O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.
A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.
Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.
Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.
Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.
Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.
Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.
Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.
O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.
O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.
O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.
Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.
Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.
O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.
Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.
Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.
Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.
Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.
Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.
Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.
O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.
O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.
O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.
Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.
Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.
O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =
(publicado originalmente em 11 de abril de 2018)
Fonte:
Blog do autor
Blog do autor
Nenhum comentário:
Postar um comentário