Lançou a revista “Poesia Sempre”, de circulação internacional, tendo organizado números especiais sobre a América Latina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha.

Foi Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas(1995-1996), que reúne 22 instituições desenvolvendo amplo programa de integração cultural no continente.

Foi Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe-CERLALC), 1993-1995.

Como poeta participou do “International Writing Program”(1968-1969) em Iowa, USA, dedicado a jovens escritores de todo o mundo.

Tem participado de dezenas de encontros internacionais de poesia. Esteve no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia(2005) , realizou uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda (2004), esteve na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins (1996), na Casa de Bertold Brecht, em Berlim (1994), no Encontro de Poetas de Língua Latina (1987), no México, no Encontro de Escritores Latino-americanos em Israel (1986).

Mereceu vários prêmios nacionais destacando-se o da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo "conjunto de obra".

Foi júri de uma série de prêmios internacionais como o Prêmio Camões (Portugal/Brasil), Prêmio Rainha Sofia (Espanha), Prêmio Peres Bonald (Venezuela), Prêmio Pégaso/Mobil Oil (Colômbia/USA), Reina Sofia (Espanha).

Diversos textos seus foram convertidos em teatro, balé e música e tem diversos CDs de literatura gravados com sua voz e na voz de atores diversos.

Sua obra tem sido objeto de teses de mestrado e doutorado no Brasil e no exterior.

Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tiradentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont.

É casado com a escritora Marina Colasanti.

Prêmios Literários:
. "Prêmio Mário de Andrade" - Com o livro "Drummond, o gauche no tempo."
. "Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal" - Com o livro "Drummond, o gauche no tempo."
. "Prêmio União Brasileira de Escritores" - Com o livro "Drummond, o gauche no tempo."
. "Prêmio Pen-Clube" - Com o livro "O canibalismo amoroso"
. "Prêmio União Brasileira de Escritores" - Com o livro "Mistérios Gozosos"
. "Prêmio APCA-Associação Paulista de Críticos de Arte", pelo conjunto de obra

OBRAS DO AUTOR:

Poesia

. "Canto e Palavra"- 1965 - Imprensa Oficial de Minas Gerais
. "Poesia sobre Poesia"- 1975 - Imago/RJ
. "A Grande Fala do Índio Guarani"- 1978 - Summus Editorial/SP
. "Que País é Este?"- 1980 - Civilização Brasileira - 1984 - Rocco/RJ
. "A Catedral de Colônia e Outros Poemas"- 1987 - Rocco/RJ
. "A Poesia Possível" (poesia reunida) - 1987 - Rocco/RJ
. "O Lado Esquerdo do Meu Peito"- 1991 - Rocco/RJ
. "Epitáfio para o século XX" (antologia) - 1997 - Ediouro/SP
. "Melhores poemas de Affonso Romano de Sant'Anna - Global/SP
. "A grande fala e Catedral de Colônia" (ed. comemorativa) -1998 - Rocco, Rio
. "O intervalo amoroso" (antologia). - 1999 - L&PM/Porto Alegre
. "Textamentos" - 1999 - Rocco/RJ
. "Vestígios" - 2005 - Rocco/RJ
. "A cegueira e o saber" - 2006 - Rocco/RJ

Crônicas:
. "A Mulher Madura"- 1986 - Rocco/RJ
. "O Homem que Conheceu o Amor"- 1988 - Rocco/RJ
. "A Raiz Quadrada do Absurdo"- 1989 - Rocco/RJ
. "De Que Ri a Mona Lisa?"- 1991 - Rocco/RJ
. "Mistérios Gozosos"- 1994 - Rocco/RJ
. "A vida por viver" - 1997 - Rocco/RJ
. "Porta de Colégio" (antologia) - 1995 - Ática/SP
. "Nós os que matamos Tim Lopes" - 2002 - Expressão e Cultura
. "Pequenas seduções" - 2002 - Sulina
. "Que presente te dar" - 2002 - Expressão e Cultura
. "Antes que elas cresçam" - 2003 -Landmark
. "Os homens amam a guerra" - 2003 - Francisco Alves
. "Que fazer de Ezra Pound" 2003 - Imago

Ensaios:
. "O Desemprego da Poesia"- 1962 - Imprensa Universitária de Minas Gerais
. "Drummond, o "gauche" no tempo" - Record/Rio - 1990
. "Política e Paixão"- 1984 - Rocco/RJ
. "Análise Estrutural de Romances Brasileiros" - 1989 - Ática/Petrópolis
. "Por um novo Conceito de Literatura Brasileira"- 1977 - Eldorado/RJ
. "Música Popular e Moderna Poesia Brasileira" - 1997 - Vozes/Petrópolis
. "Emeric Marcier "- 1993 - Pinakothec/RJ
. "O Canibalismo Amoroso"- Rocco/RJ - 1990
. "Paródia Paráfrase & Cia."- 1985 - Ática/SP
. "Como se Faz Literatura "- 1985 - Vozes /Petrópolis
. "Agosto 1991: Estávamos em Moscou"- 1991 - Melhoramentos/SP (com Marina Colasanti)
. "O que aprendemos até agora?" - Edutifia, São Luís, Maranhão (1984). Ed. Universidade de Santa Catarina - SC, 1994
. "Barroco, alma do Brasil." - 1997 - Comunicação Máxima/Bradesco, RJ
. Reeditado em inglês, francês e espanhol , 1998
. A sedução da palavra(ensaio e crônicas). Letraviva. Brasili, 2000
. Barroco, do quadrado à elipse. Rocco,Rio, 2000
. Desconstruir Duchamp, Vieira e Lenti Casa Editorial, 2003

Fonte:
http://www.cronicascariocas.com.br/

Affonso Romano de Sant'Anna em Xeque



Affonso Romano de Sant’Anna conversa sobre os universos paralelos da mente do escritor, em entrevista para André Azevedo da Fonseca

Com tanta informação circulando no planeta nos veículos de comunicação, por que ainda precisamos de literatura para pensar sobre a condição humana?

Por uma razão muito simples: a literatura é uma espécie de parábola da realidade e da condição humana, e através das parábolas você espelha muito mais a realidade do que através de análises objetivas e científicas. Mesmo porque um dos efeitos da parábola — ou seja, da ficção e da poesia — é solicitar da cabeça do leitor que ela se ponha também em movimento para articular o imaginário. Então é uma obra a muitas mãos, uma leitura a muitas mãos.

Mas através das notícias a mídia também parece capaz de oferecer essas parábolas. Por exemplo, a cobertura jornalística sobre o maníaco do parque ofereceu ao imaginário da cultura de massa um personagem quase literário, pronto para encarnar um novo mito, ou uma atualização de um mito. Não há uma conversa entre real e imaginário na imprensa?

Sim, a mídia hoje é o grande romance de folhetim. A novela é apenas uma parte de um grande romance de folhetim que começa no jornal de manhã, continua nos programas infantis, nos desenhos animados, nos esporte e nas mesas redondas, no Jornal Nacional, no Fantástico. É um mundo como espetáculo, como representação. E isso provoca até situações muito intrigantes, porque o indivíduo que não está equipado para decompor esses elementos que são atabalhoadamente jogados na telinha, ou que se amontoam no jornal, ele tem uma visão das coisas muito surrealista. Eu tenho a impressão que grande parte do povo brasileiro mistura o Fantástico com Jornal Nacional, com a Bíblia, e faz um "melê" que é difícil deslindar exatamente.

Às vezes, quando penso em livros, me vem a idéia que o leitor e o escritor não passam de sujeitos covardes que, por não ter coragem de experimentar a vida de forma carnal e se entregar às aventuras reais, se contentam em ser voyeurs de personagens fictícios. Paulo Freire ensinava que nos alfabetizamos não apenas na leitura das palavras, mas na leitura do mundo. Será que um dia conseguiremos nos livrar da mediação dos livros e aprender a ler o mundo diretamente, sem esse intermédio simbólico?

Eu colocaria de outra maneira. A escritura e a leitura são modos de extensão da vida, de complementação da vida. Eu não posso ir à Lua. Julio Verne também não podia. Mas ele descreveu a viagem à Lua. Julio Verne não podia fazer uma viagem submarina. Mas ele imaginou como seriam as 20 mil léguas submarinas. José de Alencar, ou um dos autores românticos, não viveram na Idade Média mas viajaram lá através da imaginação. Mesmo o romancista que narra histórias fantásticas está dilatando o seu universo e dilatando o universo dos outros. As pessoas não cabem dentro do seu próprio corpo. Por isso elas sonham de noite. Como elas não cabem dentro do próprio corpo elas têm que ler livros e ver novelas. E têm que amar os outros.

O que têm a ver o amor e a idéia de extensão da vida?

O amor é um ato de transferência de você para o outro. Você se muda para dentro do ser alheio. E no caso dos místicos, eles tentam imigrar de vez para a humanidade inteira se fundir com a figura de Deus.

Lembro-me de Schopenhauer quando ele diz que nós, antes de nos materializarmos enquanto animais biológicos, na verdade já começamos a existir quando ainda somos um mero desejo expresso na troca de olhares de nossos pais. Na verdade ele diz que as idéias e pensamentos se esforçam para apoderar-se da matéria para se transformar em algo físico, pois no instante mesmo do desejo o real já está sendo construído. A literatura faz isso, não?

É. O real é uma construção. Assim como em um teatro de arena, onde cada espectador está vendo a cena de um ângulo diferente, o real é algo sempre construído e desconstruído. O que a arte faz sistematicamente é destruir e reconstruir a realidade. Veja as peças de Shakespeare: de repente, como tem no Rio agora, e ocorre de vez em quando em várias partes do mundo, vem um diretor e apresenta um Hamlet, um McBeth totalmente diferente e às vezes até oposto e contraditório ao que seria o Shakespeare original. Não existe um Shakespeare original, assim como a realidade em si é uma coisa que nós temos que aprender a construir e ler diariamente.

Gostaria que você falasse um pouco das diferenças que no livro A sedução da palavra (Letraviva, 2000) você estabelece entre o autor e o escritor.

Todo mundo pode ser autor. Qualquer pessoa pode dizer: ah, vou escrever a vida no meu sítio, ou escrever a história da minha tia, ou a história da minha cidade, do meu cachorro; um médico pode fazer um livro de medicina… todos são autores. Agora, o escritor é alguém que, além de ser autor, se dá ao luxo de ter heterônimos, pseudônimos, pode multiplicar a sua personalidade. O escritor é alguém que tem um trato com a linguagem muito especial. Ele constrói as coisas a partir da linguagem. Ele sabe que as coisas não existem antes da linguagem dar consistência a elas. Ou seja, a diferença entre um escritor e uma pessoa comum é que a pessoa comum diz: minha vida daria um romance; e o escritor faz um romance. Porque vida de ninguém é um romance. A vida das pessoas é interessantíssima, mas só viram romance não se forem simplesmente escritas, mas se forem muito bem escritas. E para isso tem que ser escritor.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O escritor lê porcaria até sem querer, né? Assim como a gente assiste a filme ruim propositalmente, e há alguns filmes ruins que são ótimos, como há romances e poemas kitsch que são ótimos, volta e meia você se surpreende cantando tangos e boleros, né? O kitsch e o mau gosto fazem parte da realidade. E a formação nossa, tanto na hora de colocar um vestido, escolher um sapato, quanto na hora de escolher um bom livro, um bom concerto, é saber distinguir o que é a coisa kitsch e o que é a coisa mais bem elaborada, o que é o chamado mau gosto e o que é um gosto mais sofisticado. Então essa questão passa por tudo. Da escolha do que se vai comer no restaurante ao livro de poemas que vamos ler.

Metade do autor é o leitor?

Metade. E às vezes há casos até curiosíssimos de autor que é um leitor voraz, um leitor insaciável, como é o caso do Borges, que vivia dizendo: enquanto outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que eu li. Porque para ele escrever é uma forma de ler e reler.

Nas obras deles, Marquês de Sade arreganhava elogios à depravação total; Thomas de Quincey defendia que assassinatos eram obras de arte; os poetas da beat generation faziam apologia ao uso desenfreado de drogas. A literatura pode ser perigosa como dizem que é a TV? Ou, pelo contrário, num outro extremo, não há perigo algum nesses atrevimentos literários?

Tudo pode ser perigoso ou não. A palavra farmácia vem do grego farmakon, que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Então quando você entra na farmácia, você acha veneno e remédio. Se tomar alguma coisa errada você pode morrer, se tomar a coisa certa você pode se curar. Nesse sentido a literatura, como a música, não é em si nem boa nem má. Pode potencializar nas pessoas aquilo que elas têm numa ou noutra direção. Por exemplo, na música você pode pensar assim: Mozart é uma coisa sublime, rock é coisa pesada; uma é angelical, outra é diabólica. Isso é um estereótipo, porque se algumas pessoas já cometeram violência e crime "por causa" do rock, nem todas as pessoas cometem crime e violência por causa do rock. E ao contrário, muitos dos carrascos nazistas gostavam de Bach, de Mozart. Então... é o farmakon.

Essa do farmakon foi boa! Vamos a próxima. Livro é muito caro. Hoje a média é R$30, ou seja, uns 10% do salário mínimo — isso se o Lula passasse o mínimo para R$300. Você defende o direito de que quem não tem grana possa "xerocar" os seus livros?

Realmente, o livro dentro dos padrões brasileiros é muito caro. Até na China, que tem 400 milhões de leitores, o livro custa entre R$2 e R$3. A questão do xerox tem sido debatida no mundo inteiro. Eu participei de vários seminários internacionais, sobretudo quando dirigi a Biblioteca Nacional. Cada país tenta defender uma estratégia determinada: alguns colocam uma taxa na produção da máquina que vai reverter como direito autoral para os autores, outros têm outras estratégias. No caso brasileiro especificamente, não há como impedir, por mais que se aconselhe. O professor quer dar um livro, ainda que ele recomende a compra, mas o livro está esgotado. Como fazer? O professor não vai dar aula sobre aquele livro? Por outro lado, em muitos livros você precisa só de um capítulo. Não precisa do livro inteiro. Então é uma questão muito complexa. Não de trata de proibir. Trata-se de estabelecer uma política mais ampla disso.

Você deu aulas nas Universidades da Califórnia e do Texas, nos EUA; na Universidade de Colônia, na Alemanha; e na Universidade Aix-en-Provence, na França. Como essas coisas são discutidas por lá?

Você entra numa universidade americana e em cada andar da biblioteca tem máquinas de xerox. Você compra um cartãozinho na entrada e copia quantos livros quiser, quantas páginas quiser. É só comprar e renovar o cartão. Eu já saí de bibliotecas americanas com "toneladas" de xerox.

Mas como eles lidam com a questão dos direitos autorais neste caso?

Eles têm um processo. Aquele dinheiro cobrado pelo xerox vai reverter de alguma maneira para uma política do livro, para o autor.

É uma boa idéia.

É necessário rever isso tudo. Por exemplo, em alguns países da Europa o autor ganha pelo fato de em uma biblioteca pública alguém tirar o livro dele para ler. Cada leitor da biblioteca pública é computado e o autor ganha uma comissão. É uma coisa interessante.

Você conhece um conceito que se chama copyleft?

[Sant’Anna me olhou meio de lado e vi surgir uma interrogação sobre sua cabeça.]

Esse termo inventado por um hacker americano é uma inversão da idéia de copyright.

[O escritor percebe imediatamente a idéia e se diverte com o trocadilho, soltando uma risadinha. Mesmo assim prefiro explicar melhor]

É um tipo especial de licença que ao mesmo tempo em que garante a propriedade intelectual, autoriza expressamente que os leitores reproduzam a obra à vontade, desde que não seja para fins comerciais. Se uma editora quer comercializar a obra, paga os direitos autorais. Se é para uso pessoal você pode comprar o livro ou então copiá-lo gratuitamente. A idéia é que, na verdade, quanto mais a obra circula, mesmo que seja através de cópias, mais ela vende. De cada vinte leitores que copiam, seguramente uns três ou quatro vão acabar comprando, porque ao gostar do texto não vão querer guardar as folhas grampeadas do xerox, mas sim a cópia durável e de bom acabamento do livro.

Claro.

O que acha dessa idéia?

É uma proposta interessante. Agora, embutida nessa questão tem um outro problema que acho riquíssimo e que foi exposto implicitamente num filme que se chama "O Homem que copiava". Eu até escrevi duas crônicas sobre isso, dentro de um conjunto de análise que eu estava fazendo da arte contemporânea, sobre a questão da cópia. O problema da cópia é interessantíssimo, porque a sociedade em que vivemos, que é chamada de pós-moderna, instituiu perversamente a idéia de que o autor não existe. Qualquer um pode se apoderar de qualquer coisa. O sujeito não existe. Isso, filosoficamente, redunda em uma tragédia epistemológica, porque se o sujeito não existe somos todos objetos. Eu não gosto de uma cultura onde todos são objetos. O esforço é para que as pessoas se transformem em sujeitos.

Conheço outra linha de discussão: o autor não existe porque o que ele faz é pouco mais do que copiar e cruzar vários outros autores que estão dentro de seu universo mental. Tom Zé chama isso de estética do plágio, ou estética do arrastão. Para ele, nós somos o nosso contexto, somos a nossa circunstância. [a observação ia ficando longa, e o entrevistado já ficava inquieto para falar]. Não será por mero acidente que conseguimos escrever algo novo?

Aí tem várias coisas interessantíssimas. Tem um lado que é verdade: na natureza nada se cria, tudo se transforma. É uma lei da Química. Por outro lado, dentro do folclore, da literatura, as histórias são recriadas. Você encontra pedaços da lenda do Rei Arthur em Mil e Uma Noites, em Decameron e em vários lugares. Agora, isso é uma coisa, é um fato real — o processo de metamorfose, de transformação que existe na natureza, na cultura. Outra coisa é a cultura da leviandade que a pós-modernidade cultiva. Ou então certas coisas que são veiculadas através da chamada estética do falso.

O que é isso?

Autores que fazem romance jogando com a idéia da falsidade, levantando uma questão que em última instância é a seguinte: alegam que numa sociedade se mente muito, numa sociedade tudo é falso, tudo é fake. Então a pessoa produz uma obra falsa, uma obra fake. Então eu digo: é juntando mentira a mentira que vamos combater a mentira? É juntando falsidade a falsidade que nós vamos combater a falsidade? Em termos de arte e escatologia, é juntando merda a merda que nós vamos sair da merda?

O que é uma obra falsa?

Pois é. O que é uma obra falsa?

Ou o que seria a estética do falso?

A estética do falso pretende que não há autoria. Há um deslizamento constante através do qual todos participam, que tem seu lado verdadeiro. Quando entra na moda usar um tipo de calça, de camisa, todo mundo se apropria daquilo. Mas estou desenvolvendo já há algum tempo um raciocínio que, ao lado de reconhecer o que há de natural nisso, há um outro lado perverso: a questão da apropriação. Em arte se usa muita técnica de apropriação, mas os bandidos também usam. Como um caso de um artista na França que resolveu fazer uma exposição chamada "Tudo Aquilo que Roubei de Vocês". Ele roubou vários objetos dos amigos e fez uma exposição. Os amigos não gostaram e chamaram a polícia.

Aí surgiu uma discussão, que envolveu Ministro da Cultura e Ministro da Justiça na França, se roubar é um ato artístico, um gesto estético. Até que ponto é apropriação, ou quem sabe, que é a minha ótica, a gente não deve analisar isso tudo dentro de um contexto? Analisando dentro de um contexto gestaltiano mais amplo, você entende Fernandinho Beira-Mar, o narcotráfico, a violência da nossa sociedade e a falta de caráter geral.

Entende ou justifica?

Entende. Justificar jamais. A grande ansiedade do ser humano é entender as coisas, pelo menos. Chega alguém e mata outra pessoa, você fica horrorizado, você quer entender por que matou, tem que ter uma causa, tem que ter uma razão! Não vai justificar, mas tem que entender.

Patrick Grainville, em entrevista a Betty Milan, diz que é muito importante que o escritor tenha um ofício qualquer fora da literatura, porque senão ele fica maluco, fica muito distante do mundo e se perde. O que você acha disso?

Isso é um problema dele.

Perguntei isso consciente desse contexto em que vivemos, no qual o escritor, com as raras exceções, não consegue viver de sua obra. Então…

Eu adoraria ficar só escrevendo poesia, se me financiassem por aí. Adoraria enlouquecer escrevendo poesia. Não teria nenhum medo. [nesse momento ele fez uma pausa retórica]

Você tem uma sugestão para…

Ao contrário. Quando eu trabalhava em banco, e era estudante de letras, ficava possesso porque estava jogando meu tempo fora em vez de estar escrevendo literatura. Esse Patrick pode voltar a trabalhar no banco porque eu já passei por essa experiência.

[Enquanto ria, lembrei sofregamente que, sobretudo quando entrevistamos escritores, é uma peleja para discernir quando eles já disseram tudo, quando querem deixar a coisa ambígua, ou quando o momento de silêncio é apenas uma pausa retórica na exposição do raciocínio.]

Qual a sua sugestão para pensar esse problema de o autor não conseguir viver de sua obra?

Olha, aí tem duas coisas. Uma: em qualquer profissão é complicado. Jovem arquiteto, jovem médico, jovem advogado, jornalista, costureiro, estilista, todo mundo tem uma certa dificuldade. A quantidade de pessoas que abrem lojas e fecham é muito grande. Então há uma dificuldade que no caso brasileiro se agrava porque estamos em recessão há trinta anos. Agora, nos países que têm uma estrutura econômica e social mais estável é possível viver de literatura, não só através do livro, mas de uma série de estímulos que governo, fundações e instituições culturais e fornecem — como bolsas e auxílios de pesquisa. Eu mesmo estive em uma meia dúzia de bolsas dadas por fundações estrangeiras. A última foi em Bellagio, na Itália. Eles tinham pago umas vinte pessoas no mundo inteiro para ficarem um mês, sem nenhuma preocupação, para executar um projeto, seja um livro, uma pesquisa etc. Tudo pago. Tinha escritores lá, e eu fui para terminar um livro que eu estava fazendo. E isso é muito comum na Europa e nos Estados Unidos.

Dá para adaptar essas idéias no Brasil?

Quando eu dirigi a Biblioteca Nacional eu criei um sistema de bolsas de escritores dando umas dez ou quinze bolsas por ano para o escritor terminar o trabalho dele. Criei o sistema de financiamento de tradução de autores brasileiros no exterior. Umas trinta ou cinqüenta obras traduzidas no exterior por ano. Então há mecanismos. Se você ganhar da prefeitura daqui, ou de uma fundação, uma bolsa durante um ano ou dois anos para uma pesquisa ou um livro, você estaria vivendo de literatura.

Mmmmmm, seria um sonho! Há escritores que só escrevem sob pressão, e há mesmo quem diga que a calmaria e a estabilidade não é criativa. Orson Wells tem disse aquela famosa frase, dizendo que enquanto a Itália cheia de guerras gerou a Renascença, a pacata Suíça produziu apenas o relógio cuco. O que acha disso?

A questão, outra vez, é diversificada, é complexa. Há pessoas que só conseguem funcionar, para tudo, sob pressão. Eu conheço donas-de-casa que resolvem experimentar em um jantar — onde vêm convidados! — pratos que nunca fizeram, sem saber se vai dar certo. A Marina [Colasanti] é assim.

Muito bom isso.

A tensão de fazer um negócio que nunca fez, que é desafiador, mobiliza. Como o ladrão que está correndo da polícia, ou correndo de um pitbull, ele pula um muro de cinco metros de altura. Se não tiver o pitbull, ele não pula nem um metro. Então há pessoas que precisam dessa adrenalina, outros não. Tive até duas experiências curiosas com isso. Uma vez eu estava em um programa de jovens escritores em Iowa, nos Estados Unidos, em uma dessas bolsas. Eram quarenta escritores do mundo inteiro. Dois terços diziam que não conseguiam escrever porque tinham saído exatamente de seus países onde viviam sob pressão, tendo que trabalhar, cuidar da família, não sei o quê. Ficaram num lugar só para escrever e não conseguiram escrever. Eu levei um projeto para escrever, que era a minha tese sobre Drummond, e fiz a tese normalmente; enquanto um dramaturgo turco, quinze dias antes de terminar esse período de nove meses, não tinha conseguido escrever uma linha. Já em Bellagio, onde fui mais recentemente, eu tinha levado um projeto de ensaio; mas aquele clima de paz, de beleza, de encantamento era de tal ordem que eu joguei aquilo pra lá e fiquei um mês só transando poesia.

Em Canibalismo Amoroso você desenvolve um conceito muito interessante ao considerar o texto como uma "manifestação onírica social". Você poderia falar um pouco sobre isso?

A idéia básica desse livro — na verdade é uma idéia básica para se entender a literatura — é que o escritor é uma espécie de sonhador de utilidade pública. Ele fantasia coisas que não são apenas fantasias pessoais, mas fantasias comunitárias. Ele é apenas, como propunha Ezra Pound, uma antena que está captando algumas coisas. Daí certos livros terríveis, O médico e o monstro, os livros policiais, etc. Por que as pessoas lêem isso? Você pode pensar: o autor devia ser um neurótico. Mas por que milhões de pessoas lêem Agatha Christie? Porque através do crime e do mistério elas estão elaborando os seus fantasmas. Então a literatura e a arte em geral é o lugar de elaboração de grandes fantasmas de fantasias.

Ops, eu pulei uma pergunta. Antes de falar de Canibalismo Amoroso eu queria ter conversado sobre o movimento antropofágico. Depois da minissérie da Globo, todo mundo comemora a aventura de Oswald e Mário de Andrade. Apesar de reconhecer a importância da Semana de 22, sei que você tem críticas ao modernismo. Você pode falar sobre isso?

Eu tenho várias considerações. Primeiro, o modernismo foi muito importante mas cometeu vários equívocos, várias injustiças. Ensinou uma geração a ter preconceito contra o século 19, contra certos poetas parnasianos, simbolistas, contra a literatura romântica, e isso por um vezo futurista de querer ser diferente do outro. Entende-se perfeitamente que isso tenha ocorrido num primeiro momento. Agora, além disso eu tenho uma outra colocação sobre a Semana de Arte Moderna. É que à rigor ela não aconteceu em fevereiro de 1922. Ela não só começou a acontecer muito antes disso, com Brás Cubas, com Sertões de 1902, com Lima Barreto e por aí a fora, como em 1922 aconteceu uma certa coisa da qual o país não tomou o menor conhecimento na ocasião. Mas aquela coisa tinha uma força original que foi captada por outras pessoas. Então, a Semana da Arte Moderna começou a acontecer, sistematicamente, depois. Ou seja, todo autor que estudou um autor modernista é um modernista, ajudou a fazer o modernismo. Quando alguém analisa Oswald de Andrade, dá interpretação nova, analisa Drummond, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano, é como se estivesse batendo esse bolo que está fermentando, que está crescendo, como se estivesse sendo um acionista de uma grande empresa. E isso chegou a um ponto tal que virou essa novela da Globo. Essa novela foi a apoteose popular de uma semana que continua sendo inventada. O que aparece ali não tem nada a ver com o que foi em 1922. Ou seja, a idéia da Semana é uma idéia em construção. Ela não acontece em 22.

Antropofágica pra valer!

É. Então estou devorando a Semana, fazendo uma "meta-antropofagia" com a Semana. Estou reduzindo ao meu estômago aquela semana que aconteceu.

Em seu livro você defende que o canibalismo é um traço fundamental de nossa cultura. Por quê?

Eu comecei a colecionar notícias policiais envolvendo canibalismo. Que é impressionante. Não é apenas essa coisa imaginária que existe na literatura, ou um ato episódico dos jogadores uruguaios que caíram na neve e começaram a comer os companheiros e tal. Isso existe como um impulso neurótico e Freud consegue explicar de certa maneira essa perversidade oral. E é muito comum. Ainda agora aquele programa Linha Direta vai mostrar um criminoso de São Paulo chamado Chico Picadinha, que pegava as mulheres, sobretudo prostitutas, retalhava, picava e comia; como aquele canibal alemão que pôs um anúncio na Internet porque queria comer uma pessoa e, entre vários candidatos, um se ofereceu realmente e foi devorado por ele. Existe uma coisa, um desvio, uma perversão que no lado mais ameno e mais normal se dá numa relação amorosa, que são grandes "entredevorações".

Sua pesquisa mostra como que na poesia, do parnasianismo ao romantismo, a mulher passou a ser representada de flor a fruta, ou seja, de algo para ser visto a algo a ser comido, do jardim ao pomar. Depois as metáforas passaram a comparar a mulher a animais que o homem deveria caçar se quisesse comer. Essa ligação da culinária e do amor é um traço evidente do canibalismo amoroso.

Sim, faz parte desse canibalismo masculino, como existe um canibalismo feminino. Em alguns animais, alguns insetos, a fêmea é a devoradora; assim como existe um grande mito no imaginário masculino, sobre o qual eu falo no Canibalismo: o mito da Vagina Dentada, o grande medo da grande mãe castradora, como os folclores todos trabalham isso, e como é que até a ficção moderna trabalha isso. O José Rubem Fonseca, por exemplo.

Freud disse assim: "A grande questão para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: o que elas querem enfim?" Você, marido da Marina Colasanti, já tentou esboçar alguma resposta para esses enigmas? Por que tememos tanto as mulheres? O que elsas querem afinal?

Primeiro porque elas são seres superiores. São adoráveis, mais inteligentes. Em segundo lugar, existe uma resposta para essa pergunta do Freud, eu até fiz uma crônica sobre isso, que é uma parábola sensacional que não vai dar pra você contar, porque é muito grande, que remete à lenda do Rei Arthur.

Ah, pode contar!

Ela começa quando o Rei Arthur, ainda jovem, invadiu o terreno de um rei e como punição foi condenado à morte. E o rei falou que ele só poderia escapar da morte se conseguisse resolver a seguinte questão: o que querem as mulheres? Há todo um desenvolvimento disso e a solução que se encontra é uma coisa maravilhosa. O Arthur contou isso para um colega, um dos cavaleiros, que disse: — Eu vou resolver esse problema pra você. Eu soube que tem uma bruxa na montanha que tem a resposta. Esse cavaleiro era belíssimo, inteligente, e então foi lá no lugar do Arthur e falou com a bruxa. — Escuta aqui, tenho um problema e preciso saber: o que querem as mulheres? A bruxa falou assim: — Olha, eu posso te contar, mas tem o seguinte: você tem que casar comigo. Só se você casar comigo eu respondo. E para salvar o amigo, casou com a bruxa. — Vou te contar na noite de núpcias. No banquete a bruxa estava comendo, toda desgrenhada, sem dente, vesga, jogando comida no chão e o pessoal se perguntando: pô ele vai casar com essa mulher? Aí quando ele entrou no quarto nupcial, perguntou: Bom, então me diz agora, finalmente! Estamos casados! A bruxa disse o seguinte: — Eu vou te fazer uma revelação. Eu sou bruxa de dia, mas de noite eu sou outra pessoa. E se transformou numa mulher deslumbrante, a mulher mais deslumbrante que qualquer homem pode imaginar, nem precisa descrever, cada um descreve a sua. E apareceu aquela mulher! Na alcova do cavaleiro! E aí a bruxa transformada na bela mulher disse: — Mas você vai ter que decidir com qual de nós duas você quer ficar, a bruxa ou essa deusa. Aí o cavaleiro, como era um cavaleiro mítico, um herói, de caráter sem jaça, um sábio, disse para ela: — Você decide. Você é que decide quem você quer ser. Então o resultado dessa melódia é: o que querem as mulheres? As mulheres querem ser o que elas querem ser, e não o que os homens querem que elas sejam.

Fale um pouco sobre as estratégias compensatórias pelas quais driblamos nossas frustrações, um assunto que explora bem em sua obra.

O imaginário humano é muito rico, ele desliza muito. Há um princípio básico da psicanálise que continua válido até hoje porque na verdade corresponde até a uma lei da Física e da Química: assim como Lavoisier disse que tudo se transforma, em termos de psicanálise e inconsciente Freud mostrou, entre outras coisas, que nós não suportamos nenhuma frustração. Nós não abrimos mão das coisas; nós substituímos. Então o nosso imaginário vive fazendo substituições. Se você não pode ter uma coisa, troca por outra, consciente ou inconscientemente, dentro de um jogo que a psicologia chama de redução da dissonância cognitiva. Você quer casar com uma mulher, ela não gosta de você, mas você casa com outra, em outras circunstâncias. Mas você tem que "justificar" aquele casamento. Então você diz: casei mas ela é rica né? Ela me dá tudo, e tal, eu não preciso trabalhar... Tem que ter alguma vantagem! Eu trabalho naquela empresa ali, eu não gosto muito não, mas me pagam muito bem. E assim por diante. Então isso existe em relação a tudo. A parte erótica, a parte amorosa, social, econômica...

Proust dizia que muitas vezes o escritor só encontra a sua verdadeira personalidade no texto. Será que isso explica o fato, por exemplo, de uma pessoa escrever coisas maravilhosas, humanistas, mas na vida real ser um crápula, um monstro?

Nós temos várias pessoas dentro de nós. Fernando Pessoa não inventou nada de extraordinário. Ele apenas contextualizou uma esquizofrenia que todos nós temos. Balzac criou tantos personagens que diziam que ele estava fazendo concorrência com os cartórios, de tanta gente que ele tinha criado. Ele era todas aquelas pessoas e também não era. Então o escritor é isso. Aliás isso é até terapêutico. Inclusive no teatro eu acho que isso é mais terapêutico ainda. Quando você faz psicanálise, às vezes você pode entrar para a terapia de grupo. Você vê nos seus colegas uma série de reflexos seus que te ajudam. Então você pode tratar-se através do psicodrama, cada um representa uma série de obsessões, de fobias, de fantasias e põe aquilo para fora em termos de catarses que exorcizam. Um ator um dia representa um amante, um dia um assassino, um dia um pai, um dia um filho, empregado, patrão, ele está exercendo um universo dentro dele terapêutico incrível. E o leitor é isso também. O leitor vai encarnando. O espectador de celebridades é a mesma coisa. A pessoa que está vendo Darlene queria ser também célebre, condena a Darlene por uma série de ações, mas também fica meio siderada com a fama. Há uma transferência.

Você que é um pensador do amor, responda aí essa última pergunta, inspirada em Saint-Exupery: somos responsáveis por aqueles que nós cativamos?

De alguma maneira sim. Mas a sua relação com alguém nessa troca de emoções, de afetos, de conhecimento, deve também fazer com que o outro cresça, que o outro não seja um dependente, de tal maneira que haja uma relação de maturidade, uma relação adulta. O outro não deve ser tratado nunca como uma criança, mas com respeito. E vice-versa.

Affonso Romano de Sant‘Anna, muito obrigado pela entrevista. Foi um grande diálogo e certamente vai inspirar muitas idéias nos leitores.

Fontes:
Portfólio André Azevedo da Fonseca
Matéria publicada no Revelação (jornal-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Uberaba) n. 284, em 4 de maio de 2004
Fotomontagem - José Feldman

Affonso Romano de Sant'Anna (A Mulher Madura)



O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

Fonte:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A Mulher Madura. RJ: Rocco, 1986.

quarta-feira, 25 de março de 2009

208 Anos da Morte de Novalis

Fotomontagem: José Feldman

Novalis (1772 – 1801)



Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (Oberwiederstedt, Harz, 2 de Maio de 1772 — Weißenfels, 25 de Março de 1801), Freiherr (Barão) von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do romantismo alemão de finais do século XVIII e o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico.

Seu pseudônimo, Novalis, vêm de um nome que a sua família teria usado. Por vezes chamado do profeta do Romantismo, tem como central imagem das suas visões uma flor azul, que mais tarde se transformou como símbolo de saudade entre os Românticos. A “Flor Azul” era inatingível e assim o continuará.

Nasceu em Oberwiederstedt, na Saxônia Prussiana, numa família nobre de protestantes. Quando tinha 10 anos foi enviado para uma escola religiosa mas teve dificuldades em se ajustar. Foi entretanto viver com o seu tio que lhe abriu portas para o Racionalismo e cultura francesa. Mudou-se com os seu pai para Weissenfels e entre 1790 e 1791 estudou Direito, tal como Goethe, na Universidade de Jena onde conheceu Friedrich von Schiller e Friedrich Schlegel. Completou os estudos em Wittenberg em 1793. As idéias da recente Revolução Francesa rapidamente se espalharam por toda a Alemanha e Novalis sonhava com o tempo das “Muralhas de Jericó” derrubadas. Um romântico místico, inclinava-se por uma restauração da república cristã, desaparecida desde a reforma protestante, enquanto Kant, um homem do Iluminismo, antevia como solução para a Europa uma liga das nações, uma república secular, humana, constituída por uma federação mundial a ser acertada no devir.

O livro de Goethe “Wilhelm Meisters Lehrjahre” (Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meiste) influenciou-o profundamente, de tal modo que ele o considerou a bíblia da “Nova Era”. Por volta de 1796 estudou as obras de Johann Gottlieb Fichte.

Com 21 anos, muda-se para Tennstädt, perto de Langensalza, para trabalhar como Administrador Civil, depois de o pai ter rejeitado o convite do ministro prussiano para um outro cargo governamental em Berlim, com receio das influências liberais. No ano seguinte foi nomeado Auditor da Direção das minas de sal de Weißenfels, onde o pai trabalhava como Diretor.

A conselho de amigos, que pretendiam impedi-lo de sucumbir à forte e inexperimentada tentação da vida militar que sentira, havia-se mudado, no final de 1794, para Arnstadt, na Thuringia, para continuar no ramo de trabalho do pai. No entanto, um acontecimento na vizinha Grueningen, haveria de transformar toda a sua vida, como relata o seu futuro amigo e editor Ludwig Tieck:

Não terá sido muito depois da sua chegada a Arnstadt, quando numa mansão senhorial nas redondezas, ele travou conhecimento com Sophie von K____. O primeiro vislumbre desta justa, maravilhosa e amável forma foi decisivo para toda a sua vida; não, podemos dizer que este sentimento, que agora o penetrou e inspirou, foi a substância e essência de toda a sua vida. Algumas vezes, no olhar e figura de uma criança, estampar-se-á uma expressão que é tão etérea e angelicamente bela, que somos forçados a chamar de não-terrestre ou celestial; e é voz comum, que, na visão de tais faces puras e quase transparentes, chega a nós um medo de que elas sejam excessivamente ternas e delicadas para serem moldadas para esta vida terrena; isso é a Morte, ou a Imortalidade, que nos olha de frente tão expressivamente com esses olhos deslumbrantes para a Certeza. Ainda são mais intensas estas figuras quando o primeiro período é alegremente ultrapassado, e elas florescem na véspera de feminilidade. Todas as pessoas que conheceram esta maravilha amorosa do nosso Amigo, concordam em testemunhar que nenhuma descrição pode exprimir que graça e celeste harmonia a moviam, que beleza irradiava, que macio e majestoso era o halo que a rodeava. Novalis tornava-se um poeta sempre que tinha a possibilidade de falar sobre isso. Ela tinha concluído o seu décimo terceiro ano quando ele a viu; a Primavera e Verão de 1795 foram o desabrochar da sua vida. Cada hora que ele podia liberar-se do seu negócio, ele a passava em Gruningen: e no Outono desse mesmo ano ele obteve dos pais de Sophie, o tão aguardado consentimento para o noivado.”

Infelizmente, no entanto, estes dias de alegre tranquilidade foram de curta duração. Pouco depois, Sophie von Kühn ficou perigosamente doente, com febre. Pouco a pouco a sua febre foi diminuindo mas as dores ainda a atormentavam violentamente. Dito que eram sem importância pelo Físico, Novalis retornou para Weissenfels, para os seus pais. Na Primavera seguinte ele visitou a família e encontrou Sophie bem de aparência. Mas, de súbito, no Verão, as suas esperanças e ocupações foram interrompidas por avisos de que ela estava em Jena, e fora submetida a uma operação cirúrgica. A pequena donzela suportou tudo isto com inflexível coragem e alegre resignação. Em dezembro, por sua vontade retornou para casa, onde era evidente a sua fraqueza crescente. Ia e vinha entre Gruningen e Weissenfels, que também se tinha tornado uma casa de mágoa, pois o seu irmão padecia de uma longa doença e aparentava morte certa. De novo, Tieck reconta:

No dia 17 de Março era o décimo-quinto aniversário da sua Sophie; e no dia 19, por volta do meio-dia, ela partiu. Ninguém se atreveu a contar a Novalis estas tristes notícias; por fim, o seu irmão Carl tomou a iniciativa. O pobre jovem não se calava, e depois de três dias e três noites de choro e lamentos, partiu para Arnstadt, onde, com o seu verdadeiro amigo, poderia estar mais perto do lugar em que agora permaneciam os restos do que havia sido o de mais querido para ele. No dia 14 de Abril, morria o seu irmão Erasmus. Informa a seu irmão Carl.

Sê bom de coragem’, escrevia ele, ‘Erasmus prevalece; as flores do nosso justo ramalhete estão a cair aqui, uma por uma, para que possam ser unidas além, amavelmente e para sempre.’”

Em 1798, publica uma série de fragmentos filosóficos, “Fragmente.” No seu lamento, começou um diário contemplando suicídio e a escrever poemas.

Começa a estudar Mineração na Academia de Feiberg. Ali ele torna-se amigo de Ludwig Tieck e outros Românticos. Em 1798, fica noivo de Julie von Charpentier, à qual nunca se juntará. Ele pensava que Julie tornava a presença de Sophie ainda mais aparente.

Em 1800, a sua única coleção acabada de poemas, ”Hymnen an die Nacht” (Hinos à Noite), é a expressão do seu desgosto pela morte do seu primeiro grande amor. O conjunto de seis prosas e versos líricos foi publicado na Athenäum, uma revista literária editada por August Wilhelm Schlegel e por seu irmão Friedrich Schlegel.

Na sua viagem a Weimar, conhece Goethe, Herder, e Jean Paul, e em Jena, os irmãos Schlegel. Começa a trabalhar na sua escrita com um novo entusiasmo, mas já nessa altura estava seriamente doente.

Antes de poder casar-se com Julie, Novalis morre de tuberculose, em 1801 em Weissenfels.

Os seus dois romances filosóficos, “Heinrich von Ofterdingen” e “Die Lehrlinge zu Sais”(Os Noviços em Sais) foram deixados incompletos.

Em “Heinrich von Ofterdingen” um jovem poeta medieval procura uma misteriosa Flor Azul.

Em “Die Lehrlinge zu Sais”, um noviço adolescente argumenta que: “Só os poetas deviam ocupar-se do líquido e ter o direito de falar dele à juventude ardente”.

Entre setembro de 1798 e março de 1799, ele escreveu fragmentos chamados de “Das Allgemeine Brouillon” que faziam parte da sua planejada enciclopédia, em que examinava a polaridade na Natureza.

A vida de Novalis inspirou Penelope Fitzgerald para o seu romance “The Blue Flower” (1995).

Fontes:
http://pt.wikipedia.org

Novalis (Hinos à Noite)



I.

Diante do espetáculo maravilhoso do espaço aberto à sua volta, que existência viva, sensível, não ama a deliciosa luz, com suas cores, raios e ondulações, sua onipresença gentil na forma do alvorecer? O mundo gigantesco das constelações despertas inala o dia como a mais profunda alma da vida, e flutua dançando em sua torrente azulada; a pedra tranqüilamente faiscante, a pesarosa planta, o mundo selvagem, ardente e multiforme dos animais o inala; porém, mais que elas, o nobre estrangeiro com olhos brilhantes, andar altivo, lábios melodiosos e cerrados. Como um rei que comanda a natureza mundana, ele invoca os poderes para transformações incontáveis, ata e desata inúmeras alianças, sustenta sob forma celestial cada substância terrena. Sua presença por si só revela o esplendor maravilhoso dos reinos do mundo.

E eu me volto para a Noite misteriosa, sagrada e indescritível. Ao longe repousa o mundo, em sepulcro profundo; um lugar solitário e arruinado. Nas cordas do peito golpeia uma tristeza profunda. Estou pronto para mergulhar nas gotas do orvalho, e misturar-me às cinzas. - A distância da memória, os desejos da juventude, os sonhos da infância, as breves alegrias e aspirações vãs de uma vida longa, surgem com uma veste acinzentada, como o vapor da tarde antes do pôr do sol. Em outras plagas a luz assentou suas tendas felizes: e se eu nunca mais retornar para suas crianças, que me esperam com a fé da inocência?

O que renova todos os pressentimentos de meu coração, e acalma o ar suave da tristeza? Negra Noite, não terás uma afinidade conosco? O que seguras sob teu manto, cujos poderes ocultos afetam minh'alma? O bálsamo precioso goteja do ramo de papoulas, em tuas mãos. Tu retiras os cravos de aço da alma. De modo obscuro e indescritível, somos tocados: estarrecido de prazer contemplo a face grave que, suavemente e em prece, inclina-se sobre mim, e, em meio a olhares confusos, revela o amor jovial da Mãe. Como a luz parece agora algo pobre e infantil! como é agradável e bem-vinda a partida do dia! -

Não é apenas porque a noite arrebata de ti seus servos, e lança aos abismos do espaço teus globos faiscantes, que proclamas, nos momentos de ausência, sua onipotência, e desejas seu retorno?

Temos olhos que a noite abriu em nosso interior, mais divinos que aquelas estrelas brilhantes. Sua visão alcança além dos incontáveis hóspedes mais pálidos da noite. Sem auxílio da luz eles penetram as profundezas que abrangem as regiões elevadas com inefável delícia. Glória à rainha do mundo, à grande profetisa dos mundos mais sagrados, à mãe cuidadosa do delicioso amor! ela mandou-te a mim, tu a mais suavemente amada, sol gracioso da Noite. Agora desperto, pois sou teu e meu. Fizeste-me conhecer a Noite, entregaste-a a mim para que se tornasse minha vida; tu fizestes de mim um homem. Consumas meu corpo com o ardor de minh'alma, de modo que eu, tornado ar purificado, possa misturar-me completamente contigo, e assim, nossa noite de núpcias durará eternamente.

II.
Por que a manhã deve sempre retornar? O despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias, mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da chave para a morada dos abençoados.

III.
Certa vez, quando derramava lágrimas amargas, que minha esperança, dissolvida na dor, se esvaía, e eu permanecia só sobre uma colina estéril que em seu contorno escuro, baixo, ocultava a desvanecida forma de minha Vida; só como ninguém jamais havia sido, tocado por uma angústia indescritível, privado de forças, e nada mais restava exceto a consciência da miséria; - enquanto olhava ao meu redor em busca de socorro; não podia avançar nem retroceder, e enfraquecido com a perda, extinguí minha vida com uma saudade sem fim; então surgiu das distâncias azuis, das profundezas de meu júbilo passado, uma chuva brilhante, crepuscular; e num só momento romperam-se as amarras do nascimento, os grilhões da Luz. Ao longe fugiu a glória da Terra, e com ela meus lamentos. A tristeza fluiu num mundo novo e inescrutável. Tu, ó inspiração da Noite, Sono celestial, viestes sobre mim. O local elevou-se suavemente, e acima pairou meu espírito recém-nascido, ilimitado. A colina tornou-se uma nuvem de poeira e envolveu-me, e na nuvem vislumbrei a glorificada face de minha Amada. Em seus olhos jazia a eternidade. Apertei suas mãos e minhas lágrimas tornaram-se um laço ardente e indestrutível. Milhares de anos fluíram ao longe nas distâncias do relâmpago e da tempestade. Em seu dorso eu saudei a nova vida com lágrimas e êxtase. Jamais tive tal sonho novamente; desde então e para sempre eu mantenho uma fé eterna e inabalável no Céu da Noite; e em seu sol, a Amada.
~ ~ ~

IV.
Agora sei quando chegará o derradeiro amanhecer: quando a luz não afugentar mais a Noite e o Amor, quando o sono persistir sem o despertar, existindo apenas um sonho contínuo. Sinto em mim uma exaustão celestial. Minha peregrinação para o túmulo sagrado foi longa e cansativa, e a cruz esvaia-se. Aquele que experimentou a onda de cristal que, imperceptivelmente ao sentido comum, brota do seio obscuro da colina batida pelo fluxo do mundo, aquele que esteve na montanha fronteiriça do mundo, e vislumbrou o interior das novas terras nos domínios da noite, certamente não retornará ao tumulto do mundo, às terras nas quais reina a Luz em inquietude perpétua.

Naquelas alturas ele constrói para si tabernáculos - tabernáculos de paz; lá recorda, ama e contempla, até que a mais querida das horas lança-o nas águas da fonte. Tudo o que é mundano flutua sobre ele, revolvendo-se em tempestades; mas o que se tornou sagrado pelo toque do Amor flui livremente através dos caminhos ocultos, das regiões mais além, onde, junto aos aromas, mistura-se ao amor adormecido. Doce Luz, tu ainda acordas o homem cansado para o trabalho, e em mim deitas a alegria da vida; mas tu não me afastarás do monumento coberto de musgo da memória. Oferecer-te-ei a mão laboriosa sempre que necessitares de mim; louve a rica pompa de teu esplendor; persiga incansável as harmonias amáveis de teu habilidoso artesão; contemple feliz a pesarosa paz de teu poderoso, radiante relógio; explore o equilíbrio das forças dos maravilhosos e incontáveis mundos e suas estações; mas meu coração secreto permanece da Noite, e do seu filho, Amor o criador.

Poderias tu me revelar um coração eternamente verdadeiro? Possui teu sol olhos amigos que me conhecem? Seguram tuas estrelas minha mão quando ela se oferece? Retribuem elas a pressão suave da minha palavra carinhosa? Tu não as adornaste com cores e com trêmulo contorno? Ou terá sido ela quem concedeu às tuas jóias um significado mais elevado, e querido? Que delícias, que prazeres, a tua vida me oferece, para aliviar o fardo dos transportes da Morte? Não será tudo aquilo que nos inspira investido da vivacidade da Noite? Tua mãe, é ela que te gera, e a ela deves toda tua glória. Tu poderias desvanecer em si, poderias dissipar-se no espaço infinito, se ela não te amparasse, não te enfaixasse para que permanecesses quente e flamejante, concebendo o universo. É certo que eu já existia antes de ti; a mãe enviou-me com minhas irmãs para habitar o mundo, para santificá-lo com amor de modo que ele se tornasse um memorial eternamente presente, para semeá-lo com flores que jamais fenecerão.

Mas assim como elas não germinaram, e nem estes pensamentos divinos; não há sinal algum do apocalipse que está próximo. Mas um dia teu relógio apontará para o fim do Tempo, e então deverás ser apenas um conosco, e deverás, pleno de ardente saudade, extinguir-se e morrer. Eu sinto em mim o término de tua atividade, experimento a liberdade celestial, e a restauração feliz. Com dores selvagens reconheço como estás distante de nosso lar, teu feudo junto ao antiquíssimo domínio, o Céu. Tua ira e teus delírios são em vão. Inconsumível paira a cruz, bandeira de vitória em nossa senda.

Peregrinei
Onde toda dor
Certo dia,
Só terá sabor de prazer.
Mais alguns momentos
E estarei livre,
Intoxicado
Na mentira envolvente do amor.
A vida eterna
Surge qual onda diante de mim:
Observo do cume,
Observo a ti.
Ó Sol, deves desvanecer
Sob a colina;
Uma sombra irá trazer-te
Irada frieza.
Ó, atire em meu coração amor,
Atire até que eu me vá;
Até que adormecido,
Ainda ame!
Eu sinto o fluxo da
Correnteza da jovem e generosa morte;
Que transforma meu sangue
Em bálsamo e éter!
Com fé e vontade
Eu vivo os dias:
Com um êxtase sagrado,
Morro a cada anoitecer.

V.
Em tempos antigos um Destino de ferro surgiu a reinar, com força implacável, sobre as dispersas famílias humanas. Uma opressão sombria envolveu suas almas ansiosas: a Terra não tinha fronteiras, ainda era um lar para os homens e morada de deuses. Sua estrutura misteriosa jazia desde eras eternas. Além das colinas rubras do amanhecer, no seio sagrado do mar, reinava o sol, aquele que tudo inflama, luminária viva. Era como um velho gigante abraçando este mundo feliz. Aprisionados nas profundezas jaziam os primogênitos da mãe Terra, sem esperanças em sua fúria destruidora contra a nova raça de deuses e seus parentes benévolos, os homens. O abismo esverdeado e obscuro do oceano abrigava uma deusa. Nas grutas de cristal as pessoas brincavam.

Os rios, as árvores, as flores e animais tinham a espiritualidade esperta do ser humano. O vinho era doce, servido por jovens personificadas; havia um deus nos vinhedos; uma deusa maternal, amável, cresceu entre as folhagens douradas; a sagrada embriaguez do amor era doce prece para a mais bela das deusas. A vida vagava através dos séculos numa contínua primavera, uma festa sem fim dos filhos do Céu, habitantes da terra. Todas as raças, como crianças, adoravam a chama etérea, multiforme, como a mais sublime entre as coisas do mundo.

Nada mais que uma ilusão, um sonho horrível -
Algo temível avançou sobre o banquete feliz,
E deixou os espíritos numa consternação selvagem.
Os próprios deuses não conheciam respostas ou conselhos,
Para infundir consolo nos corações sufocados.
A senda do monstro era misteriosa e sem rumo,
Cuja fúria não se aplacava com preces e sacrifícios;
Era a morte que invadiu o banquete com medos,
Com angústia, dores cruéis e lágrimas amargas.
Agora separados eternamente de tudo
Que inclina o coração à felicidade fluente do prazer,
Separados dos que amam, os corações partidos,
Em vão saudosos e em desespero sem fim -
Lutam em sonho tristonho,
Parecia que tudo era posse da morte profunda!
Que rompeu a vaga próspera da glória do homem
No rochedo inevitável da Morte.
Em vôo ousado, vão ao alto as asas do Pensamento;
Os homens cobrem a coisa horrível com o manto da beleza:
Uma bela jovem apaga a vela, para dormir;
O fim aproxima-se suavemente, como o lamento do alaúde do amante.
Uma sombra fria rasteja sobre a memória:
Assim dizia a canção, pois Miséria a movia.
Ainda indecifrável jaz a Noite interminável -
O símbolo solene de um Desejo distante.

O velho mundo entrou em declínio. O jardim de delícias da raça jovem definhou; mais acima, em regiões amplas e desoladas, agora combatiam os homens maduros tendo abandonando a infância. Os deuses desvaneceram-se junto a seu séquito. A natureza jazia solitária e sem vida. O Número seco e a Medida rígida aprisionaram-na com correntes de ferro. Envoltas no ar e na poeira as inestimáveis florações da vida fugiram para mundos obscuros. Fora-se a Fé, criadora de maravilhas, e aquele anjo que tudo une e transforma, seu companheiro, Imaginação. Os ventos do norte sopraram sobre aquela plaga tórrida, e a terra maravilhosa primeiro gelou-se, e então evaporou-se no éter. As profundezas distantes do Céu tornaram-se plenas em mundos relampejantes. A alma do mundo, junto a todos seus poderes, ocultou-se no santuário profundo, nas regiões mais puras da mente, até que um dia desperte o alvorecer da glória universal.

A Luz não era mais a morada dos deuses, nem o presságio celeste de sua presença: fora lançado sobre eles o manto da Noite. A Noite tornou-se o grande berço das revelações; nela retornaram os deuses, e adormeceram, persistindo em formas novas e gloriosas no interior do mundo transfigurado. Entre o povo, antes perfeito e bondoso, que havia se tornado zombeteiro e insolentemente hostil diante da abençoada inocência da juventude, apareceu o Novo Mundo, sob o disfarce nunca visto antes, de uma canção abençoada de pobreza, filho de uma dama, uma mãe, fruto eterno de enlace misterioso. A sabedoria oriental, profética, florescente, de pronto reconheceu o surgimento de uma nova era; uma estrela mostrou-lhes o caminho para o pobre berço do rei. Em nome de um futuro distante, homenagearam-lhe com respeito e perfumes, as mais elevadas maravilhas da natureza. Na solidão, o coração celeste revelou-se para o cálice em flor do amor grandioso, voltou-se para a face suprema do pai, e repousou sobre o seio da mãe solene e doce. Com fervor divino o olhar profético do filho contemplou os anos futuros, previu, imperturbável sob o fardo terreno de seus dias, a prole amada a surgir de sua árvore divina. As almas infantis reúnem-se ao seu redor, e anseiam pelo amor verdadeiro, maravilhosamente obtido. Como flores, elas desabrocham uma nova vida em sua presença. Mundos que jamais se esgotam e boas novas saem como faíscas de um espírito divino por seus lábios benévolos. De uma costa distante veio um bardo, nascido sob o céu claro de Hellas, para a Palestina, e cedeu seu coração inteiro para a criança maravilhosa: -

Tu és o jovem cujas eras mantiveram por tanto tempo
Pairando sobre nossos túmulos, perdido entre as névoas da imaginação;
Sinal na escuridão da boa-nova de Deus,
Quando madura a humanidade a colherá;
E é o que desejamos, e cultivamos com amor
E toda a desgraça perde o viço, o sentido;
A morte encontrou sua razão de ser na vida eterna,
Pois tu és Morte, e fizeste-nos totalmente unos.

Cheio de alegria, o bardo foi para o Indostão, o coração intoxicado com a doçura do amor, que expressou em canções compostas sob aquele céu suave, de modo que milhares de corações ajoelharam-se diante dele, e a boa nova frutificou em uma infinidade de ramos. Logo depois da partida do cantor, aquela vida preciosa foi entregue em sacrifício pela profunda queda do homem. Ele morreu jovem, arrebatado do mundo que tanto amava, de sua mãe chorosa, e seus amigos temerosos. Seus doces lábios sorveram a taça amarga de erros inexprimíveis. Em angústia horrível aproximou-se o nascimento de um novo mundo. Ele combateu bravamente os terrores da antiga Morte; grande foi o peso da antiga palavra sobre ele. Porém, ele olhou suavemente para a mãe; surgiu a mão libertadora do Amor eterno, e ele adormeceu.

Por alguns dias pairou um véu profundo sobre o mar revolto, sobre a terra que tremia; lágrimas sem fim brotaram de seus amados; o mistério desvendou-se: espíritos celestes arrastaram a grande rocha da tumba obscura. Anjos observaram-no, adormecido, desencorporado docemente em sonhos; ele despertou em nova glória, Divinificado galgou ao cume do novo mundo recém-nascido, enterrou com as próprias mãos o antigo cadáver na cavidade abandonada, e com mão suprema deitou sobre ela uma rocha que poder algum seria capaz de remover novamente.

Seus olhos amados lacrimejam sobre a tumba lágrimas graves de júbilo, lágrimas emocionadas, lágrimas de graça eterna, sempre renovadas; com felicidade observam-no a erguer-se novamente, e contemplaram seu lamento fervoroso e suave sobre o seio abençoado da mãe, a andar em comunhão pensativa com seus amigos, murmurando palavras como que arrebatadas da árvore da vida; vêem a ti, partindo saudoso para os braços do pai, levando consigo a jovem Humanidade, e a inexaurível taça de um futuro dourado. Logo a mãe juntou-se a ti em triunfo celeste, e era a primeira pessoa contigo na nova morada. Desde então, eras fluíram, e num esplendor sempre maior tens se dedicado à nova criação, e milhares seguiram a ti, em meio a dores e torturas, plenos de fé e desejosos pela verdade, andam contigo e a virgem celestial no reino do Amor, e serão para sempre teus, ministro do templo da Morte celestial.

A pedra é elevada,
E toda a humanidade ergue-se;
Todos nós residimos em ti,
Desaparecemos em nossa prisão.
Todos os tormentos se foram
Diante da taça dourada;
Pois nem a vida nem o mundo podem estar
Na mesa em que ceamos com o Senhor.
Ao casamento a Morte convida;
E nenhuma virgem tarda;
As lamparinas queimam vistosas;
Sem necessitarem de óleo algum.
Teus pés ao longe despertam
Ecos em nossas sendas!
E as estrelas criam símbolos
E doces vozes!
Dez mil corações aspiram
A ti, ó nobre mãe;
Nesta vida, carregados de tristezas,
Desejam apenas a ti;
Em ti esperam a cura;
Em ti esperam repouso seguro,
Quando, selando sua segurança,
Os abraçará contra teu peito.
Os que repousam no inferno
Queimam desapontados,
Pois por fim, ao te verem
Fogem deste mundo:
E tu apareces em auxílio,
A nós, em meio às dores:
Agora estamos mais próximos de tua morada,
E nunca mais iremos embora!
Agora não existem mais lágrimas
Que amor e preces junto aos túmulos;
O dom que o Amor concede
Não será mais roubado de ninguém.
Para apaziguar e aquietar a saudade
Vem a noite, e acalma os sábios;
A multidão de filhos do Céu nos envolve
Zela por nós e guarda nosso coração.
Coragem! pois esta vida ruma
Para uma vida sem fim adiante;
O sentido, amoroso, aguardando,
Torna-se claro e forte.
Um dia as estrelas, caindo,
Devem fluir como vinho dourado:
E nós, sorvendo tal néctar,
Brilharemos como estrelas vivas!
Livre, o amor emerge da tumba,
Para não morrer nunca mais;
Em plenitude, a vida eleva-se e ondeia
Qual mar sem limites!
Toda noite há uma deliciosa tarefa!
Uma ode de júbilo!
E o sol de todos nossos prazeres
É a face de Deus!

VI.
DESEJANDO A MORTE

No seio da terra!
Fora dos domínios da Luz!
As dores da Morte nada mais são
Que a partida, romper-se de grilhões!
Rapidamente, num barco esguio,
Rapidamente navegamos para a costa do Céu!
Bendita seja a Noite eterna,
E bendito o Sono sem fim!
Somos abrasados pelo dia luminoso,
E ressecados pelo tédio!
Estamos cansados da vida que dura:
Venha, agora iremos para casa, para Deus!
Para que permanecer neste mundo sublunar?
Para que nutrir o amor e a verdade aqui?
Se o que é antigo está muito além -
Para nós o novo deve perecer!
Aquele que ama o passado com piedade ardente
Está sozinho, amargurado, em exílio.
Porém, como o espírito humano, o passado
Elevou-se em chamas sublimes;
Onde os homens herdaram do Pai,
O dom de reconhecer sua face;
E, em simplicidade perfeita
Muitos tornaram-se seu arquétipo.
O Passado em rica florescência, no qual
Antigos troncos geraram o fruto glorioso;
E as crianças em busca do mundo futuro,
Buscaram a vitória sobre a dor e a morte;
E, apesar da vida e do prazer fenecerem,
Muitos corações partiram-se de amor.
O Passado no qual o próprio Deus possuiu
O vigor da juventude;
E enfrentou a morte prematura, por amor à verdade
Que os jovens contemplaram, e ousaram -
Enfrentar com paciência a angústia e a tortura
Para provar que o amavam.
Agora vemos com inquietação ansiosa
Aquele passado envolto em trevas;
Com a água deste mundo
Nunca poderemos matar nossa sede:
Precisamos retornar à nossa antiga morada
E conhecer aquele tempo abençoado de novo.
E o que impediria nosso retorno?
Já que repousam aqueles que amamos!
Sua sepultura é o limite de nossas vidas;
Nós recusamos com repugnância esta época odiosa!
Não somos enganados por nenhuma esperança:
O coração está pleno; o mundo vácuo!
Infinito e misterioso,
Vibra em mim um doce tremor,
Como se na distância ecoasse
Um sinal, semelhante ao nosso lamento:
Os amados esperam, assim como eu,
Enviam seu suspiro de saudade.
Abaixo, para a noite amorosa, e mais além
Para o amado Jesus!
Coragem! as sombras do entardecer tornam-se em cinzas,
Assim como nossos planos, e nos acalmam!
Um sonho romperá nossos grilhões,
E nos abrigará no coração do Pai.

(tradução de Orlando Ferreira)

Fontes:
http://canaldepoesia.blogspot.com/
http://www.redutoliterario.hpg.ig.com.br/
Capa do Livro -
http://www.assirio.com