sábado, 10 de setembro de 2016

Olivaldo Júnior (A menina e o jardineiro)

A menina estava doente há muito tempo. Por isso, de uns tempos para cá, morava mais no hospital que em sua casa. Sua mãe, professora no Jardim da Infância em que essa mesma menina tinha estudado, aquela mulher se desdobrava em mil por sua filha.

Foi que, de manhã, pouco antes da mãe despertar, no quarto daquele insípido hospital, adentrava um homem de macacão jeans e suspensórios rubros, que vinha ao pé da cama da menina e dizia:

- Bom dia, flor do dia! Como vai, minha "tulipa"?

A primeira vez em que ela o viu, não gostou de vê-lo. Sentiu medo. Mas, com o passar dos meses, aquele homem se tornara um verdadeiro raio de sol para a menina dos olhos da menina, que sorria mal abria os olhos e via o tal do homem, lá, com seu bom dia.

Contou à mãe sobre o homem de macacão que a visitava, o que deixou a mulher em pânico, chegando a pedir ao diretor do hospital que redobrasse a segurança no quarto de sua filha. Prontamente atendida, em nada adiantou reforçarem a vigia. Dia após dia, com seu bom dia, lá vinha o homem deixar aos pés da cama da menina um botão de rosa, uma flor qualquer que lhe fizesse bem.

Um dia, a menina não acordou mais. Choro. Desespero. A mãe pensou que fosse morrer. Por que será que isso acontece? Onde estava Deus? O jeito era o tempo, diziam a ela no velório. Que tempo pode suprir a ausência de quem nasceu de seu ventre, hein?

À hora exata do enterro, no cemitério lotado de gente, o tempo virou, e todas as flores de todas as lápides foram varridas para o pequeno caixão cor-de-rosa em que o corpo da menina dormia. Ninguém viu o jardineiro, aquele mesmo do hospital, detrás de um mausoléu, sorrindo, como se aquele vento todo fosse obra de Sua vontade de se despedir da menina, que, toda feliz, ao lado Dele, de mãos dadas com Ele, partia. Ai, ai...


Fonte:
O Autor

Angela Maria Rodrigues Laguardia* (Clarice Lispector: a mulher e a escritora; o mérito e o mito)

Clarice Lispector
Resumo: Em A Descoberta do Mundo, antologia de crônicas de Clarice Lispector,escritas para o Jornal do Brasil, entre os anos de 1967 e 1973, confrontamo-nos com a mulher, a ficcionista e a cronista que emerge de reflexões metalinguísticas para resultar no mito Clarice. Ao mover-se entre as fronteiras da literatura e do jornalismo, Clarice constrói um espaço que vai além do modelo convencional do gênero cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo” e possibilita um processo de genuína identificação do leitor com os temas que propõe. Percorrendo estas crônicas e elegendo algumas, aqui, para tentar compreender como ocorre esta relação ficcional/factual de seus textos com o leitor, deparamo-nos com o enigma clariciano, como no excerto intitulado Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós” (LISPECTOR, 1984:279).
A sedução e o desafio desta cumplicidade constituem-se em um jogo escritural, dimensionando a travessia da personagem Clarice dentro de sua própria obra, num olhar que se move de dentro para fora e vice-versa, constituído pela poesia e filosofia de seus múltiplos papéis, hábeis disfarces do mistério que alimenta sua obra

Introdução
Este trabalho pretende refletir sobre as crônicas de Clarice Lispector, reunidas na obra A Descoberta do Mundo. Por um lado, visa ajudar a compreender o nascimento da cronista dentro do percurso da escritora. Por outro, procura configurar a mulher e a personagem que emerge dessa escrita, instituindo, através dela, o seu grande mérito e erguendo-a aos píncaros do mito.

1- A mulher e a escritora nas crônicas de A Descoberta do Mundo

A Descoberta do Mundo reúne 468 títulos de crônicas publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Esta obra, postumamente editada, em 1984, por seu filho Paulo Gurgel Valente, apresenta “uma continuidade” que permite ao leitor da antologia compreender como os textos que, “aparentemente”, não se enquadrariam no gênero (comentários, recados, trechos de romances, contos, novelas e outros), vão conquistando seu espaço enquanto gênero e também ganham uma proximidade e cumplicidade entre Clarice Lispector e os leitores de suas crônicas.

Este espaço viria também a contribuir para a divulgação das obras da escritora. Segundo Teresa Montero, inicialmente, foram os contos que tornaram Clarice Lispector mais próxima de seus leitores, principalmente quando a revista Senhor publicou contos como A menor mulher do mundo, Feliz Aniversário e A imitação da rosa, na década de 50, obtendo uma resposta positiva do público, assim como o interesse das editoras. Esta proximidade aumenta em 1964, com a publicação do romance A paixão segundo G. H. e do livro de contos A legião estrangeira, alguns dos quais são publicados na Senhor, “mas a sua recepção se expandiu quando o grande público pôde ler alguns deles na coluna de Clarice no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973” (MONTERO, 2009:13).

Em Felicidade Clandestina (1970), a escritora resgata contos de A legião estrangeira e crônicas do Jornal do Brasil. Aqui, com Teresa Montero, pergunta-se: “O que é crônica e o que é conto neste livro? Os gêneros se misturam. Clarice afirmava: ‘Gênero não me pega mais’” (MONTERO, 2009:13).

As experiências anteriores de Clarice Lispector o jornalismo, como colunista, podem ter contribuído para este exercício “transgressor” do espaço da crônica. Em 1952, ela assina a coluna “Entre Mulheres”, no semanário Comício, sob o pseudônimo de Teresa Quadros, a convite do escritor e jornalista Rubem Braga. Em um contexto do pós– guerra, ela tratava de assuntos do lar e de moda, dava conselhos para as leitoras sobre a silhueta, receitas e até da maneira de prevenir problemas no casamento, entre outros assuntos. Porém, ela foi além dos considerados assuntos fúteis, porque a ficcionista, ou a “personagem Teresa Quadros” acrescentou àquele espaço do Comício, seu gosto pela literatura, reproduzindo trechos de textos e referências de autoras como Virgínia Wolf, Katherine Mansfield - e de Clarice Lispector.

Sua segunda colunista fictícia aparece em 1959, como Helen Palmer, no “Correio feminino – feira de utilidades”, no jornal Correio da Manhã. Um trabalho menos sofisticado do que o anterior que, sob o patrocínio da indústria de cosméticos Pond’s, tinha a missão de passar à leitora conselhos de beleza que fossem associados aos seus produtos. Um público em que a “rainha do lar” e zelosas donas de casa eram o enfoque da coluna.

Durante este período, Clarice aceita o convite de Alberto Dines para assinar uma outra coluna feminina no Diário da Noite, desta vez como ghost-writer de Ilka Soares, modelo e atriz do cinema brasileiro. Com o nome de “Só para mulheres”, “Ilka Soares” conversava com as leitoras desta seção, aproximando-se das leitoras para dar dicas sobre o mundo da moda ou sobre questões relacionadas ao cotidiano da mulher comum. Sua contribuição terminaria em março de 1961.

Assim, em agosto de 1967, quando Clarice novamente recebe o convite de Alberto Dines para participar de uma coluna no Jornal do Brasil, sente–se temerosa ao saber que iria escrever crônicas, algo que ainda não fizera e ainda assinadas por ela mesma, sem a “proteção” dos pseudônimos anteriores. Ao mesmo tempo, era um momento delicado da vida de Clarice, sua única atividade extra eram as traduções e ainda se recuperava de um acidente doméstico, um incêndio provocado por um cigarro com graves queimaduras, especialmente nas mãos, abatendo-a profundamente.

No capítulo “O acidente (corpo, a ferida, a escrita)”, de Figuras da Escrita, Carlos Mendes de Souza refere-se a este acidente e como sua colaboração nas páginas do Jornal do Brasil também contaminará a escrita do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, fator que se define como um marco na escrita clariciana: “Com efeito, a partir daqui desencadeia-se, pelo menos aparentemente, um certo deslaçamento de tensões temáticas expressivas, uma atitude nova perante a escrita (...) ao qual não se pode deixar de associar ao acidente” (SOUZA, 2011:496).

O nascimento da cronista vai revelando as faces da escritora, da mulher e do mito Clarice. Em uma de suas crônicas iniciais, Amor Imorredouro, um aparente despojamento inaugura o tom confessional que ela imprime a muitas de suas crônicas:
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que se pode chamar propriamente de crônica. E além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo que não por dinheiro, a gente se expõe muito (LISPECTOR, 1999, p.29).

A cronista vai-se revezando entre as crônicas em que exprime esta sua preocupação em não revelar-se, entre aquelas que possuem um caráter metalinguístico, entre aquelas em que afirma, ou discute sobre ser misteriosa ou não, aquelas em que também questiona seu papel de escritora e tantas outras que não mencionaremos aqui, devido à brevidade deste trabalho.

Neste percurso, o mecanismo de identificação com o leitor é o eixo que conduz ou amarra as crônicas, ora de forma perceptível, ora de forma implícita, em um jogo sedutor e prazeroso com as palavras.

Em Outra Carta, ela responde à carta de um leitor que “parece revelar” que conheceu Clarice só a partir da crônicas e que pede à escritora que não largue sua coluna sob o pretexto de defender sua intimidade, porque para ele, o “escritor, se legítimo, sempre se delata”. Ela responde que, embora seus romances não fossem autobiográficos, quem os lê acaba por informá-la de que ela se delata, por isto o cuidado de não expor-se nas crônicas. Porém, ela diz que, paradoxalmente, “lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo intenso de me confessar em público e não a um padre” (LISPECTOR, 1999:78).

O leitor é seu interlocutor, tem sua função questionada neste diálogo, ao mesmo tempo em que ocorre o processo de identificação entre escritor/leitor: “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias , é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor,é o escritor” ( LISPECTOR,1999: 79).

No desvão desta escrita, Clarice provoca o leitor de suas crônicas, insinuando-se pelo caminho da possibilidade, do que não se define, como na crônica Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós” (LISPECTOR,1999: 279).

Para José Castello, não interessava a Clarice “escrever ‘para o leitor’, mas ‘ser’ este leitor. Escrevia como uma leitora, que se delicia com as palavras alheias” (CASTELLO, O Globo, 2011).

Nesta inquieta incompletude, ela procura palavras que lhe possibilitariam o encontro com o outro e este caminho, sob o pretexto das crônicas, é aludido através da crônica Em Busca do Outro: Não é à toa que entendo os que buscam o caminho. Como busquei arduamente o meu!E como hoje busco (...) o melhor de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei; eis o meu ponto de chegada (LISPECTOR, 1999: 119).

Escrever é um caminho, um modo de aproximar-se do outro, e Clarice, ao longo das crônicas,reporta-se muitas vezes a estes deslocamentos, ora com a angústia de quem tateia o caminho, ora com o entusiasmo da aventura, ora questionando o próprio caminho, ou mesmo “filosofando” sobre ele.

Com o título de Anonimato, temos uma crônica, que expõe esta tensão entre o ato da escrita e a “pessoa Clarice”, diante desta proximidade com o público, imposta pelo espaço da crônica, uma entrega em que resiste e, resistindo, ancora-se na palavra “silêncio” para preservar-se e preservar as palavras:

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer [:] já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. (...) Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E este silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. (LISPECTOR, 1999: 75-76).

Em Ser Cronista, Clarice indaga-se para indagar o gênero, um “esboço” que ganha forma na sua singularidade:

Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade, eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha no assunto e ver se chego a entender. Crônica é um relato? É uma conversa? é o resumo de um estado de espírito? (LISPECTOR, 1999:112).

Outras crônicas de natureza metalinguística refletiram sobre o ato da escrita e assinalam esta preocupação constante de Clarice, para quem escrever é transcender o próprio ato. Na crônica Escrever, ela expressa este seu sentimento diante da escrita:

Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. (...) Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. (...) É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada (LISPECTOR, 1999:134 - grifos nossos).

Clarice compartilha com o leitor de suas crônicas esta “intimidade” com a escrita, daí a genuína cumplicidade, o passaporte lícito para “colocar-se” com leveza e autenticidade, sem abdicar de seu valor como cronista.

Para ela, escrever é também uma aventura, e duas crônicas nomeadas com este tema ilustram a razão desta afirmação: A Perigosa Aventura de Escrever e Aventura. Na primeira, ela diz : “Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras” (LISPECTOR,1999:183), mas depois discorda do que havia dito: “Mas está errado, pois que, ao escrever, grudada e colada, está a intuição. É perigoso porque nunca se sabe o que virá _se se for sincero” (ibidem). E remata a crônica, dizendo: “Não se brinca com a intuição,não se brinca com o escrever: a caça pode ferir mortalmente o caçador” (ibidem).

A segunda crônica, Aventura, repete a frase sobre o valor da intuição, falando de sua necessidade de escrever para entender e como se relaciona com a aventura:

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o pensamento (...); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever.
(...) Sempre tive um profundo senso de aventura (...). Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever
(LISPECTOR, 1999:236).

Porém, Clarice foi além da “aventura” da escrita. Ela mergulha dentro de si, busca as palavras, questiona suas origens, como em Escrever ao Sabor da Pena, sabor que consiste na procura: “Estou falando de procurar em si próprio a nebulosa que aos poucos se condensa, aos poucos se concretiza, aos poucos sobe à tona - até vir como num parto a primeira palavra que a exprima” (LISPECTOR, 1999:278).

Escrever é lembrar-se do que nunca existiu” (LISPECTOR, 1999:385) - filosofa Clarice. E esta insistência na “memória” é fundamental para a existência, segundo ela: “Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva”( ibidem).

Ao abordar o tema da escrita em suas crônicas, Clarice estava constantemente lembrando aos seus leitores, sua preocupação com as palavras, não prescindia de seu compromisso com elas, e ainda chamava a atenção para elas: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1999:385).

2. O mérito e o mito na voz da cronista

Foram as crônicas que mais “falaram” de Clarice. Embora ela almejasse o anonimato, suas palavras acabavam por suscitar, paradoxalmente, o inverso: “No dia-a-dia, ela caminhava sobre o tênue limite entre mostrar e esconder. Não se queria misteriosa, mas tampouco tinha vontade de se expor” (Cadernos de Literatura, 2004:57).

Esta aparente contradição, no decorrer da leitura da Descoberta Do Mundo, ajuda-nos compreender como o mito Clarice se vai delineando através das crônicas e, paralelamente, através de depoimentos ou entrevistas, onde, ora se confirmava, ora se desmentia este mistério que lhe era atribuído.

Numa crônica escrita em agosto de 1967, logo no início de sua participação no Jornal do Brasil, denominada A Surpresa, temos o olhar de Clarice sobre si mesma: “Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência” (LISPECTOR, 1999:23). Ao surpreender-se, ela surpreende quem lê, um espelho de duas faces que alterna a cronista e a personagem Clarice.

Quase um ano depois, na crônica O Meu Próprio Mistério, ela resume-se assim: “sou tão misteriosa que não me entendo” (LISPECTOR, 1999:116).

Perscrutar o mistério? Em Fernando Pessoa Me Ajudando, ela alude ao poeta e aponta o jogo ambíguo do revelar-se: Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte de mim. (...) O que me consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos (LISPECTOR, 1999, p.136-137).

Em entrevista para o Correio do Povo, em janeiro de 1971, Antonio Hohlfeldt lhe indagaria se suas crônicas seriam uma confissão. Ela, sem negar nem confessar, justifica-se, dizendo: “Eu preciso do dinheiro. A posição de um mito não é muito confortável. Por isso eu gosto de crônica. Porque ela diminui a distância que existe entre mim e o leitor” (ROCHA1, 2011: 58).

Em 1977, em entrevista concedida ao programa Panorama da TV Cultura, responde a Júlio Lerner que não se considerava uma escritora popular. E, quando ele pergunta qual seria razão, ela dispara:
Ué, me chamam até de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética?” (ROCHA2,2011: 178)

Outra preocupação de Clarice, revelada através de uma de suas crônicas, denominada Como É Que Se Escreve?, prendia-se com seu “ofício de escritora”. Diante do leitor, ela se questiona sobre o conceito do ato de escrever e, também, sobre a razão pela qual ainda não se considerava uma escritora:

"Por que, realmente, como é que se escreve? que é que se diz? e como dizer? como é que se começa? (...) Sei a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. (...) Será que escrever não é um ofício?

Não há aprendizagem, então?O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve”
(LISPECTOR,1999,p.156-157).

Para Clarice, escrever era uma forma de existir:

“Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever” (LISPECTOR, 1999:101). Por isto, dispensava os rótulos que lhe eram atribuídos, questionava-os como uma forma de não se deixar impregnar por eles, dispensando-os se sentia “livre” para se exercer, para ser Clarice.

Intelectual? Não - responde Clarice em outra crônica, explicando as razões pelas quais não se considerava como tal. “Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’” (LISPECTOR, 1999:149). “O que sou então?”, pergunta Clarice, para depois falar de “si mesma”: Sou uma pessoa que tem coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal. (LISPECTOR, 1994:149).

Somos, assim, surpreendidos pela mulher, pela cronista e pela escritora Clarice, que emergem destas palavras. Seu grande mérito, assim compreendemos, surge deste modo de ser,da autenticidade que seduz o leitor, e da capacidade de colocar em palavras o que o leitor gostaria de dizer e ouvir.

Conclusão


Ao percorrer as crônicas de Clarice Lispector em A Descoberta do Mundo, com destaque para aquelas que elegemos para o presente trabalho, podemos perceber como ela constrói um espaço que vai além do modelo convencional do gênero cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo”,movendo-se entre as fronteiras da literatura e do jornalismo.

Nesta “travessia”, conseguimos entrever como ocorre a relação ficcional/factual de seus textos com o leitor de suas crônicas, cujo processo de genuína identificação, por si só, já justificaria o mito e o mérito clariciano.
Porém, lendo suas crônicas, vamos mais além, como Guimarães Rosa, que confessou ler Clarice “não para a Literatura, mas para a vida”.

Referências Bibliográficas

AAVV, Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial, números 17 e 18. Dezembro de 2004. Instituto Moreira Salles.
CASTELLO, José. Clarice Lispector- Clarice na Cabeceira: romances. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011.
CASTELLO, José. O Globo. Caderno Prosa e Verso. 8 de janeiro de 2011.
LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.
MONTERO, Teresa. Clarice Lispector- Clarice na Cabeceira. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009.
ROCHA, Evelyn. Clarice Lispector- Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

__________________________
1 Entrevista feita por Antonio Hohlfeldt e originalmente publicada no Correio
do Povo em 3 de janeiro de 1971, com o título de Uma tarde com Clarice
Lispector.
2 Entrevista feita por Júlio Lerner, para o programa Panorama da TV Cultura em 1977, com o título A última entrevista.
Fonte:
Teresa Mendes e Luís Cardoso (organizadores). A Mulher na literatura e outras artes – Comunicações apresentadas no I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea. Instituto Politécnico de Portalegre - Escola Superior de Educação. Portalegre/Portugal:  Junho de 2013._______________________________________________________________________
* Angela Maria Rodrigues Laguardia
Doutora em Letras - Estudos Portugueses, especialidade em Estudos Comparatistas pela Universidade Nova de Lisboa (2014).
Mestre em Letras: Estudos Literários, área de concentração Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008).
Especialista em Literatura Brasileira pelo PREPES, Universidade Católica de Minas Gerais (2001),
Licenciatura em Letras (Português e Literaturas de Língua Portuguesa/ Inglês e suas Literaturas) pela Universidade Presidente Antônio Carlos de Barbacena, Minas Gerais (1984).
Foi professora de Língua Portuguesa e Literatura no Centro Educacional Brasileiro e no Colégio de Aplicação da UNIPAC, em Barbacena. Professora de Língua Portuguesa e Teoria da Literatura nos cursos de Letras; Comunicação Social; Ciência da Computação; Tecnologia em Meio Ambiente e Administração na Universidade Presidente Antônio Carlos.
Dentre suas publicações, destacam-se Fazes-me Falta,de Inês Pedrosa: uma alegoria contemporânea da "saudade" e Maria Lacerda de Moura e Miguel Bombarda: perspectivas da Ciência no limiar do século XX,para a Revista da AMONET. Atua como pesquisadora junto ao CLEPUL ,Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
É pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Letras de Minas, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. .
Fonte:
http://www.escavador.com/sobre/5496835/angela-maria-rodrigues-laguardia

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Olivaldo Júnior (A Felicidade)

É com lágrimas nos olhos que lhe conto esta história. Foi há muito tempo, quando as cidades, por mais próximas que fossem, eram sempre um pouco mais longe do que são hoje. Ontem, parece que foi ontem que tudo aconteceu. Tem um tempo sobrando? Pois, então, chega aqui, senta mais perto.

Era um menino de calças curtas, com a esperança de chegar a ver quem desde sempre ouviu falar. Era alguém que esperava a Felicidade. Felicidade... "Será que ela é velha? Deve ser! Minha avó já falava nela! Deus, que ela não morra até me ver, ou melhor, até que eu veja ela!...", era o pensamento do menino cujo nome era Tomé. Tomé, sim, nome de santo, de quem se diz que só acredita em algo quando vê, toca, cheira, escuta e prova o que existe. Mas, coitado, se assim fosse mesmo, jamais conheceria a Felicidade, que essa coisa, ou pessoa, ou ente, não se vê, não se toca, não se cheira, não se escuta, nem se prova. Só é possível intui-la. A intuição da Felicidade é o que nos faz vê-la, tocá-la, cheirá-la, escutá-la, prová-la e, aí sim, experimentá-la. Você já experimentou a Felicidade? Viu, tocou, cheirou, escutou, provou e intuiu o mundo pelas mãos desse poder, dessa fada hermética, divina?

- Ei, menino! Menino! Quer saber onde é que mora a Felicidade?, perguntou ao garoto um senhor, o Cego da Estação, um homem tão pobre que vivia da compaixão daquela velha cidade.

- Quero, sim, senhor! É o que mais quero na vida!!!, respondeu o menino ao cego. E fazia um dia lindo, com um azul lustroso no céu, carneirinhos de lã pastando ao longe, perto do Sol.

- Está vendo aquela montanha, depois do fim da cidade, pertinho de Deus? É lá que ela mora. Eu iria com o menino, mas, como vê, sou cego de nascença, enjeitado de pai e mãe, sem nada...

O menino, mesmo radiante com a informação, entendeu o que o cego lhe pedia e tirou do bolso as moedinhas que tinha. O dia estava ao meio. Se corresse, chegaria logo ao topo da montanha e, depois de tanta espera, finalmente se encontraria com aquela que, mesmo pedida como presente de Natal, não era trazida, a Felicidade. Que mistério o aguardaria? Como será que ela era? Como?

Voltou para casa e, escondido da mãe, pegou seu embornal de aventuras e saiu correndo em direção à montanha, depois do fim da cidade, pertinho de Deus.

O terreno a se escalar na montanha era íngreme, cheio de pedras que, ao toque do minúsculo pé do menino, rolavam montanha abaixo, espantando os urubus que já se amontoavam, ardilosos, à espera de que o pior ocorresse. "Um menino daquele tamanho escalando? Ah, vai dar em queda!...", pensavam.

Meus olhos já se enchem de lágrimas de novo. Desculpe-me. É que a vida, o menino, ai, ai...

Já eram quase três da tarde. O topo estava próximo. "Como custa a chegar!", pensou o menino. "Há de valer a pena! A Felicidade!..". Um tanto cego pela luz que reluzia cruelmente nas pedras, um pouco antes de chegar ao topo, viu uma luz sem igual. "Era ela! Estou perto!", disse para si mesmo o pequeno. "Não me escapa! Vou te pegar, Felicidade!...". E a luz lhe revelava uma caverna, de que a luz ficava mais forte a cada suave passo do pobre. Pé ante pé, suor no rosto, passos titubeantes, sol do deserto, e... zás! Uma coruja lhe vem de encontro e lhe sangra os olhos, derrubando-o no chão! Os urubus, enfileirados, previam a morte iminente, mas, desconfiada, a mãe do garoto pediu a um velho amigo que o seguisse. Chegou tarde. Quando alcançou o menino, este, que já estava com as mãos cobrindo os olhos, chorava, soluçava e gritava que não era justo, tinha que vê-la, tinha que vê-la, o cego mentiu!

Num dos ombros do amigo da mãe, desceu a montanha, cruzou a cidade, chorando, chorando muito. Ao longe, o cego, sabendo o que tinha feito, se riu e começou a cantar um velho cântico.

O menino usava calças curtas e mantinha a esperança de chegar a ver quem desde sempre ouviu falar. Era alguém que esperava a Felicidade. Felicidade... "Será que ela é velha? Deve ser! Minha avó já falava nela! Deus, que ela não morra até me ver, ou melhor, até que eu veja ela!...", era o pensamento do menino cujo nome era Tomé. Sim, Tomé, nome de santo.

Fonte:
O Autor

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Folclore Japonês (A Princesa e a Peônia)

Este é um dos antigos e mais poéticos contos do folclore japonês. Ele nos conta a triste história de um amor impossível entre uma bela princesa e um espírito encantador materializado em forma de flor: O espírito da peônia que manifesta-se sob a aparição de um belo jovem.

Há muitos e muitos anos, em Gamo-Gun, na província de Omi, havia um castelo chamado Azuchi. Era um lugar antigo e magnífico, cercado por uma alta parede de pedras e um fosso cheio de lótus. O senhor feudal era um homem muito rico, porém mal humorado chamado Yuki Naizen no Jô. Sua esposa tinha estado doente por muitos anos e teve uma única filha, que todos chamavam carinhosamente de Aya Hime (princesa Aya).

Na época, o Japão vivia um longo período de paz e tranquilidade, e os senhores feudais haviam abandonado a ideia de guerrear constantemente para conquistar novos territórios. Como os feudatários mantinham relacionamento amigável, Naizen no Jô percebeu então que, a época era oportuna para encontrar um bom pretendente para sua princesa.  Depois de vários contatos, ele optou pelo segundo filho do senhor do castelo de Ako, da província de Harima. Este, para Naizen no Jô, seria apropriado para ser o marido de sua única e amada filha. Os dois feudatários ficaram muito satisfeitos com a possibilidade de que seus filhos viessem a se casar, pois a aliança matrimonial fortaleceria o poder bélico de ambos.

Por esse tempo, no Japão, as famílias ricas marcavam os casamentos de seus filhos sem que estes tivessem prévio conhecimento um do outro. Já que era obrigada a aceitar a determinação de seu pai, a princesa Aya fez grande esforço mental para aceitar seu futuro marido, falando e pensando nele positivamente, mesmo sem nunca tê-lo visto.

Certa ocasião, junto com sua dama de companhia, Aya Hime caminhava pelo enorme jardim do castelo e foi até o canteiro das peônias. Era o seu local preferido, onde adorava apreciar o reflexo da lua, projetada nas águas do lago, e fazia isso, principalmente, em noites de lua cheia que lhe trazia belas inspirações para compor poesias.

Naquela noite, quando Aya Hime estava passeando distraidamente na beira do lago, tropeçou em uma raiz exposta e desequilibrou-se em direção à água. De repente, foi amparada por um jovem que surgiu como num passe de mágica, evitando milagrosamente que ela afundasse lago adentro. Em seguida, assim que a colocou no chão, o rapaz desapareceu tão rapidamente como apareceu. A dama de companhia viu, quando ela tropeçou, um clarão de luz em torno da princesa refletido na água, mas não chegou a ver claramente nenhum rapaz protegendo-a da queda. Já Aya Hime tinha visto perfeitamente o rosto de seu salvador.
A Princesa encontra o Jovem Espírito da flor…

Era o  homem mais bonito que ela poderia imaginar. –Vinte anos de idade, disse ela a Sadayo San, sua dama de companhia favorita, –Ele deve ser um samurai da mais alta ordem. Seu traje estava coberto com minhas peônias preferidas, e sua espada era ricamente ornamentada. Oh!!! eu poderia tê-lo visto mais um minuto, para agradecer-lhe por me salvar da água! Quem pode ser?

– Mas princesa, como ele teria chegado ao jardim, se todo o castelo está cercado pelo fosso e existem muitos guardas no portão? Acho melhor não comentar nada a ninguém, pois seu pai pode ficar zangado, se souber que um estranho esteve no jardim.

A partir daquela noite, Aya não conseguiu esquecer o misterioso rapaz. Por várias vezes esteve no jardim, mas nunca mais o viu.

Tempos depois, ela ficou muito doente e com dificuldades para comer e dormir. Cada dia foi ficando mais pálida e tornou-se impossível realizar seu casamento com o príncipe de Ako na data marcada.
Vários médicos vieram de Quioto para examinar Aya Hime, porém ninguém conseguiu diagnosticar de que doença se tratava. Como último recurso, o senhor feudal Naizen no Jô, interrogou com veemência Sadayo, a dama de companhia de sua filha, pois sabia que ela era a confidente da princesa.

– Os médicos chegaram a pensar que ela estava fingindo estar doente, só para não se casar com o prometido príncipe de Ako. Se você sabe de algum amor secreto dela, me diga, pois, se continuar assim, ela vai acabar morrendo. Você não quer que ela morra, quer? – perguntou o feudatário.

– Senhor, eu prometi à sua filha que jamais revelaria seu segredo. Porém, diante do risco de vida que ela está correndo por causa de sua enfermidade, sou forçada a revelá-lo, se é que isso contribuirá para sua salvação.

Assim, Sadayo contou detalhadamente o que aconteceu na noite de lua cheia no canteiro das peônias…

– Meu senhor, acredito que a doença da princesa Aya é uma doença de amor. Ela está profundamente apaixonada pelo jovem que viu por alguns instantes e depois desapareceu misteriosamente. Tenho medo de que, se não conseguirmos encontrar o tal jovem, ela definhe dia a dia até morrer – disse Sadayo, a dama de companhia da princesa.

– Mas o nosso castelo é muito vigiado, é humanamente impossível que alguém consiga entrar e sair sem ser visto pelos guardas dos portões…  murmurou o pai de Aya, Naizen no Jô.

– Está sugerindo alguma coisa senhor?! Bem sabes que raposas e texugos têm o poder de se transformar em seres humanos e nos enganar. Será possível que algum desses bichos tenha entrado no castelo por alguma pequena abertura no muro?!

Nessa noite, para tentar reanimar a princesa, foi trazido da capital o famoso músico Yashakita Kengyo, mestre num instrumento de cinco cordas chamado “biwa”. A noite estava quente, e o concerto musical foi ao ar livre. Os acordes espalharam-se pelo ar, tomando conta do belo jardim do castelo.

De repente, no canteiro das peônias, um jovem de ar nobre apareceu para ouvir a música. Desta vez todos o viram, e ele trajava a mesma roupa com bordados de peônias em fios de ouro. – É ele! – gritaram todos os que assistiam o concerto. Diante da reação das pessoas, o jovem desapareceu instantaneamente.

 A princesa ficou visivelmente excitada. Levantou-se e foi procurar pelo moço no jardim, mas nada encontrou. O pai dela, senhor do castelo, ficou muito confuso com a situação. No dia seguinte, mandou fazer uma busca minuciosa no jardim, revirando pedras, removendo canteiros de arbustos e procurando em cima das árvores, porém, não encontrou ninguém escondido, nem mesmo raposa ou texugo.

Nessa mesma noite, quando dois músicos do castelo, Yaesan e Yakumo tocavam seus instrumentos, respectivamente a shakuhachi (flauta) e o koto (instrumento de cordas), o jovem novamente apareceu e desapareceu ao ser notado. O mistério aumentou, pois a vigilância tinha sido triplicada, e tudo no castelo foi vasculhado palmo a palmo.

Yuki Naizen no Jô resolveu chamar, então, o renomado Maki Hyogo, um veterano oficial do exército que atuava como conselheiro na corte do Shogun, para capturar o jovem misterioso. O astuto Maki, que adorava desafios, aceitou prontamente a missão. Vestiu-se de preto, como um ninja, para fazer-se invisível e escondeu-se no canteiro das peônias.

Todos tinham percebido que a música exercia certo fascínio sobre o jovem misterioso. Consequentemente, os músicos Yaesan e Yakumo fizeram um concerto naquela noite. O público presente prestou mais atenção no canteiro das peônias do que na música. A certa altura, um belo jovem surgiu no jardim, com magnífica veste ornada de peônias bordadas.

Maki Hyogo levou um susto, pois o jovem surgiu do nada exatamente a um passo de onde ele estava escondido. Em seguida, agarrou o jovem por trás, na altura da cintura. Manteve-o apertado por alguns segundos, quando sentiu uma baforada de vapor na cara e caiu no chão agarrado firmemente ao jovem.

Os guardas e o pessoal do castelo que assistiram à cena correram para o canteiro e, ao chegarem deparam-se com Maki Hyogo no chão:

– Vejam, consegui agarrá-lo – disse Maki, mas, vendo o que estava abraçando, descobriu que se tratava apenas de uma enorme peônia. Como Hiogo também era astrólogo, logo descobriu do que se tratava.

– Raposas e texugos não conseguiriam passar pelos portões e os guardas do castelo, porém, o jovem sim, pois ele é o espírito da peônia e nasceu aqui mesmo.

Os videntes que estavam no local concordaram plenamente com Maki Hiogo. O espírito da peônia manifestava-se sob aparição de um belo jovem, porém não era na verdade um ser material. Esclarecido o caso, a princesa Aya levou a grande flor de peônia para seu quarto e colocou-a num vaso com água.

Dia a dia, ela foi melhorando de saúde, até recuperar-se completamente. Inexplicavelmente, a grande peônia do vaso também ficava cada vez mais radiante, não dando nenhuma mostra de murchar, apesar de o tempo ir passando.

Como a princesa estava agora com ótima aparência, seu pai não via nenhum motivo para continuar adiando o casamento. Então, dias depois, o senhor de Ako e sua família chegaram com uma luxuosa comitiva, para realizar o casamento de seu segundo filho.

A princesa Aya, com pesar, despediu-se da grande peônia e foi para a cerimônia de casamento. Após o ofício, seguiu com seu marido para o castelo de Ako.

As camareiras que acompanharam a princesa viram a incomparável beleza da flor quando foram para a cerimônia. E, após o evento, quando passaram pelo quarto da princesa novamente, viram a peônia murchar e despetalar-se.

A alma da flor, não suportando a dor de ver sua amada princesa casando-se com outro, despetalou-se de tristeza.
 
Fontes: Livro de Richard Gordon Smith, contos antigos e Folclore do Japão in Caçadores de Lendas

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Paulo Leminski (XLV)


Ângela Ramalho (Poemas Escolhidos)

PARTES DE MIM

Uma parte de mim é festa,
outra parte é melancolia,
uma parte de mim silencia,
enquanto outra se manifesta.

Uma parte de mim é emoção,
outra parte um ser racional,
uma parte é sentimental
enquanto outra prefere a razão.

Uma parte de mim é menina
outra parte altiva senhora,
uma parte de mim vai embora
enquanto outra se descortina.

Uma parte me pede segredo,
outra parte se escancara,
uma parte de mim dá na cara
enquanto outra se encolhe de medo.

Uma parte de mim faz furor,
outra parte vive camuflada,
uma parte de mim é abafada,
enquanto outra vive o esplendor.

SONETO DE DEVOÇÃO

Essa que veio na rede, imagem dividida
e foi achada por simples pescadores,
tornou-se nossa Mãe Aparecida,
A que veio curar as nossas dores.

Intercessora, salvou-me a vida
Curou o mal sem deixar cicatriz,
A ela sou eternamente agradecida,
Hoje é a padroeira desse meu país.

Inconfundível mãe, de cor morena,
Que a minha mãe em sonho visitou,
num momento de desespero e aflição.

Vendo sofrer uma criança tão pequena
No corpo em chamas um milagre operou,
Graças vos dou, eterna é minha devoção!

DIAMANTE BRUTO

Você gosta de músicas antigas,
de comidas simples,
de ficar em casa.
Você não liga para a aparência.
Você, tão sem cerimônias,
com seu jeitão de matuto...
Você, meu diamante bruto!
Você, simples e verdadeiro,
de mãos calejadas e de jeito rude,
que eu quero conhecer, mais amiúde...
Você às vezes lembra meu pai, severo, astuto...
Você, meu diamante bruto!

Você, homem de caráter e brio,
que me aquece quando tenho frio,
e me faz transpirar, sem ter calor.
Você, companhia da qual eu desfruto,
pedra preciosa, diamante bruto,
mas que, se eu lapidar, perde o valor.

AMOR E POESIA

Há tempos não fazemos um soneto,
Isso requer um tema embriagador,
Eu e você fazemos um bom dueto
Nas parcerias das rimas e do amor.

Rimamos tanto e em tanta sintonia
Que juntos, parecemos tão iguais,
E os belos versos desta poesia,
Até parecem alguns dos imortais.

Entre versos, desejos e malícias,
O amor flui em perfeita harmonia,
E a um canto... a caneta e o papel,

Esperam que troquemos mil carícias,
Ser tua em prosa e verso, à luz do dia,
É mais que poesia, é ir ao céu!

PALAVRAS...

Palavras...
Palavrinhas...
Palavrões...
Falam tudo,
falam nada,
tecem canções.
Causam raiva,
causam ira,
arranhões...
Nos cutucam,
nos inflamam,
são paixões.
Deixam sequelas
coisas belas,
sensações.
Causam alegria
euforia,
aos corações.
Nos ensinam
nos fascinam
aos milhões.
Mas sem elas,
ai meu Deus
como seria?
Deixaria
de existir
a poesia?

DE POETAS E LOUCOS…

Da minha loucura,
tiro lucidez,
chego até vocês.
Da minha lucidez
invento loucuras,
como ninguém fez.
Sou louco, sou pouco,
sou muito, sou tantos
e em tantos, sozinho,
procuro um ninho,
igual passarinho.
Na rua, assobio,
sorriso escrachado,
sem ninguém do lado,
mas dou meu recado:
Se tenho alegria
Sou louco de fato,
Pois faço meu dia
Virar poesia.
Sou muitos,
sou tantos,
Em tantos,
sou pouco
a muitos encanto,
a outros espanto.
Sou poeta, sou louco,
Entretanto,
sou quantos?

SÓ POESIA...

Acabei de fazer um soneto,
quase ao meio dia,
de barriga vazia,
só me alimentando
de poesia!

Alimentar o corpo
a gente espera.
Esqueço a fome,
deixo-a quieta:
-Agora sou poeta!

IDENTIDADE

Em que momento,
em que fase,
em que período,
eu me distanciei de mim?

Por quem fui levada?
(ou melhor dizendo)
Porque me deixei levar?

Quantas escolhas vãs,
quantos amores desfeitos,
quanto sacrifício inútil.

Só agora me dou conta
que a maturidade
trouxe de volta
minha identidade.

A VIDA ENSINA

Não sei porque cismei com você.
Não sei porque achei
que poderia te levar a sério.
Quanta insensatez!
Quantas promessas vãs,
quanto romantismo barato,
quanta ironia!
E eu aqui sonhando
e fazendo poesia.
Onde foi parar minha razão?
Porque deixei falar
mais alto o coração?
Será que amor faz mal,
deixa doente?
Ou eu é que fui
muito inconsequente?
Fazer o que,
sofrer é minha sina.
Contra mal de amor
não existe vacina,
nenhum remédio
cura essa ferida.
Bem ou mal,
levo comigo pela vida
lições de amores não correspondidos.
De professora, passei a aluna
cuja matéria sequer compreende,
embora o que a gente não aprende,
a duras penas a vida ensina.

CORINGA

Pego o baralho: corto!
Embaralho e me pego,
pensando na vida
(tão embaralhada).
Compro uma carta que não me
serve.
A prudência me pede para retê-la,
mas tomada pelo imediatismo,
descarto.
É apenas um jogo, penso.
Mas, e na vida
quantas vezes descartei sem pensar?
É minha vez de comprar.
Mais uma que não me serve.
Não tem coringa nesse monte?
Descarto cartas sem serventia,
e sem muito refletir,
vou comprando, comprando…
Alguém bate
e eu fico com as mãos
repletas de cartas,
e a minha falta de lucidez.
Quantas partidas a vida ainda me dará,
até que eu aprenda a pensar,
sem me acomodar,
à espera que venha o coringa?