sábado, 3 de dezembro de 2022

Ademar Macedo (Vírus da Trova) – 1

 

Leon Eliachar (A corrente)

Lindolfo apanhou o envelope debaixo da porta. Olhou de um lado e de outro, não reconheceu a letra nem encontrou o nome do remetente. Abriu e viu um pedaço de papel batido à máquina, devia ser uma segunda via, pois estava batido com carbono. Pensou que fosse o lançamento de algum produto de algum industrial pão-duro que, pra não gastar dinheiro em propaganda de jornal, usa a tática de anunciar debaixo da porta, “diretamente ao consumidor”. Dizia: “Envie treze cópias desta mensagem a treze pessoas de suas relações, em dias pares, e treze em dias ímpares, a qualquer pessoa que você não conheça”.

— Só faltava essa — falou consigo mesmo. Sorriu com raiva de ter perdido tempo, ia rasgar, quando leu: “Não rasgue esta 'corrente'. Outras pessoas já o fizeram e se deram mal”. Logo abaixo, uma lista de pessoas conhecidas que morreram, a maioria das quais figuras históricas, que Lindolfo nunca poderia averiguar se de fato haviam ou não “quebrado” a corrente. Desta vez deu um sorriso irônico, chamou a mulher:

— Olha aí, Lurdes, você que é supersticiosa, copia esse troço vinte e seis vezes.

— O quê?

Lurdes leu com todo o cuidado:

— Você não vai copiar?

— Tá brincando.

— Isso dá uma ziquizira que vou te contar. Uma amiga minha rasgou e perdeu uma perna debaixo do trem.

— Coincidência.

— Sei lá. Essas coisas a gente nunca pode saber.

Lindolfo ficou meio cismado. Foi pro escritório, pediu à secretária:

— Tira vinte e seis cópias e deixa em cima da minha mesa.

A secretária botou o papel na máquina, levantou-se:

— Seu Lindolfo, isto é uma corrente.

— Eu sei, e daí?

Ela fez ar de entendida.

— É que o senhor tem de copiar de próprio punho.

Lindolfo trancou-se no gabinete, avisou pelo telespeak:

— Não estou pra ninguém, ouviu?

Tirou o paletó, ligou o ar-condicionado, começou a tirar cópia. Lá pras cinco da tarde, estava tudo prontinho. Só faltava sobrescritar os envelopes. Pegou o caderninho de telefones, nenhum tinha endereço, teve vontade de telefonar pra saber; na certa haveriam de perguntar “pra que é” e ele ficaria encabulado de explicar que era pra enviar uma “correntinha” sem compromisso. Procurou no catálogo, um por um, os nomes do caderninho, achou graça: a maioria dos seus amigos tinha telefone e não tinha endereço. Pediu auxílio pra telefonista, ela mandou que ele procurasse no catálogo. Foi duro arranjar onze, faltavam dois. Decidiu mandar um pra secretária mesmo, que era ali pertinho, só não sabia o sobrenome dela e ficou com vergonha de perguntar. Ligou pro Departamento de Pessoal, antes de desligar ouviu um risinho de quem vai fazer a maior fofoca, na certa pensando que ele estivesse interessado na secretária. Ficou faltando um, chamou o contínuo:

— Traga aqui um amigo seu e me apresente.

— Como?

— Isso mesmo que eu disse. Traga aqui um amigo seu e me apresente.

Meia hora depois o contínuo trouxe o ascensorista.

— Não posso demorar, doutor, que o elevador está parado no terceiro.

Conversaram, tomaram cafezinho, contaram anedotas. Agora, sim, o ascensorista era “um homem de suas relações”. Perguntou o seu nome e endereço, ficou de lhe fazer uma visita qualquer dia desses. Completou o último envelope, agora só faltavam treze para treze pessoas desconhecidas. Leu de novo o papelzinho em cima da mesa: “corrente da felicidade”. Pensou:

— Vá ser feliz assim no raio que o parta. Rasgou tudo, jogou pela janela. Alguém cuspiu lá de cima, bem na sua testa. Sentiu um arrependimento íntimo de ter rasgado, bateu a janela com toda força, bem em cima do dedo mindinho.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Lucília Alzira Trindade Decarli (Inquietude) 2


A FORÇA DO AMOR SOFRIDO


Difícil de compreender
a força do amor sofrido,
mas bem fácil de entender
depois de tê-la sentido…


A inquebrantável força de um amor
resiste ao tempo, à dor e à despedida;
ignora a culpa, esquece do amargor,
veemente, segue incólume na vida.

Atenta ao coração do sofredor,
leva a esperança e a calma comedida;
despreza a solidão e, sem pudor,
oferta-lhe a presença destemida.

Contudo, quando o amor, senil, cansar-se,
a força ativa, sem jamais quedar-se,
não deixará que prostre, entregue à sorte.

Honradamente irá retroagir,
o amor fará no sonho submergir...
Trará a ilusão, que pode adiar a morte!
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AMOR INFINDO

Nas asas da eternidade
descanso este amor infindo;
se hoje é pleno de saudade,
um dia o verei sorrindo!

Nas suas mãos coloco o meu sentir
— um sonho louco dentro deste ocaso —
e ao desnudá-lo a mim vou permitir
pedir desculpas pelo extenso atraso.

Mas de remorsos quero me eximir,
— sei que este amor não foi um mero caso —
pois nunca é tarde para consentir
que o sonho voe, visto não ter prazo...

Ressurge, assim, das cinzas... De repente,
quebra o silêncio, expõe-se o amor ardente,
depois de longa estrada percorrida.

Disponha dele como bem quiser,
saiba, porém, não é coisa qualquer,
mas, sim, amor que segue além da vida!...
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CANTO NOVO

Ao rejeitar canto triste,
percebi que entre a alegria
do acorde feliz existe
a mescla da nostalgia...


Para os meus versos quis um novo canto,
onde a alegria, audaz, predominasse,
sem permitir, presente, nenhum pranto:
— só melodia, e a mais feliz se entoasse!

Sondei o amor... Embora, ali, buscasse
todo o calor de um reforçado manto,
— que do sofrer dolente os resguardasse —
vi a nostalgia entrando no acalanto.

E rejeitando, então, melancolia,
vesti nos versos rica fantasia,
mas concluí que os deturpei, demais:

—  que o amor nem sempre traz felicidade,
combina mesmo, e muito, com saudade,
por isso, dela o poeta fala mais...
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PÉS ANDARILHOS

O trem sua meta alcança,
girando as rodas nos trilhos…
Meu caminhar que, hoje, avança,
conta com pés andarilhos!


Não sei dizer, quanto em quilometragem,
nem quantas as estradas percorridas...
Posso afirmar: depois de longa viagem
meus pés estão dispostos a outras idas.

Sendo andarilhos, levam na bagagem
minhas vitórias — poucas — conseguidas;
também derrotas, e essa desvantagem
é que impulsiona para mais corridas!

"Tanta importância dada aos pés, no entanto,
parece injusta e traz calado espanto
a um corpo, quase todo" — alguém diria.

Lembro que, ao corpo, dão sustentação
e exalto, aqui, o poder: locomoção...
Porque sem pés, andar não poderia!...
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PORTAS…

No mundo, as portas abertas
nem sempre irão ajudar…
As fechadas são mais certas
para a luta impulsionar!


Contemplo a porta... Há séculos subsiste.
São tantas portas num planeta imenso...
Algumas portam lenho que resiste,
outras desgastam-se ante o tempo extenso.

A porta aberta é franca e sempre assiste,
seu livre acesso faz seu uso intenso,
porém fechada, eu creio que consiste
na restrição que torna o mundo tenso.

Portas talhadas para entrar, sair,
dar liberdade ao homem de ir e vir,
por certo são aquelas mais prezadas.

Portais sagrados, por detrás espantos...
Ali se prega: "a porta aberta aos santos
será fechada às almas condenadas!…"*
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* “Eu sou a Porta, se alguém entrar por mim será salvo, – …e quem não crer, será condenado" (Jesus, João 10,9 e Marcos, 16, 16 b)
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Fonte:
Lucília Alzira Trindade Decarli. Inquietude. Bandeirantes/PR: Sthampa, 2008.
Livro entregue pela poetisa.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Graça

Do alto da colina avista-se quase toda a cidade. A GRAÇA, com o seu miradouro e os seus elétricos, é um pouso de turistas; esconde casais de namorados e dá refúgio às tradições alfacinhas.

O local onde se situa o bairro da Graça é uma das primitivas colinas da Lisboa cristã. Como era uma importante zona estratégica, D. Afonso Henriques escolheu-a para montar o seu quartel general, em 1147. Conhecido pelo nome árabe de “Almofala”, era um subúrbio da poderosa “Aschbouna”, a Lisboa Mourisca. Nesta zona, onde se encontrava o Almocáver, cemitério mouro, fundaram-se dois conventos de grandes proporções, o dos Cônegos Regrantes, em São Vicente e, um pouco mais acima, o dos Agostinhos. Ambos ficaram sob a invocação de Nossa Senhora da Graça.

A influência dos Frades Agostinhos da Graça foi determinante na edificação urbana desta colina de Lisboa que, embora só tenha adquirido classificação administrativa numa época relativamente recente, a verdade é que se trata de um bairro e de um sítio bem demarcado, há, pelo menos, três séculos. Da Graça que cresceu no século XV até ao terremoto de 1755, apenas sobreviveu o Convento dos Agostinhos, situado no Largo da Graça.

Entre 1891 e 1911, do bairro de Santo António formaram-se outros dois, o da Estela D’Ouro e o Ermida. Assim, as ruínas dos velhos palácios deram lugar às vilas habitadas por uma população operária, numa zona cujas raízes mergulham na própria fundação da nacionalidade.

Dos primórdios da monarquia lusitana, o Bairro da Graça, guarda apenas os vestígios assinalados na capela da Nossa Senhora do Monte, erguida após a tomada de Lisboa. Este bairro voltou a fazer história na Implantação da República, uma época em que acolhe diversos nomes ilustres que se distinguiram na luta pela democracia.

O Clube Desportivo da Graça nasceu a 12 de março de 1935. Esteve desde sempre, ligado à cultura, beneficência e ao desporto. Na área do desporto, funciona com escolas de atletismo, futebol de cinco e tênis de mesa. Na área da cultura, a coletividade dedica-se quase exclusivamente à organização das Marchas Populares.


MARCHA DA GRAÇA
(Venham dançar com a Graça)

Letra de Ester Correia
Música de J. M. David


A Graça tem
O Senhor dos Passos a passar,
Erguendo os braços para a Graça abençoar
E, o Santo António apaixonado
Que num suspiro contente lhe canta um fado.

A Graça tem
nos arraiais muita alegria
Os seus balões são de eterna fantasia,
E um cavalinho sempre a tocar
Ela é festa de Lisboa, a cantar.
Há um cheirinho a manjericos;
Cravos sorrindo aos namoricos;
O povo acorda, o povo só dança,
No arraial ninguém se cansa.

As sardinheiras estão às janelas
A ver a Graça saltar fogueiras
E os santos populares, pelas vielas,
Atrás das moças bonitas, namoradeiras.

A Graça tem
O Senhor dos Passos a passar,
Erguendo os braços para a Graça abençoar
E, o Santo António apaixonado
Que num suspiro contente lhe canta um fado.

Está aqui a nossa Graça
Que é de Lisboa a sua graça,
Só ela abraça, só ela nos beija
com a ternura de quem deseja.
Só ela tem aquele olhar,
Num coração sempre a dançar,
A Graça salta de alcachofra na mão,
E acorda o sol ao sabor de uma canção”.


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 32

 

Aluízio Ferreira de Abreu (À sombra do Bandarro)


“Aquilo” só podia ser febre de leite. A menina nascera como abóbora benza-a Deus! — na fortidão da lua, e tudo correra normalmente, às mil maravilhas, com grande valentia da Candoca, que nem parecia de primeira embarcada.

Nhá Porciana conhecia, de fato, “daquelas coisas”. Dera o seu lidar por terminado, com o pinchamento d’água suja da gamela de raiz de figueira, e estava pronto.

Ela mesma recebera a Candoca, há várias floradas das guaricicas*, quando as árvores pareciam ajuntar na arca verde das copas todo o ouro do sol, e a Fortaleza da Barra, “sarvava com tiros de pórva sêca”, no alumiamento de mais um aniversário da República de Deodoro.

Também, de quase toda aquela gente, beirando os “trinta”, crescida e permanecente ali, desde o costão do Bandarro, raro o que não chegara pelas suas mãos encaroçadas pelo artritismo, mas experimentadas. Não havia, pois, motivos para aquela aflição, para o rumor baldado que o Gumercindo Vicente viera fazer atendo-lhe à porta hora alta, — até assustar a galo, velho e esporado, no poleiro de mangue bravo, que deitou a cantar, agourentando, “como se estivessem roubando moça no Superagui...”

Uma febrinha que mal chegava a amornar vexou-o com a obsessão da dianha* da puerperal. Era verdade que Aninha da Galheta se finara, não fazia tempo, levada numa recaída; mas a entendida fora outra, que não ela, “costumada no desempenho”. E mostrou o acerto, com o empachamento dos peitos da Candoca, abrasados e vermelhantes, com o queimor da “esipra*”.

— Uma coisinha à toa, facir de aresorvê...

Nhá Porciana pediu um punhado de sal, torrado no calor da “mãe do fogo”, e um pente feito de chifre. O sal quente, ela o derramou sobre o embolamento dos seios, “penteando-os”, em seguida, de alto a baixo, das raízes até a extremidade dos bicos. Simpatia infalível, ensinada pela mãe Rita, herdeira universal da velha Xandoca, que a animara nos afazeres dos partos. Tudo acompanhado de palavras rezadas baixinho, quase sem movimentação de lábios, para não serem apreendidas.

Coincidência ou não, “por isso ou por aquilo”, momentos depois o leite descia sem estorvo à sucção faminta da recém-nascida, a temperatura voltava a 36º e o enrijamento desaparecia, com o reconhecimento de Gumercindo Vicente e da Candoca, enfim, recuperados na sua confiança no futuro.

Nhá Porciana debochou, bondosa:

— Óia, Gumercindo, se Mané da Ribeira fosse ansim, e se aborrisse por um tiquinho nada, ele já tava que só pêxo cambira! Esse unzinho de onte, foi o doze com que Deus o favoreceu...

O “unzinho” que nascera na véspera passou a chamar-se Antonio, conhecido pela abreviatura de Toninho, acrescida do apelido paterno, no diminutivo. Gumercindo Vicente, por sua vez, deu à filha o nome esquisito de “Eduvirges”, em memória, não sabida da Candoca, de um rabicho polaco, em Ponta Grossa, quando galgara o planalto, reclamado pelo serviço militar.

É que nas praias, por entre tanta simpleza das coisas e dos corações, a flor da malícia também encontra ambiente, vicejando por vezes...

O Morro do Bandarro azumbrado* nas imediações da Barra do Superagui serve de referência à navegação, na direitura da Boia do Cigano. Nas suas fraldas borbulha uma vertentezinha sem nome, chorona, que vai escorrendo para a praia, como um fiapo úmido de luar, rastejando no crepúsculo do mato.

Bem aí, nesse longe, estava fincada a casa de Gumercindo Vicente, parelhando com a de Maneco da Ribeira, as duas mirando abstratamente a largueza do oceano. Toninho e Duvíge foram medrando nesse apartado da terra, desconhecendo o que fosse o mundo além daquelas lonjuras do mar, analfabetos por ausência de mestre, verminados e amarelentos à míngua de medicina, entretanto alegres do seu viver naquele largueirão de ermo.

Entretinham-se vendo passar os vapores, sem diferenciá-los e por vezes os seus olhos embeveciam-se no luzimento dos aviões varando pelo céu, roncando como um besourão de prata. Nem sequer perquiriam do rumo daqueles barcos caturrando entre as ondas, ou das máquinas brunidas que furavam o azulão, mergulhando nas nuvens. Que lhes poderia interessar o destino dos outros, a eles que viviam separados de toda a gente, na agrestia daquela ilha surrada pelos vendavais?

Duvíge cresceu com a afoiteza da bananeira brotada na lombada do Bandarro, para a primeira cacheada. Toninho, ao contrário, não passava de um caboclinho minguado — peri de beirada d’água — atrasado pelo amarelão.

Disparidade impiedosa, cúmplice natural da aproximação dela com o Mingote da Ribeira, irmão mais taludo de Toninho, já tirando para homem, com escassos pelos assombreando o beiço, sobre a dentuça carcomida. No íntimo de Toninho, porém, essa desigualdade manifestava-se de modo adversante.

A sua benquerença por Duvíge avolumava-se com impetuosidade de onda e o ciúme escacava* o seu peito, mordente como a espinhada de pira-mamangava, que um dia lhe picara os dedos, na cambulhada* dos camarões da tarrafa, doendo como esporada de arraia-chita.

A boca amargava-lhe com o travor da artemisa-da-praia, quando ela passava ao lado de Mingote, ele empertigado no seu domingueiro de listão, subindo pelo caminho ramposo do Bandarro até o seu alto, extasiados no seu querer, as imagens refletindo-se na poça da pedra, bem na assomada, como um quadro em moldura de pedra, falando de coisas que lhe azinhavravam* a alma, turvando-a como água revolvida de lama.

Seus olhos fuzilavam como brasas, e a razão encadeava-se-lhe. Azoado sentia o badalejar dos dentes, como em acesso de maleita, e punha-se a correr eito a fora, os maus pensamentos afeleando-lhe* o coração, que nem a bafagem do vento abrandava.

Só noitinha voltava ao ranchão, estropiado do andejamento, para a dormida agitada, de pesadelos, que era o seguimento vivo da sua grande agonia.

Mingote da Ribeira e Duvíge, tripulando a segura canoa dos seus sonhos, navegaram com as velas pandas de esperanças pelos mares serenos do seu bem-querer, indo poitar* os destinos sob o olhar imobilizado da Santa dos Prazeres, na igrejola da Ilha do Mel.

Foi o desflorir outonal das ilusões de Toninho.

Ali mesmo, ao pé do altarzinho caboclo, ruminou matar o irmão, afogando-o. Azucrim não cessava de trabalhar-lhe a mente esquizofrênica, atormentando-o de morte.

— Duvíge não podia ser de mais ninguém...

Mais tarde, Maneco da Ribeira pôs em reparos o ensoamento do filho, chamando-o para o assombramento da gameleira troncuda, onde uma andorinha calmamente trissava*, refazendo-se do volutear exaustivo.

Bem-avindo*, admoestou-o num ralho de paciente afeição, que ele recolheu com os olhos parados na areia, boiantes de tristura. Nem tentou abrir a boca precocemente amargurada, para um protesto ou uma desculpa. Deixou-se ficar, vencido, o olhar perdido no vazio das coisas, ensimesmado dentro da sua amargosa decepção.

Na casa, sob o teto rústico de juçara, corria o ajantarado das esponsais. Uma viola, ponteada, ia chorando algures...

Já a luzerna* do Farol das Conchas rastejava no mar escameado de prata, quando alguém topou, pelas bandas do Banco de Inácio Dias, com a canoa de canela preta alagada, indo com a vazante...

O fandango estalava na moradia, no festejo das bodas, sem que alguém notasse a ausência de Toninho, arredio que andava, tresmalhado de todos. E no rancho do porto de Maneco da Ribeira, quase no anco da praia, só os rolos de cacheta branquejavam no grande espaço vazio, tomado de uma pesada sombra...
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* Notas:
Afeleando = amargurando, angustiando.
Azinhavravam = oxidavam.
Azumbrado = dobrado, curvado.
Bem-avindo = conciliado, amigado.
Cambulhada = grande quantidade.
Dianha = diacho.
Escacava = despedaçava.
Esipra = erisipela.
Guaricica = pau-amarelo ou pau-de-vinho, é árvore típica da Floresta Atlântica de planícies e de ínicio de encosta, onde forma agrupamento denso na fase de capoeira alta. Madeira de cor bege-clara é de peso médio e durabilidade moderada. Usada principalmente em caixotaria, tábuas, obras internas, remos e canoas. Produz boa lâmina e lenha de boa qualidade. É de árvore sempre-verde, muito usada para fins ornamentais, por sua vistosa floração.
Luzerna = facho de luz.
Poitar = ancorar.
Trissar = canto da andorinha.


Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Solange Colombara (Tertúlia Trovadoresca) I


Algumas fotografias
fizeram-me soluçar…
Despertaram utopias
das férias à beira-mar.
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Ao partires deste mundo,
encontrei na fé, coragem
e um sentimento profundo,
quando foste pra viagem.
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As águas em calmaria
brotando em tua nascente,
são rios em romaria
em um queixume doente.
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As inúmeras metades
que habitam meu coração,
às vezes gritam saudades,
noutras, choram de emoção.
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Através do olhar do filho,
viu no espelho refletindo
vida, em um único brilho,
o ontem no hoje coexistindo.
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Celebrando um sentimento,
eu vejo um poema escrito
pelo tempo frágil, lento,
horas mortas… infinito…
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Contemplo imensa magia
nesta tranquila paisagem
e agradeço pelo dia,
aproveitando a viagem.
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Das lágrimas de um poeta
renasce uma inspiração,
um poema se completa…
Leva alento ao coração.
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Deixo minha inspiração
despir a criatividade
poetizada em emoção...
Encontro a serenidade.
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Divulga a boa leitura
levando entretenimento,
um viva à literatura!
Livro é luz, conhecimento!
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Em instantes de harmonia,
venho minha paz colher
na melhor hora do dia…
minha hora de agradecer.
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Inaugurando nova era
com flores e poesia,
vem chegando a Primavera
plena em cores e alegria!
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Livros abrem as janelas
da nossa imaginação…
Criam imagens tão belas
nos pulsares da emoção!
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Mãe, o teu riso gostoso,
eterno, presente em mim,
é o legado mais saudoso...
Uma saudade sem fim.
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Meu gatinho Trololó
gosta de fazer folia,
nos novelos da vovó
e nos móveis da titia!
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Na noite, em serenidade,
admirando a Lua Cheia,
converso com a saudade…
Este luar me norteia.
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Ninguém tem sua razão
e tampouco entendimento
se a palavra for em vão…
Se faltar bom sentimento.
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Nos trilhos da solidão,
um apito de saudade
ecoa em cada estação,
súplicas de liberdade.
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O desafio do dia
foi com intensa emoção!
Transformar em poesia,
o meu medo de injeção.
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O Pererê do Ziraldo
ou Sonetos de Camões,
livro sempre traz bom saldo
carregado em emoções.
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O sol hoje apareceu
e veio dizer: -Bom dia!
Um poema alvoreceu
em raios de poesia.
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Por horas, sempre brindando
ao tempo, a cada momento
vivido, vou caminhando,
celebrando um sentimento.
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Procurando sustentáculo,
mediante um desafio,
supero qualquer obstáculo
com humildade e com brio.
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Quando eu olho para trás,
os meus passos de coragem
dão-me forças, para, em paz,
continuar a viagem.
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Seu sorriso acaricia,
abraça o meu coração,
é chamego que vicia…
Dentro dele perco o chão.
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Todos os dias, feliz,
olho o céu, agradecida,
por tudo que me bendiz!
Troféu que ganhei da vida.
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Uma doce ingenuidade
no rosto de uma criança,
demonstra serenidade,
nos traz alento e esperança.
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Uma luz aconchegante
faz na noite moradia
e nesta paz radiante,
avulta-se a estrela-guia!

Fontes:
– Trovas enviadas pela trovadora.
– https://jardimdetrovas.wordpress.com/

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro do Castelo


As velhas muralhas foram palco de lutas entre mouros e cruzados. Mais tarde, do interior da cidadela, avistaram-se as naus que partiram à descoberta de novos povos e mundos. Agora, o desafio é recuperar este patrimônio histórico e dar melhor condições de vida aos habitantes do bairro.

A história de Lisboa começa no alto da colina do Castelo. O local onde se encontra hoje o bairro foi um dos primeiros a ser urbanizado. Situado num ponto militar estratégico, foi, desde sempre, cobiçado por inúmeros povos. Em 1147, depois da reconquista cristã, D. Afonso Henriques transformou Santa Cruz do Castelo na primeira freguesia da Lisboa portuguesa. Ao construir, nas torres sul, a casa forte do tesouro e o arquivo da coroa, D. Dinis centralizou o poder neste espaço. Mais tarde, D. Afonso III instalou aí a sede da corte, transformando Lisboa na capital do Reino.

No século XIV, após o fim da guerra com Castela, D. João l resolveu incentivar o culto a São Jorge. O mártir guerreiro consagrou-se então defensor do castelo. Com o início da expansão marítima, viveram-se ali anos de grande fulgor. O Castelo foi, nessa altura, palco de inúmeras manifestações culturais e religiosas.

Destaque para 1502, ano que em o Castelo assistiu ao nascimento do teatro português. Por essa altura, foi também construída a Ermida do Espírito Santo, local de culto dos navegadores do Oriente. Com a transferência da corte para o Palácio da Ribeira, o castelo de São Jorge entrou num longo período de declínio. O terremoto de 1755 agravou ainda mais a situação, ao provocar diversos estragos no berço da cidade. Depois de algumas reconstruções, o intendente Pina Manique levou para lá a primeira sede da Real Casa Pia de Lisboa. Nessa altura, o Castelo também funcionava como prisão.

Em 1940, as atenções voltaram a estar viradas para o local. Nesta altura, pelas comemorações do centenário da formação de Portugal, teve lugar uma profunda reconstrução. O objetivo era devolver ao Castelo de São Jorge o seu aspecto inicial.

Atualmente, o município de Lisboa está a tentar renovar o bairro através do Projeto Integrado de Valorização do Castelo de São Jorge. A organização das Marchas Populares tem estado a cargo do Grupo Desportivo do Castelo que, desta forma, procura defender os usos e costumes de uma freguesia com uma forte tradição bairrista. A cultura e o desporto sempre estiveram na lista de prioridades da coletividade. As vitórias alcançadas com o futebol levaram, mais tarde, ao aparecimento do tênis de mesa e do basquetebol. Presentemente só pratica o futebol de cinco.

MARCHA DO CASTELO
(Vem p’rá roda que é Santo António)

Letra de Helder Carlos
Música de Armindo Campos


O meu castelo, iluminado
Dá gosto vê-lo
É relíquia do passado
Mas de verdade, doa a quem doa
Tem mocidade
E foi berço de Lisboa.

Santo guerreiro,
foste um valente
És padroeiro
Do Castelo e sua gente
Bom alfacinha,
vem conhecê-lo
Sobe a escadinha
E entra no teu Castelo.
(Refrão)

Vem pra roda, rapariga
Dá-me o braço
E vem saltar à fogueira
Tem cuidado rapazinho
Hoje há festa
Vou dançar a noite inteira.

Mangericos, à janela
Vem pra rua
Que é dia de pandemónio
Sardinheiras encarnadas
Vem pra marcha
Que é noite de Santo António.

Recolhimento minha rua
Sem um lamento
Se recolhe à noite a lua
Espírito Santo,
saudades minhas
Te beijei tanto
Lá no Largo das Cozinhas.

Rua das Flores,
rosas aos molhos
São como as cores
E a beleza dos teus olhos
Beco do forno abrasador
E em Santa Cruz
Casarei com meu amor.
(Refrão)

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Isabel Furini (Poema 36): De poetas e de loucos…

 

Sammis Reachers (Jamelões!)

Nem só de frutas surrupiadas viviam os sobreviventes da Beira Rio. Havia, no espaço entorno, alguns frutos “ao ar livre”, em terrenos baldios ou na mata. Mas era coisa misérrima, de abalar uma infância.

Recordo dois pés de ingá, dos quais o mais próximo dava frutos do mais insosso dos sabores: low carb, sugar free, zero açúcar. Hoje, faria sucesso, mas naqueles idos... O outro, situado numa pequena ravina e ao lado de uma nascente, esse sim dava doces bagas; mas eram sempre poucas, para muitos esfaimados que circulavam por ali.

Outro signo da miséria com que a natura nos solapava era o araçá. Eita arbustiva sofrida! Enquanto sua prima, a goiabeira, é famosa por dar frutos às toneladas, os mirrados pés de araçá espalhados pelos morros do entorno davam de quando em vez (uma vez ao ano?) alguns frutinhos. Dois, três num pé. Sim, ao menos eram deliciosos.

Apenas uma frutinha tínhamos em abundância e livre de latifundiários, despida de cercas, não vigiada por cachorros ou espingardas de sal grosso: Os jamelões. Ao contrário dos nativos ingá e araçá, o jamelão é originário do sul/sudeste asiático, mais especificamente da Índia, a mesma pátria ou mundo (pois a Índia é um mundo à parte) que nos deu a manga. O jamelão, se você não conhece, é fruta que dá em pencas, e também em pencas ela possui nomes. Abra o peito e apare, segure a rajada nomenclatural: Jambolão, jamborão, baguaçu, jalão, joãobolão, topin, manjelão, azeitona-preta, ameixa roxa, bagade-freira, oliveira, azeitona-roxa, brinco-de-viúva e ainda guapê. E sabe-se lá quais nomes mais.

Aqui tínhamos uma ampla e plana área – por sinal vizinha ao já citado sítio do seu Pedro, a que chamávamos de “Sek” – sabe-se lá por quê. Bem, a Sek abrigava o campo do Nazaré, famoso campo de peladas regional. Mas, de futebol só fui gostar após os quatorze anos. Naquela altura, eram os quase trinta (valei-me Deus!) pés de jamelão que me solicitavam todas as mesuras. As maiores daquelas árvores chegavam a mais de dez metros, e impunham-se na paisagem, como gigantes – de quem nos aproximávamos com um misto de amor e temor, como se fossem totens.

Ah, quantas tardes dediquei a empoleirar-me com Renato, Wilson e outros amigos por aqueles galhos, e passar horas e horas colhendo o arroxeado pomo, e papeando – jogando conversa fora com a repetitiva e ampla frequência com que cuspíamos os caroços.

A cada ano, aguardávamos com sofreguidão a estação da frutinha, e a comíamos até sofrer de prisão de ventre. Sim, a fartura tinha um efeito colateral severo. “Pelávamos” um pé até exauri-lo, como gafanhotos; enquanto isso, outro chegava “no ponto” de colheita. Não era fruta que se prestasse a comércio e armazenamento: Guardada, rapidamente mudava de sabor, o que era tolerado por muito poucos. Era fruta esculpida pelo Deus dos moleques para ser comida no pé.

Até hoje, quando vejo um pé de jamelão à beira d’uma estrada – e há deles em beiras de estradas por todo o estado do Rio de Janeiro, e todo o Brasil – sinto uma melancolia feliz, e uma tristeza por não poder achegar-me. De mais a mais, já não tenho preparo para escalar rudes troncos, nem peso para arriscar a sorte sobre finos galhos.

Hoje, toda a região da Sek, que fica na rua Dalva Raposo, foi ocupada por um condomínio, de estranho nome: Atenas. A pátria da democracia nomeia uma usurpação latifundiária que nos roubou nosso campo de anarquia, nossa livre-lavoura de prazer e sustância.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Raul de Leoni (Antologia Poética) 3

A ÚLTIMA CANÇÃO DO HOMEM...


Rei da Criação, por mim mesmo aclamado,
Quis, vencendo o Destino, ser o Rei
De todo esse Universo ilimitado
Das ideias que nunca alcançarei...

Inteligência... esse anjo rebelado
Tombou sem ter sabido a eterna lei:
Pensei demais e, agora, apenas sei
Que tudo que eu pensei estava errado...

De tudo, então, ficou somente em mim
O pavor tenebroso de pensar,
Porque as ideias nunca tinham fim...

Que mais resta da fúria malograda?
Um bailado de frases a cantar...
A vaidade das formas... e mais nada…
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EGOCENTRISMO

Tudo que te disserem sobre a Vida,
Sobre o destino humano, que flutua,
Ouve e medita bem, mas continua
Com a mesma alma liberta e distraída!

Interpreta a existência com a medida
Do teu Ser! (a verdade é uma obra tua!)
Porque em cada alma o Mundo se insinua,
Numa nova Ilusão desconhecida.

Vai pelos próprios passos, num assomo
De quem procura por si próprio o fundo
Da eterna sensação que as coisas têm!

Existe, em suma, por ti mesmo, como
Se antes da tua sombra sobre o Mundo
Não houvera existido mais ninguém!…
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ET OMNIA VANITAS...

... E vive assim... Como filosofia
O Prazer, como glórias e esperanças
Uma vida espontânea e correntia
E um gesto irônico ao que não alcanças!

Seja a vida um punhado de horas mansas,
Numa felicidade fugidia:
A piedosa ilusão de cada dia
E o bailado de sombras das lembranças.

Ama as coisas inúteis! Sonha! A Vida...
Viste que a Vida é uma aparência vaga,
E todo o imenso sonho que semeias,

Uma legenda de ouro, distraída,
Que a ironia das águas lê e apaga,
Na memória volúvel das areias!…
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EXORTAÇÃO

Sê na Vida a expressão límpida e exata
Do teu temperamento, homem prudente;
Como a árvore espontânea que retrata
Todas as qualidades da semente!

O que te infelicita é sempre a ingrata
Aspiração de uma alma diferente,
É meditares tua forma inata,
Querendo transformá-la, de repente!

Deixa-te ser!... e vive distraído
Do enigma eterno sobre que repousas,
Sem nunca interpretar o seu sentido!

E terás, de harmonia com tua alma,
Essa felicidade ingênua e calma,
Que é a tendência recôndita das cousas!
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Mantida a grafia original da época neste soneto
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SABEDORIA

Tu que vives e passas, sem saber
O que é a vida nem porque é, que ignoras
Todos os fins e que, pensando, choras
Sobre o mistério do teu próprio Ser,

Não sofras mais à espera das autoras
Da suprema verdade a aparecer:
A verdade das coisas é o prazer
Que elas nos possam dar à flor das horas...

Essa outra que desejas, se ela existe,
Deve ser muito fria e quase triste,
Sem a graça encantada da incerteza...

Vê que a Vida afinal – sombras, vaidades -,
É bela, é louca e bela, e que a beleza
É a mais generosa das verdades…

Fonte:
Raul de Leoni. Luz Mediterrânea. SP: Livraria Martins, 1959

Arthur de Azevedo (Romantismo)


Capítulo I


— Então, Rodolfo, decididamente, não te casas com a viúva Santos?

— Nem com ela, nem com outra qualquer. E peço-lhe, meu pai, que não insista sobre esse ponto, para poupar-lhe o desgosto de contrariá-lo. O casamento assusta-me; é a destruição de todos os sonhos, o aniquilamento de todas as ilusões. Deixe-me sonhar ainda. Tenho apenas vinte e cinco anos.

— Tu o que tens é uma carregação de romantismo e preguiça, que me aborrece deveras. O teu prazer, meu mariola, é andar envolvido em aventuras de novela, desencaminhando senhoras casadas, procurando amores misteriosos e noturnos, paixões de horas mortas, de chapéu desabado e capa. Olha que um dia vem a casa abaixo! Don Juan, quando menos pensava, lá se foi para as profundas do inferno!

— Entretanto, observou Rodolfo a sorrir, Don Juan também usava capa, e dizem que quem tem capa sempre escapa.

— Ri-te! Ri-te! um dia hás de chorar!

E o doutor Sepulveda pôs-se a medir com largos passos nervosos o assoalho do gabinete.

De repente estacou, sentou-se, e, voltando-se para o filho:

— Que diabo! disse, a viúva Santos é uma das senhoras mais lindas que conheço! Não se diga que te estou metendo à cara um estupor!

— Fosse a própria Vênus!

— É mais, muito mais, porque a Vênus não tinha duzentos contos de réis em prédios e apólices.

— Ora, sou bastante rico, e o senhor, meu pai, não sabe o que há de fazer do dinheiro. A sua banca de advogado rende-lhe uma fortuna todos os anos e eu tenho a satisfação de lhe lembrar que sou filho único.

— A minha banca, maluco, há muito tempo não rende o que rendia no tempo em que os cães andavam com linguiças no pescoço. O que te ficou por morte da tua mãe, e o que te posso dar, ou deixar, é pouco para a tua dispendiosa vida de rapaz romântico, anacrônico e serôdio.

— Tenho ainda meu padrinho, o general.

— Pois sim! Teu padrinho é muito bom, sim senhor, muita festa pra festa, meu afilhado pra cá, meu afilhado pra lá, mas olha que daquela mata não sai coelho.

— É extraordinário o interesse que o senhor toma por essa viúva Santos!

— Não é por ela, é por ti, pedaço de asno! Vocês foram feitos um para o outro, acredita, e o que mais lhe agrada nas tua pessoa é justamente esse feitio que tens, de Antony de edição barata.

— Ela nunca me viu.

— Nunca te viu, mas conhece-te. Pois se não lhe falo senão do meu Rodolfo! Levei-lhe a tua fotografia, aquela maior... do Pacheco... aquela em que estás tão bonito, que até me parece a tua mãe...

— Que tolice! Minha mãe com bigodes!

— Os bigodes não, mas os olhos, a boca e o nariz parecem tirados de uma cara e pregados na outra.

— Mas se o senhor lhe levou o meu retrato, por que não me trouxe o dela?

— Disso me lembrei eu. Infelizmente nunca se fotografou. Se eu lhe apanhasse o retrato, oh! oh! Mostrava-lo, e estou certo que não resistirias.

— O senhor mete-me medo! Para evitar uma asneira de minha parte, hei de fugir da viúva Santos como o diabo da cruz!

— Disseste que me interesso por ela; e quando me interessasse? Não é filha de um bom camarada, o Teles, que morou comigo quando éramos estudantes, e se formou em Olinda no mesmo dia que eu?— Não imaginas o prazer que tive quando recebi uma carta de Rosalina — ela chama-se Rosalina — dizendo-me: “Venha verme; quero conhecer um dos melhores amigos de meu pobre pai.”

— O pai é morto?

— Há muitos anos. Morreu juiz municipal nas Alagoas. Deixou a mulher e os filhos na mais completa pobreza, mas os rapazes arranjaram-se no comércio, e lá estão em Pernambuco em companhia da mãe. A Rosalina, essa casou-se com um negociante aqui do Rio, o Santos, que a viu por acaso uma vez que teve de ir a Pernambuco tratar de negócios.

O doutor Sepulveda aproximou a sua cadeira par mais perto do filho e comentou:

— Alguém disse que a viúva é como a casa que está para alugar: há sempre lá dentro alguma coisa esquecida pelo antigo inquilino. Bem vejo, meu filho: o que te desgosta é esse Santos, esse marido, esse inquilino; pois não tens razão. O casamento de Rosalina foi obra dos irmãos - um casamento de conveniência. A pobre rapariga sacrificou-se à felicidade dos seus. O coração entrou ali como Pilatos no Credo. Oito dias depois de casados, os noivos vieram para o Rio de Janeiro. Seis meses depois morreu o marido, mas antes disso teve a boa idéia de chamar um tabelião e fazer testamento em favor dela. Ofereço-te um coração virgem, meu rapaz; aceita-o, e com isso darás muito prazer a teu pai e ao general, teu padrinho, que consultei a esse respeito, e é inteiramente da minha opinião.

Rodolfo ergueu-se, espreguiçou-se longamente, e disse, com os braços estendidos, e a boca aberta num horroroso bocejo:

— Ora, meu pai, não falemos mais nisso.

E não falaram mais nisso.

O doutor Sepulveda foi ter com o general, e contou-lhe a relutância do afilhado.

— Mas hei de teimar, seu compadre, hei de teimar!

— Não teime. Você não arranja nada. Aquele que está ali não se casa nem à mão de Deus Padre.

— É o que havemos de ver, seu compadre, é o que havemos de ver”...

Capítulo II

Dois dias depois, Rodolfo sentia-se abalado pela insistência paterna, e estava quase disposto a pedir ao doutor Sepulveda que o apresentasse à viúva Santos, quando o correio urbano lhe trouxe uma carta concebida nos seguintes termos:

“Rodolfo — Se não é medroso, esteja amanhã, quinta feira. às 8 horas da noite, no largo da Lapa, junto ao chafariz. Ali encontrará uma senhora idosa, vestida de preto, com o rosto coberto por um véu. Faça o que ela indicar. Trata-se de sua felicidade.”

A carta escrita com letra de mulher, em papel finíssimo, não tinha assinatura, e exalava um delicioso perfume aristocrata. Rodolfo leu-a, releu-a três vezes, e guardou-a cuidadosamente. Ocioso é dizer que a viúva Santos varreu-se inteiramente da sua imaginação, excitada agora pelo misterioso da aventura que lhe propunham.

Foi ao largo da Lapa. Por que não havia de ir? Poderia recear uma cilada? Ora! No Rio e janeiro não há torres de Nesle nem Margaridas de Borgonha.

Já lá encontrou a velha, junto do chafariz. Ela foi ao seu encontro, cumprimentou-o, e, dirigindo-se a um coupê estacionado a alguns passos de distância, abriu a portinhola e com um gesto convidou-o a entrar. Rodolfo não hesitou um segundo; entrou; a velha entrou também, e o coupê rodou na direção do Passeio Público.

— Aonde vamos? perguntou ele.

A velha disse-lhe por gestos que era muda, e abaixou os stores. Rodolfo percebeu que o carro entrou na rua das Marrecas, e dobrou a dos Barbonos; depois não pode saber ao certo se tomou a rua dos Arcos ou a de Riachuelo. As rodas moviam-se vertiginosamente. De vez em quando dobravam uma esquina. Dez minutos depois, o moço ignorava completamente se se achava em caminho e Botafogo ou de Vila Isabel, da Tijuca ou do Saco do Alferes. Quis levantar um store. A velha opôs-se com um gesto precipitado e enérgico. Ele caiu resignadamente no fundo do carro, e deixou-se levar. Ora, adeus!

A viagem durou seguramente uma hora. Quando o coupê estacou, a velha ergueu-se, tirou um lenço da algibeira, e tapou os olhos do moço, que se deixou vendar humildemente, sem proferir uma palavra.

Ela ajudou-o a descer, e levou-o pela mão, sempre de olhos tapados, como Raul de Nagis nos Huguenotes.

Pelo cascalho que pisava e pelo aroma que sentia, Rodolfo adivinhou que estava num jardim, caminhando em deliciosa alameda. Depois de andar cinco minutos, guiado sempre pela mão encarquilhada da velha, esta murmurou baixinho: — Adeus, seja feliz! — e afastou-se. Ao mesmo tempo, uma voz argentina, uma voz de mulher que parecia vir do alto e soou musicalmente aos seus ouvidos, disse-lhe: — Desvenda-se, Rodolfo.

Ele arrancou o lenço dos olhos. Estava efetivamente num jardim, defronte de uma das partes laterais de um belo prédio moderno. A lua, iluminando suavemente aquele magnífico cenário, batia de chofre na sacada em que se achava uma mulher vestida de branco com os cabelos soltos.

— Onde estou eu? perguntou ele, e olhou para o horizonte, a ver se algum morro conhecido o orientava. Nada! — nos fundos da casa erguia-se, é verdade, um morro, mas tão próximo e tão alto, que o moço do lugar em que se achava, não lhe podia notar a configuração.

— Onde estou eu? repetiu.

Por única resposta a mulher de cabelos soltos deixou cair uma escada de seda, cuja extremidade ficou presa à sacada; e Rodolfo subiu por ela com mais presteza do que o faria o próprio Romeu.

Ao entrar na alcova, fracamente iluminada pela meia luz de um bico de gás, ficou deslumbradíssimo. Estava diante de um prodígio de formosura! O pasmo embargou-lhe a fala; quis soluçar um madrigal, e não teve uma palavra, uma sílaba, um som inarticulado!

— Amo-te, disse ela com uma voz que mais parecia um ciciar de brisa; amo-te muito, Rodolfo, e quero que também me ames.

— Oh! sim, sim... quem quer que sejas... eu amo-te, e...

Uma gargalhada o interrompeu. Era o doutor Sepulveda que entrava na alcova e dava mais luz ao bico de gás.

— Meu pai!

— Teu pai, sim, meu romântico. Era esse o único meio de te fazer cá vir. Ora aqui tens a viúva Santos. Agora recuas, se és homem!

O casamento ficou definitivamente tratado naquela mesma noite.

Capítulo III

No dia seguinte o doutor Sepulveda, nadando em júbilo, foi ter com o general e contou-lhe tudo.

— Então? Não lhe dizia, seu compadre?

— Ora muito obrigado! respondeu o outro com a sua rude franqueza de velho militar; por esse processo você poderia casá-lo até com a Chica Polka!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora de moda. Publicado em 1894.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Cecy Barbosa Campos (Cena urbana)


A máquina roncava com um som rouco de gigante adormecido, intercalado com suspiros sibilantes que lhe doíam os ouvidos. Estava quase ao fim de mais um dia de trabalho intenso, que lhe deixava os nervos á flor da pele. Pensava nos minutos que faltavam para atravessar aquela porta, chegar ao relógio de ponto e sentir-se livre.

A sensação de detentos na penitenciária não deve estar muito longe do que sinto, pensou. A diferença são as horas ao final do expediente, quando chego a casa e encontro minha mulher e meus filhos.

Entretanto, ele sabia que o amanhã seria igual, com a mesma angústia, sem perspectivas de mudança. Faria um trabalho igual, ouviria um barulho igual e sentiria um cheiro igual; cheiro de máquinas, cheiro de corpos suados que se misturavam naquele galpão abafado.

Tentava se animar, procurando ser feliz por ter o seu ganha-pão de cada dia. Mesmo não dando para muito mais que pão, era melhor do que estar desempregado como alguns de seus amigos.

Finalmente, soou a campainha. O alívio que sentia amenizava a estridência do som. Parecer-lhe-ia estar ouvindo um dos Noturnos de Chopin, se os conhecesse. De qualquer forma, funcionava para ele como uma melodia tranquilizadora e suave. Atravessou o pátio com decisão e rapidez, logo alcançando a rua. Ao final do expediente, não tinha paciência para ficar de "papo", de tão ansioso ficava para chegar a casa.

Passou pela carrocinha do baleiro, estacionada perto da fábrica, e não resistiu ao apelo do anúncio: "Cinco paçoquinhas por R$1,00". Contando as moedas, entregou-as sorridente, antecipando a alegria dos meninos.

Enquanto caminhava, contemplava o sol que ensanguentava o horizonte, ferido pelo dia que morria. Teve a sensação de estar sendo envolvido por aquela mancha de sangue. Sentiu-se zonzo, as pernas pesavam, começou a cambalear. Ao alcançar a faixa de pedestres para atravessar no sinal, ficou confuso. Era verde ou vermelho? Trocando os passos, foi em frente até que, sem entender, ouviu o que lhe gritaram: Seu bêbado, filho da mãe, não vê o sinal?

Não chegou a perceber o que acontecia, pois o carro que vinha atrás atingiu-o em cheio.

Paçoquinhas estraçalhadas permaneceram em seu bolso.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 4

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


A desgraça do pau verde
é ter o pau seco ao lado:
Vem o fogo, queima o seco
fica o verde sapecado…
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Alguém te chamou de feia
e te puseste a chorar…
O agrado supre tudo
bela — é quem sabe agradar.
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De muita gente que existe
e que julgamos ditosa,
toda a ventura consiste
em parecer venturosa.
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Dês a ponta do dedo,
que eles desejam a mão;
se vai a mão, vai-se o braço,
vai-se o peito e o coração.
= = = = = = = = =

Dizem que a fortuna é cega,
é mentira, ela vê bem...
Dá milhões a quem tem muito,
a quem não tem, nem vintém.
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Menina bonita ou feia,
tudo tem sua procura:
Amor não enjeita nada,
porque tudo é criatura.
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Ninguém se julgue feliz,
inda tendo bom estado,
às vezes tirana sorte
faz dum feliz, desgraçado.
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O mal dos outros faz pena,
só o nosso faz cuidado.
Não se aprende com os outros
a ser menos desgraçado.
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Quem dá o seu coração
àquele que não conhece,
por muitas penas que passe
dobradas penas merece.
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Quem tiver o seu segredo,
não conte à mulher casada,
que a mulher conta ao marido,
e o marido ao camarada.
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Não se mostra o possuído
para não ser cobiçado;
Dinheiro ou mulher à vista
falta pouco pra roubado.
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Não há vantagem no mundo
que não tenha o seu senão;
Nunca vi rapaz bonito
que não fosse paspalhão.
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Meu amor está mal comigo
eu não sei por que motivo;
Que me importa, lá se venha,
não é de amores que eu vivo.
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Quem corre nem sempre alcança,
nem vence por madrugar.
Quem quiser chegar a tempo
ande firme e devagar.
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Vê o que dizes: tu passas
de livre a preso, num’ hora:
Palavra guardada é escrava
palavra solta é senhora.
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Hoje, Sancho é muito bom,
amanhã, Sancho é ruim...
Já fica sendo um demônio,
quem ontem foi serafim.
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Os tolos pensam que regras
ao mundo vieram dar;
Vão ver que pra ter juízo
na caneca hão de apanhar.
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Eu quero dar um conselho
a quem o quiser tomar,
quem quiser viver no mundo
há de ouvir, ver e calar.
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Quem muito alto quer subir
sem ter asas para voar,
as nuvens já estão se rindo
da queda que ele há de dar.
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Minha gente, venham ver
coisa que nunca se viu:
O tição brigou com a brasa
e a panelinha caiu!
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Eu quero a minha malícia
tal e qual se eu mesmo visse;
eu nunca maliciei
que certo não me saísse,
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Como o sereno da noite
procura o seio da flor,
assim minha alma amorosa
suspira por teu amor.
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Menina da saia verde,
de verde cor de esperança,
teus desdéns não me amotinam,
quem espera sempre alcança.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Carnide


Para se conhecer Carnide há que deambular, sem destino definido, pelas antigas azinhagas. O inesperado pode ser descoberto: os portões enferrujados de uma quinta abandonada, a mureta de pedra de uma velha exploração agrícola, a avenida de alcatrão que rasga o terreno baldio.

Antigo povoado dos arredores de Lisboa, Carnide era um belo conjunto de quintas, hortas e casas ricas, além de possuir ainda conventos e um hospital. Ao longo da história, predominaram as funções religiosa, agrícola, artesanal, militar, industrial e habitacional, motivadas pela sua acessibilidade. No final do século XlX, o aglomerado que é hoje de Lisboa já possuía iluminação, água canalizada, posto de polícia, uma filarmônica, um teatro e duas escolas.

Perde-se no tempo a origem rural de Carnide que também foi lugar eleito para veraneio dos nobres, que ali ergueram palácios e quintas ajardinadas. Desse passado ilustre, ficou uma herança patrimonial: o Palácio dos Condes de Carnide, o Palacete do Largo das Pimentas (atual Junta de Freguesia), a Igreja da Luz e o Convento de Santa Teresa do Carmo.

A freguesia tem crescido muito a nível populacional desde que as grandes urbanizações chegaram ao bairro, o que aconteceu pelos anos 60. Mas Carnide velho continua a sobreviver, com as suas casas e a fácil relação entre vizinhos.

Fundada em 28 de Junho de 1913, a Sociedade Dramática de Carnide (SDC) mantém-se fiel aos seus objetos de caráter sócio-cultural. Inserido neste conjunto de objetos destaca-se a existência do Grupo de Teatro de Carnide, em atividade há 35 anos. O Grupo de Teatro tem sido merecedor de vários prêmios, entre estes, registre-se a Medalha de Prata de Mérito da Cidade de Lisboa, vencendo ainda alguns importantes festivais de teatro, tanto a nível regional como nacional. A Sociedade Dramática de Carnide organiza a Marcha desde 1966.
 
 MARCHA DE CARNIDE
(Carnide Lavrador)

Letra de Maria Valejo
Música de Mário Valejo


Que belo é Carnide o Lavrador
Altaneiro na sua singeleza
Orgulhoso mostra que o seu amor
pertence a esta terra Portuguesa
deixou as hortas veio ver a cidade
engalanou-se vestiu fato novo
e marchar cheio de brio e com vaidade
por entrar nesta festa que é do povo.

(Refrão)

Carnide Carnide
Carnide que passa
Marchando ele mostra
Sua Lusa Raça

Carnide Carnide
Ai quanta beleza
Traz de braço dado
A Alma Portuguesa

Carnide Carnide
Canta em viva voz
A Língua bendita
Que é de todos nós.

Angola e Brasil também aqui vão,
Cabo Verde marcha, pôs na alma a Fé
São Tomé e Príncipe ai quanta emoção
Cá vai Moçambique e também Guiné
Não esqueceu as Ilhas mais belas que viu
Herança d’avós d’amor sem igual
Lembra Macau, Goa, Damão e Diu
Tudo em Português, viva Portugal!

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

Jaqueline Machado (A virgem dos lábios de mel)


Ela é moça, ela é bela, ela é Iracema, a inesquecível virgem dos lábios de mel. Esboçada e animada pelo literato indianista José de Alencar, a índia Tabajara que embrenhada entre as matas, com os pássaros gostava de conversar, fez a sua estrela brilhar no céu, na terra e nos mares do santo Ceará.

A virgem era promessa das tribos de Tupã, possuía o segredo da Jurema e não podia descobrir o amor. Porém, certa vez conheceu Martim, um português aliado dos adversários Potiguaras. Os dois se apaixonam instantaneamente. O guerreiro já tinha a sua amada em Portugal e a jovem índia por sua vez, não foi feita para desfrutar dos sabores de um romance.

Caso amasse, poderia perder a própria vida. Porém, mesmo correndo riscos, eles desafiaram as leis e renderam-se a uma bela união. E ao gestar um filho, fruto da mistura do sangue entre brancos e índios, Iracema transformou-se em um encantado anagrama da América, símbolo da beleza, da natureza e da mistura de raças do Brasil.

TRECHO DA OBRA: Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Infelizmente, o romance não teve um final feliz, Martim, sempre em guerra, acabou por esquecer Iracema e, ela, aos poucos, definhou nos braços da tristeza. Morreu de amor.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

domingo, 27 de novembro de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 18

 

Sílvia Svereda (Jardim de Trovas) - 1


Às vezes, nem é preciso,
ouvir nossa própria voz,
se o teu olhar e o sorriso,
falaram tudo por nós.
= = = = = = = = =

Bela infância…a ingenuidade,
o tempo proporcionou.
Mas perdeu a validade,
quando esse tempo passou.
= = = = = = = = =

Brilha a luz de uma quimera,
ao raiar de um novo dia,
nesta nova primavera,
que já em breve,  principia.
= = = = = = = = =

Consiste em viver e amar,
numa oferenda de amor.
Ser uma estrela a brilhar,
no universo, em seu negror.
= = = = = = = = =

Deus da vida, Te saúdo,
O Teu amor quero ter.
Graças dou Meu Deus, Meu Tudo,
graças pelo meu viver!
= = = = = = = = =

Devolve nossa eloquência,
um livro é boa semente
que tem como consequência,
abrir caminhos da mente.
= = = = = = = = =

Ele ensina aos filhos seus,
que a missão seja cumprida,
na fé e no amor de Deus,
a luta será vencida.
= = = = = = = = =

Eu ouvi: _É só um cão…
Tão grande foi meu espanto,
qual punhal no coração,
sangrando em forma de pranto.
= = = = = = = = =

Ficar presa? Nunca mais,
obstáculos dominei.
Sem temores, sem meus ais,
pois no amor eu me encontrei.
= = = = = = = = =

Já é hora da partida,
eu sinto a ausência de alguém…
Sem adeus, sem despedida,
somente um vulto … ninguém!
= = = = = = = = =

Lágrimas de poeta são,
orvalhos nas madrugadas,
dentro da alma e coração,
em amor são transformadas.
= = = = = = = = =

Na casinha do interior,
era só felicidade .
Nas férias, com meu amor…
Hoje, lembranças, saudade.
= = = = = = = = =

Na lembrança, ainda presente,
maior emoção contida.
Foi quando um pingo de gente,
modificou minha vida.
= = = = = = = = =

No nosso tempo que corre,
poesia é livramento,
pois nossa alma ela socorre,
traz paz a todo momento.
= = = = = = = = =

No tempo, quero voltar,
mas não posso, é impossível.
Agora é só recordar,
um passado inesquecível!
= = = = = = = = =

O amor, assim, de repente,
em qualquer tempo aparece.
Qual a luz da chama ardente,
qual o poder de uma prece.
= = = = = = = = =

Obstáculos… surgirão,
valerá a experiência.
Tenha determinação,
fé, coragem, persistência.
= = = = = = = = =

O pôr do sol no infinito,
qual lindo troféu dourado,
tornando o céu tão bonito,
que sinto Deus ao meu lado.
= = = = = = = = =

O sofrer da minha mente
não tem mágoa ou dissabor.
Vou seguindo sempre em frente,
pois meu lema é  o amor.
= = = = = = = = =

Para o sol iluminar,
nossas janelas abrimos.
E bem cedo demonstrar,
toda a paz que nós sentimos.
= = = = = = = = =

Poeta, refletes na alma,
teu espelho interior,
transformando em paz e calma,
as intempéries do amor.
= = = = = = = = =

Quem ama não escolhe a hora,
há amor a todo momento .
No anoitecer ou na aurora,
o que importa é o sentimento .
= = = = = = = = =

Voar num tapete mágico,
viver o sonho mais lindo …
Um romance ou conto trágico,
o livro é sempre bem-vindo.

Aparecido Raimundo de Souza (Cara ou coroa)


HAROLDO ESTÁ DISCUTINDO com Mike por causa da mesma mulher. Ambos os amigos amam perdidamente a encantadora Verônica. Estão prestes a colocarem fim em uma amizade de anos, levados pelos instintos maléficos em não quererem ceder abrindo mão do que sentem por ela. A continuação da luta ferrenha pelo coração da moça mais bonita do bairro onde residem, provavelmente criará enorme embaraço e estremecimento afastando, inclusive, as cordialidades existentes entre as famílias dos acirrados contendores.  Mike, meio que fora de si, esbraveja:

— Desista, Haroldo. Pule fora enquanto é tempo. Verônica gosta é de mim...

Haroldo (insiste, com eloquente veemência):

— Negativo, Mike. Ela me ama.

Mike:

— Deixe de ser bobo, Haroldo. A Ve está de quatro, os pneus arreados, ou seja, a minha Ve está caidinha pelos meus encantos.

Haroldo:

— Convencido!

Mike:

— Sou mesmo.

Haroldo:

— Quer saber de uma novidade fresquinha, seu idiota Eu e Verônica vamos noivar em dezembro. Daqui a quatro meses. Estou por “descarga” de consciência revelando esse pormenor a você, meu ainda amigo em primeiríssima mão.

Os futuros pretendentes à mão de Verônica se medem da cabeça aos pés. Mike tenta disfarçar um rancor mortal:

— É mesmo Haroldo? Desejo felicidade aos pombinhos.

Após essas palavras, Mike cai em estrondosa gargalhada. Haroldo, sem dar trela, resolve seguir provocando. Cutuca o opositor:

— Do que está rindo, Mike? Aceite. Dói menos.

Mike:

— Estou achando graça da idiotice que acabou de dizer, Haroldo. Verônica, noiva de você? Conta outra!

Haroldo:

— Quer uma prova?

Mike:

— Sim!

Haroldo:

— Comprei as alianças semana passada. Tenho comigo a nota fiscal da joalheria. Veja você mesmo...

Mike (pega, à contragosto, a tal nota fiscal que o outro exibe).

— Isso não prova nada.

Haroldo:

— Ao contrário. Prova tudo.

Por um breve momento, ao ver a nota fiscal da aquisição da joia, Mike se sente tomado de verdadeira fúria interior. Parece que o chão vai sumir abaixo de seus sapatos. Precisa, contudo, ser forte o suficiente, ou o Haroldo acabará descobrindo a sua fraqueza e o derrotando. Se tal fato ocorrer, obviamente será seu fim. Haroldo continua decidido em não dar tréguas. Ataca.

Haroldo:

— Mike, entenda.  Não estamos a falar de outra menina, ou de uma criatura qualquer. Discutimos em face da mesma pessoinha que nos é grata e convive com a gente desde quando éramos dois bobocas de calças curtas urinando nos postes das ruas.

Mike:

— Estou tentando enfiar esse pormenor na sua cabeça desde que chegamos aqui.

Sem disfarçarem a indignação sentida se entreolham como se medissem forças. Ambos são altos e magros. Têm físicos iguais. Um possui cabelos claros, quase louros – com um rosto largo e delicados olhos azuis. O outro, exatamente o contrário. Moreno, simpático, belas feições gregas e uma boca cheia e sensual. Emparelham na idade. Haviam acabado de completar vinte e oito anos, sendo que Mike, dois meses mais velho.

Haroldo se diplomou em advocacia e Mike em medicina.

Haroldo:

— Verônica não foi feita para homens como você.

Mike:

— Nem para os de seu tipo – conclui com um sorriso forçado que em nada atenua a grosseria da frase.

Haroldo:

— Olha só quem fala. Logo você que sempre se mostrou contrário aos bons princípios do certo e errado!

Mike:

— Até Verônica aparecer na minha vida. Antes, realmente, não acreditava no amor. Quando a conheci, mudei a maneira de pensar, de ver e de encarar as coisas. O que você poderia oferecer à Verônica – ainda que mal pergunte – que não estivesse igualmente ao meu alcance?

Haroldo graceja uma resposta ininteligível que se perde no barulho que o garçom provoca ao despejar o restante da cerveja nos copos vazios ao tempo em que indaga se querem que traga outra rodada de tira–gosto. Haroldo e Mike sinalizam ao mesmo tempo para que o rapazola renove os salames fatiados e traga mais bebida. Despachado o garçom, a dupla volta à carga.

Mike:

— Me diga agora você, Haroldo, o que poderia oferecer à nossa graciosa Verônica, hoje juíza de direito da vara criminal dessa porcaria de cidade interiorana que não estaria igualmente ao meu alcance?

Haroldo:

— Fidelidade, Mike. Você, apesar de ser formado em medicina, não sabe o que significa essa palavrinha. Fidelidade. Conheço sua maneira de ser e de agir de idos carnavais. E por conhecer bem seu coração, jamais seria fiel a um relacionamento sério. Concluindo: você faria a nossa Verônica sofrer horrores.

Mike:

— E você, Haroldo? Desde quando foi fiel a quem passou pelas suas mãos? Teve um monte de namoradas... a última, lembra dela, a Marília? Você meteu o pé no traseiro da infeliz quando soube que estava grávida...

Haroldo:

— Por certo. Meti mesmo. Uma desmiolada. Vagaba das brabas.  Flertava com nosso amigo Pereira às escondidas. O filho, aliás, é dele. Mas está lembrado do tempo em que a sem-vergonha passeava ao meu lado, de braços dados e jurava, de pés juntos me amar? Quando a criança nasceu... todos que me criticavam foram unânimes em afirmar que a guria tinha a fuça do Pereira. E cá entre nós, tem mesmo.

Mike:

— Por certo. Quanto a isso... e a Ana?

Haroldo:

— A Ana foi um caso à parte. Namorei um ano. Em seguida, pintou a Érica. Um ano e meio. Não devo me esquecer de Heloísa. Moramos juntos seis meses. Por último, a Beatriz. Nosso romance perdurou por quase dois anos. Acaso, amigo Mike você chegou a esquentar lugar tanto tempo com um só rabo de saia?

Os olhos de Mike ficam o tempo todo grudados em Haroldo e não há como se desviar deles. No fundo, o amigo está certo. Tem consciência que precisa rebater. Provar o contrário ou seu rival ganhará terreno e fatalmente o golpeará duramente pelas costas. Seria a reencarnação do velho assassinato de Cesar pelo seu algoz, amigo Brutus.  

Mike:

— Não dei a mesma sorte que você, isso é notório. Porém, meus relacionamentos, modéstia à parte, foram também duradouros.

Haroldo:

— O que chamaria de duradouro? Um mês, dois, cinco?

Mike:

— As garotas com quem tentei construir uma história, ao longo desses anos buscavam unicamente aventuras. Você sabe disso melhor que eu. Todas, sem exceção, queriam arrancar dinheiro, ter boa posição social seguida de um sobrenome de peso para acrescentarem ao próprio patronímico.

Haroldo (fazendo ares de pouco caso):

— Bela desculpa. Todas andavam à cata de aventuras? Tá legal. Uma ou outra, até que concordaria com você. Mas observe um detalhezinho importante: você não ficou mais de três meses com nenhuma das que tive o prazer de ver passar pela sua vida. Nem a Camila, que parecia uma princesa... claro, não mais bonita e formosa que a Verônica. Porém, nesse quesito, nós dois concordamos: um filézinho...  

Mike:

— Haroldo, todo esse papo furado não nos levará a nada. Estamos perdendo tempo. Desgastando a velha amizade.

Haroldo:

— Bem sei que caminhamos para essa possibilidade. Quer uma solução?

Mike:

— Sou todo ouvidos...

Haroldo:

—Desista de Verônica, Mike. Abra mão dela e pronto. Chegamos a um consenso e fim de papo...

Mike:

— Nunca!

Haroldo:

— Raciocine. Deixe que eu cuide da nossa fofinha. Cada um segue seu destino e, assim, só assim, seremos felizes para sempre. Você com a sua medicina e eu com a minha banca de advocacia.

Mike:

— Tenho uma proposta simples, rápida e rasteira, coisa de irmão para irmão, Haroldo.

Haroldo:

— Em frente, Mike.

Mike:

— Vamos tirar a sorte no “cara ou coroa”.

Haroldo:

— Jamais! Verônica não é um jogo. Para mim, essa moça representa tudo.

Mike:

— Faço minhas as suas palavras, Haroldo. Todavia, um de nós deve sair de cena imediatamente. Sugiro, pois, a disputa da beldade na moedinha. Como disse e repito, simples e rápido. Quem perder levantará acampamento, puxará o carro... e sumirá do pedaço.

Mike, ato contínuo mete a mão no bolso e retira uma moedinha colocando-a sobre a mesa:

— Aqui está mano. O que vai querer?  Cara ou coroa?  Para o jogo ser limpo, deixarei que faça a escolha.

Haroldo se levanta e estende a mão ao amigo:

— Já se faz tarde. Quanto ao seu joguinho, estou fora...

Mike:

— Amarelou?

Haroldo:

— Não se trata de amarelar ou não amarelar. Entenda. Verônica não é um jogo para disputa, um brinquedo. Para mim, essa deusa pela qual estamos aqui jogando conversa fora, representa algo muito sério, algo que deve, realmente, ser levado à termo. Pelo menos eu encaro a situação dessa forma.

Mike:

— Certo, certo, para mim não é diferente...

Haroldo:

— Por que não vamos até o fórum, levamos o caso até o conhecimento dela, não expomos o problema e então deixamos que ela mesma tome a decisão? Seria o mais justo, não concorda comigo, doutor Mike?

Mike:

— Olha, cara, não sabia que você era tão medroso, tão sem espírito de aventura, a ponto de “dar para trás”.

Haroldo:

— Não sou medroso, nem estou “dando para trás”. Jamais tive medo de alguma coisa. Todavia, tenho caráter, hombridade, discernimento... pensando melhor, raciocinando, tenho uma segunda alternativa. Vamos lá em casa...

Mike:

— Pretende me matar?

Haroldo:

— Jamais sujaria as minhas mãos.

Mike:

— Então?

Haroldo:

— Darei um presente a você... um presente inesquecível. Em nome da nossa velha amizade. Vamos, me acompanhe. Deixa que eu pago a conta.

Haroldo grita o garçom...

Mike:

— Me esclareça uma dúvida: já que você não encara o fato de que “amarelou”, que nome daria à sua momentânea recusa em não querer continuar disputando comigo, agora, no vai ou racha, no tudo ou nada, e, sobretudo, em ainda me presentear com alguma coisa que até agora desconheço?

Haroldo:

— Vou adiantar revelando do que se trata. Darei a vocês dois as alianças que comprei comprovando a veracidade da nota fiscal que lhe exibi. Depois irei até o fórum e comunicarei pessoalmente à Verônica a minha decisão de deixar, de vez, a disputa. Quanto ao nome...

Nesse momento e só nesse momento, Mike se defronta com os olhos do amigo se arregalando com uma expressão de profunda tristeza e, ao mesmo tempo, de paz interior que ele não tem como penetrar inteiramente.

Haroldo:

— Para terminar nossa conversa, quer, de fato, saber que nome eu darei ao gesto que você rotulou de “amarelou”?

Mike:

— Sim!

Haroldo:

— Aquele pequenininho, escrito com quatro letras apenas. O nome pelo qual a gente abre mão de tudo em glória plena da felicidade do outro, seja esse outro a mulher amada, o amigo, o irmão... ainda que depois a gente sofra e se ferre para o resto da vida. No meu caso, por exemplo... sairei perdendo. Entretanto, o mundo ainda dará voltas...

Mike (encarando esmiuçadamente o amigo de modo frio e desafiante):

— Deixa de frescura Haroldo. Canta a pedra. Desembucha de uma vez. Que droga de nome é esse que dará para corroborar a sua desistência?

Haroldo, soletra, lentamente, saboreando cada letrinha pronunciada:

— A... M... O... R...    

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Texto enviado pelo autor.