HAROLDO ESTÁ DISCUTINDO com Mike por causa da mesma mulher. Ambos os amigos amam perdidamente a encantadora Verônica. Estão prestes a colocarem fim em uma amizade de anos, levados pelos instintos maléficos em não quererem ceder abrindo mão do que sentem por ela. A continuação da luta ferrenha pelo coração da moça mais bonita do bairro onde residem, provavelmente criará enorme embaraço e estremecimento afastando, inclusive, as cordialidades existentes entre as famílias dos acirrados contendores. Mike, meio que fora de si, esbraveja:
— Desista, Haroldo. Pule fora enquanto é tempo. Verônica gosta é de mim...
Haroldo (insiste, com eloquente veemência):
— Negativo, Mike. Ela me ama.
Mike:
— Deixe de ser bobo, Haroldo. A Ve está de quatro, os pneus arreados, ou seja, a minha Ve está caidinha pelos meus encantos.
Haroldo:
— Convencido!
Mike:
— Sou mesmo.
Haroldo:
— Quer saber de uma novidade fresquinha, seu idiota Eu e Verônica vamos noivar em dezembro. Daqui a quatro meses. Estou por “descarga” de consciência revelando esse pormenor a você, meu ainda amigo em primeiríssima mão.
Os futuros pretendentes à mão de Verônica se medem da cabeça aos pés. Mike tenta disfarçar um rancor mortal:
— É mesmo Haroldo? Desejo felicidade aos pombinhos.
Após essas palavras, Mike cai em estrondosa gargalhada. Haroldo, sem dar trela, resolve seguir provocando. Cutuca o opositor:
— Do que está rindo, Mike? Aceite. Dói menos.
Mike:
— Estou achando graça da idiotice que acabou de dizer, Haroldo. Verônica, noiva de você? Conta outra!
Haroldo:
— Quer uma prova?
Mike:
— Sim!
Haroldo:
— Comprei as alianças semana passada. Tenho comigo a nota fiscal da joalheria. Veja você mesmo...
Mike (pega, à contragosto, a tal nota fiscal que o outro exibe).
— Isso não prova nada.
Haroldo:
— Ao contrário. Prova tudo.
Por um breve momento, ao ver a nota fiscal da aquisição da joia, Mike se sente tomado de verdadeira fúria interior. Parece que o chão vai sumir abaixo de seus sapatos. Precisa, contudo, ser forte o suficiente, ou o Haroldo acabará descobrindo a sua fraqueza e o derrotando. Se tal fato ocorrer, obviamente será seu fim. Haroldo continua decidido em não dar tréguas. Ataca.
Haroldo:
— Mike, entenda. Não estamos a falar de outra menina, ou de uma criatura qualquer. Discutimos em face da mesma pessoinha que nos é grata e convive com a gente desde quando éramos dois bobocas de calças curtas urinando nos postes das ruas.
Mike:
— Estou tentando enfiar esse pormenor na sua cabeça desde que chegamos aqui.
Sem disfarçarem a indignação sentida se entreolham como se medissem forças. Ambos são altos e magros. Têm físicos iguais. Um possui cabelos claros, quase louros – com um rosto largo e delicados olhos azuis. O outro, exatamente o contrário. Moreno, simpático, belas feições gregas e uma boca cheia e sensual. Emparelham na idade. Haviam acabado de completar vinte e oito anos, sendo que Mike, dois meses mais velho.
Haroldo se diplomou em advocacia e Mike em medicina.
Haroldo:
— Verônica não foi feita para homens como você.
Mike:
— Nem para os de seu tipo – conclui com um sorriso forçado que em nada atenua a grosseria da frase.
Haroldo:
— Olha só quem fala. Logo você que sempre se mostrou contrário aos bons princípios do certo e errado!
Mike:
— Até Verônica aparecer na minha vida. Antes, realmente, não acreditava no amor. Quando a conheci, mudei a maneira de pensar, de ver e de encarar as coisas. O que você poderia oferecer à Verônica – ainda que mal pergunte – que não estivesse igualmente ao meu alcance?
Haroldo graceja uma resposta ininteligível que se perde no barulho que o garçom provoca ao despejar o restante da cerveja nos copos vazios ao tempo em que indaga se querem que traga outra rodada de tira–gosto. Haroldo e Mike sinalizam ao mesmo tempo para que o rapazola renove os salames fatiados e traga mais bebida. Despachado o garçom, a dupla volta à carga.
Mike:
— Me diga agora você, Haroldo, o que poderia oferecer à nossa graciosa Verônica, hoje juíza de direito da vara criminal dessa porcaria de cidade interiorana que não estaria igualmente ao meu alcance?
Haroldo:
— Fidelidade, Mike. Você, apesar de ser formado em medicina, não sabe o que significa essa palavrinha. Fidelidade. Conheço sua maneira de ser e de agir de idos carnavais. E por conhecer bem seu coração, jamais seria fiel a um relacionamento sério. Concluindo: você faria a nossa Verônica sofrer horrores.
Mike:
— E você, Haroldo? Desde quando foi fiel a quem passou pelas suas mãos? Teve um monte de namoradas... a última, lembra dela, a Marília? Você meteu o pé no traseiro da infeliz quando soube que estava grávida...
Haroldo:
— Por certo. Meti mesmo. Uma desmiolada. Vagaba das brabas. Flertava com nosso amigo Pereira às escondidas. O filho, aliás, é dele. Mas está lembrado do tempo em que a sem-vergonha passeava ao meu lado, de braços dados e jurava, de pés juntos me amar? Quando a criança nasceu... todos que me criticavam foram unânimes em afirmar que a guria tinha a fuça do Pereira. E cá entre nós, tem mesmo.
Mike:
— Por certo. Quanto a isso... e a Ana?
Haroldo:
— A Ana foi um caso à parte. Namorei um ano. Em seguida, pintou a Érica. Um ano e meio. Não devo me esquecer de Heloísa. Moramos juntos seis meses. Por último, a Beatriz. Nosso romance perdurou por quase dois anos. Acaso, amigo Mike você chegou a esquentar lugar tanto tempo com um só rabo de saia?
Os olhos de Mike ficam o tempo todo grudados em Haroldo e não há como se desviar deles. No fundo, o amigo está certo. Tem consciência que precisa rebater. Provar o contrário ou seu rival ganhará terreno e fatalmente o golpeará duramente pelas costas. Seria a reencarnação do velho assassinato de Cesar pelo seu algoz, amigo Brutus.
Mike:
— Não dei a mesma sorte que você, isso é notório. Porém, meus relacionamentos, modéstia à parte, foram também duradouros.
Haroldo:
— O que chamaria de duradouro? Um mês, dois, cinco?
Mike:
— As garotas com quem tentei construir uma história, ao longo desses anos buscavam unicamente aventuras. Você sabe disso melhor que eu. Todas, sem exceção, queriam arrancar dinheiro, ter boa posição social seguida de um sobrenome de peso para acrescentarem ao próprio patronímico.
Haroldo (fazendo ares de pouco caso):
— Bela desculpa. Todas andavam à cata de aventuras? Tá legal. Uma ou outra, até que concordaria com você. Mas observe um detalhezinho importante: você não ficou mais de três meses com nenhuma das que tive o prazer de ver passar pela sua vida. Nem a Camila, que parecia uma princesa... claro, não mais bonita e formosa que a Verônica. Porém, nesse quesito, nós dois concordamos: um filézinho...
Mike:
— Haroldo, todo esse papo furado não nos levará a nada. Estamos perdendo tempo. Desgastando a velha amizade.
Haroldo:
— Bem sei que caminhamos para essa possibilidade. Quer uma solução?
Mike:
— Sou todo ouvidos...
Haroldo:
—Desista de Verônica, Mike. Abra mão dela e pronto. Chegamos a um consenso e fim de papo...
Mike:
— Nunca!
Haroldo:
— Raciocine. Deixe que eu cuide da nossa fofinha. Cada um segue seu destino e, assim, só assim, seremos felizes para sempre. Você com a sua medicina e eu com a minha banca de advocacia.
Mike:
— Tenho uma proposta simples, rápida e rasteira, coisa de irmão para irmão, Haroldo.
Haroldo:
— Em frente, Mike.
Mike:
— Vamos tirar a sorte no “cara ou coroa”.
Haroldo:
— Jamais! Verônica não é um jogo. Para mim, essa moça representa tudo.
Mike:
— Faço minhas as suas palavras, Haroldo. Todavia, um de nós deve sair de cena imediatamente. Sugiro, pois, a disputa da beldade na moedinha. Como disse e repito, simples e rápido. Quem perder levantará acampamento, puxará o carro... e sumirá do pedaço.
Mike, ato contínuo mete a mão no bolso e retira uma moedinha colocando-a sobre a mesa:
— Aqui está mano. O que vai querer? Cara ou coroa? Para o jogo ser limpo, deixarei que faça a escolha.
Haroldo se levanta e estende a mão ao amigo:
— Já se faz tarde. Quanto ao seu joguinho, estou fora...
Mike:
— Amarelou?
Haroldo:
— Não se trata de amarelar ou não amarelar. Entenda. Verônica não é um jogo para disputa, um brinquedo. Para mim, essa deusa pela qual estamos aqui jogando conversa fora, representa algo muito sério, algo que deve, realmente, ser levado à termo. Pelo menos eu encaro a situação dessa forma.
Mike:
— Certo, certo, para mim não é diferente...
Haroldo:
— Por que não vamos até o fórum, levamos o caso até o conhecimento dela, não expomos o problema e então deixamos que ela mesma tome a decisão? Seria o mais justo, não concorda comigo, doutor Mike?
Mike:
— Olha, cara, não sabia que você era tão medroso, tão sem espírito de aventura, a ponto de “dar para trás”.
Haroldo:
— Não sou medroso, nem estou “dando para trás”. Jamais tive medo de alguma coisa. Todavia, tenho caráter, hombridade, discernimento... pensando melhor, raciocinando, tenho uma segunda alternativa. Vamos lá em casa...
Mike:
— Pretende me matar?
Haroldo:
— Jamais sujaria as minhas mãos.
Mike:
— Então?
Haroldo:
— Darei um presente a você... um presente inesquecível. Em nome da nossa velha amizade. Vamos, me acompanhe. Deixa que eu pago a conta.
Haroldo grita o garçom...
Mike:
— Me esclareça uma dúvida: já que você não encara o fato de que “amarelou”, que nome daria à sua momentânea recusa em não querer continuar disputando comigo, agora, no vai ou racha, no tudo ou nada, e, sobretudo, em ainda me presentear com alguma coisa que até agora desconheço?
Haroldo:
— Vou adiantar revelando do que se trata. Darei a vocês dois as alianças que comprei comprovando a veracidade da nota fiscal que lhe exibi. Depois irei até o fórum e comunicarei pessoalmente à Verônica a minha decisão de deixar, de vez, a disputa. Quanto ao nome...
Nesse momento e só nesse momento, Mike se defronta com os olhos do amigo se arregalando com uma expressão de profunda tristeza e, ao mesmo tempo, de paz interior que ele não tem como penetrar inteiramente.
Haroldo:
— Para terminar nossa conversa, quer, de fato, saber que nome eu darei ao gesto que você rotulou de “amarelou”?
Mike:
— Sim!
Haroldo:
— Aquele pequenininho, escrito com quatro letras apenas. O nome pelo qual a gente abre mão de tudo em glória plena da felicidade do outro, seja esse outro a mulher amada, o amigo, o irmão... ainda que depois a gente sofra e se ferre para o resto da vida. No meu caso, por exemplo... sairei perdendo. Entretanto, o mundo ainda dará voltas...
Mike (encarando esmiuçadamente o amigo de modo frio e desafiante):
— Deixa de frescura Haroldo. Canta a pedra. Desembucha de uma vez. Que droga de nome é esse que dará para corroborar a sua desistência?
Haroldo, soletra, lentamente, saboreando cada letrinha pronunciada:
— A... M... O... R...
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Texto enviado pelo autor.
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