O CHULÉSIO RESOLVEU se desfazer do seu papagaio de estimação. Para ele, um ser exoticamente totêmico (1). Quase surreal. Claro, a separação se faria a contragosto, é verdade. Amava o bicho como um apaixonado que se encanta por uma jovem bela e formosa, extremamente gostosa a ponto de despertar paixões avassaladoramente pecaminosas. Na linha dos quarenta, precisava de grana para cobrir despesas urgentes e não tinha nada de valor que pudesse colocar à venda. Lembrou do Crotildo. Havia achado o coitadinho fazia tempos, em meio de um depósito de lixo, próximo a sua antiga moradia, quando ainda o louro se constituía num bebezinho dependendo de carinhos e cuidados.
Bleso (2) de nascença, Chulésio se via às voltas com certas dificuldades para se comunicar com as pessoas. Por conta da sua foniatria (3), ficava nervoso, perdia o bom senso e a lógica do raciocínio. Nessas ocasiões, levado pela alteração verbal, se sentia demolido, arrasado na segurança com a convivência entre seus próprios consanguíneos, totalmente desmantelado e claro, esfacelando os neurônios e confundindo tudo dentro da sua cabeça. Sem saída, preparou o Crotildo, para colocá-lo em exposição, à porta de casa. Morava num bairro próximo ao centro com a mulher e dois filhos numa edificação de alvenaria, herança do pai, onde um quintal enorme permitia que seus trabalhos de carroceiro fossem de vento em popa.
Entretanto, com a chegada da pandemia, os serviços caíram à zero. Viraram, da noite paro o dia, gatos pingados, até que cessaram de vez. E não só isso: o prefeito baixou por conta da Covid-19, uma ordem que proibia os donos de carroças colocarem seus animais para puxarem coisas que uma pessoa comum e normal não levaria à termo. Em razão disso, seus dois cavalos deixaram de contribuir cotidianamente para o aumento da renda, aumento esse que vinha exatamente das tranqueiras e quinquilharias as mais diversas que carregava de manhã à noite, além da entrega para um comércio de materiais de construção como areia, sacos de cimento, botijões de gás, tijolos, enfim, até móveis e instrumentos musicais entravam no extenso rol.
De repente, as carroças ao sabor das longas esperas no espaço sem produzir coisa alguma, seguidas dos belos pangarés tomando ar fresco e comendo às custas do infeliz-patrão, sem produzir o essencial, Chulésio passou a comercializar objetos que carecia até para seu uso imediato e pessoal. Nessa leva foram lotes de lajotas e telhas coloniais para o beleléu (pretendia fazer um puxadinho nos fundos do terreno), móveis de sala e quarto que ganhava em doações. Até aparelhos eletrodomésticos, como geladeira (ele tinha duas), televisão, fogão (eram em número de quatro) guarda roupas e, de lambuja, um berço novinho em folha. Sem um quadro de melhoras, e ao escasso das coisas armazenadas, careceu de partir para o “valha me Deus, nossa Senhora”.
Em meio dessa confusão desordenada, teve que dançar, ou melhor, pular de cabeça se adequando no meio da miserenta da fome conforme a música que ela tocava em sua barriga. Ou isso ou a sua família passaria pelo imensurável da fome negra. Sem eira nem beira, jogou em troca de alguns cobres, o leito do casal com colchão que ganhara da mãe e, desde então, se viu dormindo com a esposa numa esteira, bem como os jiraus (4) dos filhos, em repeteco, uma garota de doze anos e um garoto de quinze. Sem mais nada rendoso, final de tudo, restou o papagaio. Seu querido e amoroso Crotildo. Vender o Crotildo, era como se um médico precisasse, num piscar de olhos, arrancar uma parte de seu corpo.
Sem opção, a alma inteira derramando o fel da tristeza, escreveu numa cartolina as palavras simples, destituídas da longevidade correta do português: “VENDU UGENTI O CROTILDU, MEO PAPAGÁO”. Nos primeiros dias, os vizinhos tentaram demovê-lo da ideia. Contudo, sem uma opção mais digna, não havia como voltar atrás. Por assim, logo que acordava, levava o papagaio para a frente da residência. Final da tarde, o recolhia. Os “passantes” que se faziam alheios às dificuldades do desditoso (fosse por morarem fora e cruzarem com a rua para um simples corte de caminho), paravam para indagarem o que o Aua (5) comia.
E o Chulésio aos acanhados das tartamelâncias (6), explicava:
— Eli... co... co... mi... de... de... tu... tu... do. Se... men... se... men... tes... de... gi... gi... ras... sol... ar... rois... fei... fei... jãum... ma... ma... car... rãum... pã... um... pu... pu... ro... ou... com... um... ca... ca... fé... fe... ba... ba... na... na... chu... pa... pa... man... ga... ga... gos... ta... de... ce... ce... nou... ra... e... ma... ma... çã...
Em face dessa fartura alimentar, as pessoas iam embora sem mostrarem o devido interesse em ter o Crotildo como novo membro engrossando o clã (7). Assim foi o mês todo. Nada. Quando menos se esperava, surgia um filho de Deus e o Chulésio repetia o menu com toda a sutileza que o seu tatibitate (8) permitia:
— Eli... co... co... mi... de... de... tu... tu... do. Se... men... se... men... tes... de... gi... gi... ras... sol... ar... rois... fei... fei... jãum... ma... ma... car... rãum... pã... um... pu... pu... ro... ou... com... um... ca... ca... fé... fe... ba... ba... na... na... chu... pa... pa... man... ga... ga... gos... ta... de... ce... ce... nou... ra... e... ma... ma... çã...
Dois meses e nenhum avanço propício à negociação do popular Amazona aestiva (9). Final do dia, Chulésio em decorrência do seu borboró (10), se via cansado e desgastado, aflito e angustiado por não conseguir se desfazer da sua “criaturinha verde”. Três meses e a situação se complicou. O redizer veemente e reiterado do que o Crotildo mandava para a barriguinha (amiudado dez, quinze, vezes ou mais), o inquietou. Por derradeiro, final do quarto mês de tentativas infrutíferas, o cidadão se emputeceu de vez. Quase noite, quando resgatava do poleiro o seu melhor amigo, um gaiato se achegou e mandou a pergunta. Chulésio, enraivecido, fora de si, não deixou por menos:
— Eli... co... co... mi... de... de... tu... tu... do. Se... men... se... men... tes... de... gi... gi... ras... sol... ar... rois... fei... fei... jãum... ma... ma... car... rãum... pã... um... pu... pu... ro... ou... com... um... ca... ca... fé... fe... ba... ba... na... na... chu... pa... pa... man... ga... ga... gos... ta... de... ce... ce... nou... ra... e... ma... ma... çã... e... ca... ca... em... em... tre... nóis... Cro... Cro... til... do... man... man... da... vo... vo... cê... pla… pla… plan…tar… tar… ba… ba… ta… tas.
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Notas de rodapé:
1 Totêmico – Conjunto de ideias e práticas baseadas na crença da existência de um parentesco místico entre seres humanos.
2 Bleso – Aquele que gagueja. Grosso modo, o que fala picotado ou aos saltos.
3 Foniatria – Parte da medicina que estuda os distúrbios e as afecções da voz.
4 Jiraus – Apoios ou estrados para colchões.
5 Aua – Uma das muitas espécies de papagaios. Outras podem ser encontradas, como os Chauás, as Arinárias, os da Nova-Zelândia, os de-Peito-roxo, os Charão, e os Moleiro, entre outros.
6 Tartamelâncias – Uma das muitas maneiras de grafar aqueles que tartamudeiam ou falam com certa dificuldade.
7 Clã – Grupo de pessoas pertencentes a uma família unidas pela consanguinidade.
8 Tatibitate – Pessoa que se comunica com a voz defeituosa.
9 Amazona aestiva – Outro nome do Papagaio-verdadeiro.
10 Borboró – Sujeito gago, ou que tem conturbações no ritmo da linguagem.
Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.
Texto e notas enviadas pelo autor.
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