sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Hans Christian Andersen (O Velho do Sono) Parte 2, final


QUINTA-FEIRA

   - Sabes o que trago aqui na mão? - perguntou o Velho-do-Sono. Não tenhas medo: é um ratinho.

Abriu a mão, e lá estava mesmo um camundongo pequenino, e muito lindo.

Vem convidar-te para a boda de dois ratinhos, que se casam hoje. Moram debaixo do assoalho da despensa da tua mamãe: para eles  é casa de muito luxo!

- Mas como vou entrar pelo buraquinho que é a porta deles?

- Deixa isso ao meu cuidado! - replicou o Velho-do-Sono - Vais ficar pequenininho.

E tocou-o com sua varinha de condão; o menino foi minguando, minguando, até que ficou do tamanho de seus dedos.

- Agora vai pedir ao soldado de chumbo que te empreste o uniforme. Creio que há de te servir, e a farda fica muito bem em uma festa de cerimônia.

- É mesmo - disse Hialmar.

E num abrir e fechar de olhos estava fardado.

- Quer ter a bondade de se sentar no dedal de sua mãe? – disse o ratinho. - Terei a honra de arrastá-lo.

- É muita amabilidade sua. - disse o menino. - Mas por que vai ter esse trabalho?

E lá se foram, para o noivado dos ratos.

Seguiram primeiro por um corredor, debaixo do assoalho, e tão baixinho que mal dava para andarem por ali com o dedal, era todo iluminado com mecha.

- Não é agradável o perfume que se sente aqui? - perguntou camundongo. - Todo o corredor foi esfregado com toucinho. Não há aroma mais delicado!

Entraram no salão da boda. À direita estava todas as senhoras ratinhas; falavam animadamente, e pareciam muito alegres. À esquerda ficavam os cavalheiros, e todos cofiavam os bigodes com a patinhas. No centro do salão estavam os noivos, sentados em uma casca oca de queijo, beijavam-se a cada instante, diante de todos. Ora, eram noivos, e iam casar dali a pouco.


A cada momento chegavam convidados; tantos que já não cabiam na sala, e como o par de noivos se postara bem no meio da porta de entrada, ninguém mais podia entrar nem sair. Toda a sala, bem como o corredor, estava untada de toucinho: era com isso unicamente que obsequiavam os convidados, Mas à hora da sobremesa passou de mão em mão um grão de ervilha, em que um ratinho, parente dos noivos, gravara a dentadas as iniciais do par. Não foi uma ideia original?

Todos os ratos estavam de acordo em que foi uma festa de noivado magnífica, e que nela reinara a maior harmonia e cordialidade.

Ao voltar à casa, reconhecia Hialmar que estivera em uma sociedade muito distinta; mas nem por isso se sentia menos amesquinhado, por ter ficado tão pequenino; e ainda por cima, vestira o uniforme de seus soldadinhos de chumbo!
                   
SEXTA-FEIRA

- Parecia mentira. - dizia o Velho-Sono - Parece mentira que haja tanta gente velha que suspire ainda por mim, e me queira ver a seu lado! Principalmente os que praticaram alguma maldade. E estão sempre a me dizer: " Velhinho querido, não podemos pregar olho a noite inteira, atormentados por nossas más ações! Elas se sentam na beira da cama, como duendes medonhos, e nos escaldam com água fervendo. Se tu ao menos viesses enxotá-las, poderíamos dormir um bom sono!" Suspiram então, do fundo da alma, e depois dizem: " Nós te pagaremos bem... Boa-noite, Velho-do-Sono! O dinheiro está na janela!" Ah! Mas eu não venho por dinheiro, não!

E hoje, que vamos fazer? - perguntou Hialmar;

- Não sei se gostaria de assistir a outro casamento...É muito diferente daquele de ontem. A boneca de tua irmã, aquela que parece um homem, e se chama Germano, vai casar com a outra, a Beatriz. Além disso é o dia do aniversário da noiva, e hão de receber muitos presentes.

- Sim, sim! Já sei. - disse Hialmar - Quando as bonecas querem vestidos novos, minha irmã diz que é o dia do aniversário, ou do casamento delas. Acho que já se casaram cem vezes, pelo menos!

- Sim. Mas hoje é o casamento número cento e um. E quando chega a essa conta, elas não podem casar mais. Por isso o casamento de hoje será uma festa esplêndida! Olha, olha só para aquilo!

Hialmar olhou para a mesa onde estava a casinha das bonecas. As janelas apareciam iluminadas, e à porta soldados de chumbo apresentavam armas. Os noivos estavam sentados no chão, apoiados à perna da mesa. Pareciam muito preocupados - e para isso, certamente, não faltariam motivos! Nesse meio tempo o Velho-do-Sono enfiara o vestido preto da avó, e casou-os. Terminada a cerimônia, todos os móveis se puseram a cantar esta canção, escrita pelo Lápis:

Leva, brisa gentil, nossos adeuses
À casinha dos noivos, tão amena,
Com seu teto de pele de cabrito.
Direitos ele são como a açucena
Esticada na haste. E que bonito
O belo par, lá na casinha amena...
Leva, brisa gentil, nossos adeuses!"
 
Começou então a apresentação dos convidados. E os noivos recusaram delicadamente os comestíveis, pois bastava o amor recíproco para alimentá-los.

- E agora - perguntou o noivo - o que será melhor; ir para o campo, ou fazer uma viagem ao estrangeiro?

Para resolver esta questão foram consultadas a andorinha, que tinha viajado muito e uma galinha velha, que já descascara cinco ninhadas. E a andorinha falou daqueles cachos enormes de uvas suculenta, onde o ar é lépido e perfumado, e as montanhas se tingem de cores nunca vistas em nossa terra.

- Mas lá não há couves verdes, como as nossas! - disse a galinha. - Passei um verão no campo, com toda a minha ninhada. Havia lá um buraco cheio de areia, onde a gente podia esgravatar á vontade. Além disso tínhamos licença de entrar na horta, cheia de couves verdes. E como eram verdinhas! Não creio que haja nada mais lindo no mundo!

- Mas ora! Um pé de couve é exatamente igual a outro pé de couve. - disse a andorinha. - Quem vê um vê todos. Além disso, aqui o tempo é tão úmido!

- Ora! É só a gente se habituar a isso - disse a galinha.

- Mas faz tanto frio... e cai neve!

- Pois se isso é o melhor que há para a couves! De mais a mais, aqui também pode fazer calor, de vez em quando: não tivemos, há quatro anos, um verão que durou quatro semanas? Era tanto o calor, que a gente nem podia respirar. E aqui não temos animais venenosos que vivem nos países estrangeiros, e estamos livres de ladrões. Só mesmo um ente desnaturado não acharia o nosso país mais belo que todas as outras regiões do mundo! E semelhante criatura não merece viver aqui!

E a galinha começou a chorar. E repetia:

- Eu também tenho viajado, tenho viajado, sim: viajei mais de doze milhas dentro de uma cesta. Não há prazer nenhum em viajar, não!

- A galinha tem razão. - disse Beatriz. - Não acho graça em andar abaixo e acima, viajando por montes e vales! Não: nós iremos ali àquele monte de areia ao pé do portão, e daremos um passeio pela horta, a ver as couves.

E estava resolvida a questão.

SÁBADO

Logo que Hialmar se viu na cama, na noite seguinte, foi perguntando ao Velho-do-Sono:

- Não me contas uma história hoje?

- Não tenho tempo - disse o Velho - abrindo a sombrinha, aquela toda pintada, Olha estes chineses!

A sombrinha era uma paisagem chinesa, cheia de árvores azuis  e pontes muito altas, por onde passeavam chinesinhos, movendo a cabeça para os lados.

- Amanhã, cedo, o mundo inteiro tem de estar todo em ordem. – disse ele. - É dia de festa, é domingo. Vou ao campanário, a ver se o gnomos, estão areando os sinos. Devem cantar amanhã um repique alegre. Depois irei ao campo, a ver se os ventos estão varrendo bem o pó das ervas e das folhas. O mais difícil é fazer descer as estrelas, para dar-lhes brilho. Junto-as todas no avental, mas primeiro é preciso numerá-las, assim como os furos em que estão cravadas, lá no céu, para que fique depois cada uma no seu lugar, senão ficariam frouxas, e começariam a cair... e era uma chuva de estrelas cadentes.

- Escuta, Velho-do-Sono - disse então um antigo retrato, pendurado perto da cama de Hialmar - Não sabes que sou o tataravô do Hialmar? Agradeço-te muito as histórias que vens contar ao menino; mas não deves estar metendo caraminholas na cabeça dele... As estrelas não saem do seu lugar para serem polidas, não: elas são mundos, como a nossa Terra!

- Obrigada, velho tataravô! - disse o Velho-do-Sono. - Muito obrigado! És muito velho na verdade, mas eu ainda sou mais velho do que tu! Sou mais velho pagão; os gregos e romanos chamavam-me o Deus dos Sonhos. Tenho sempre visitado casas de famílias muito importante, e casas de pobre; e ainda faço a mesma coisa. E sei muito bem como me haver com os grandes e com as crianças. Agora é a tua vez: conta uma história, conta o que te parecer!

E o Velho-do-Sono foi embora, com suas sombrinhas.

- Ora esta! - dizia o retrato da parede. - Então a gente não pode expor a sua opinião?

Nisto Hialmar despertou.

DOMINGO


- Boa-noite! - disse o Velho-do-Sono.

Hialmar, mais que depressa, levantou-se na cama e virou o retrato do tataravô de cara para a parede, para que não interrompesse a história, como o fizera na véspera.

- Conta-me agora a história das cinco ervilhas verdes, que viviam dentro da vagem, e a do galo que namorava a galinha, e a da agulha de cerzir, que era tão fina que se julgava uma agulha de bordar.

- Até as coisas boas podem ser demais. - disse o Velho. - Antes quero hoje mostrar meu irmão. Ele nunca visita a ninguém mais de uma vez; e quando visita uma pessoa leva-a na garupa. E vai contando histórias: uma delas é de beleza inexprimível, tão linda como ninguém pode imaginar; a outra é medonha, espantosa...nem é bom descrever.

E o Velho-do-Sono ergueu o pequeno Hialmar até a janela, dizendo-lhe:

- Lá está  meu irmão, o outro Velho-do-Sono, seu nome é Morte! Estás vendo que não é tão feio como se vê nos livros de estampas, onde parece uma caveira. Não: ele tem uma roupagem toda bordada de prata - um belo e alegre uniforme! Vê o manto de veludo negro que lhe caí dos ombros, e se estende pela garupa do cavalo! Olha como galopa!

E Hialmar viu o outro Velho-do-Sono galopando, levando consigo gente velha e gente moça; punha uns na frente, outro atrás - mas depois de perguntar a cada um que espécie de notas trazia.

- Boas! - respondiam todos.

- Deixa-me vê-las! - retrucava ele.

E todos eram obrigados a lhe mostrar as notas. Os que tinham "muito boa", "ótima, iam na frente, e ouviam a história linda; mas os que tinham apenas a palavra "regular", ou "má", escrita no certificado, deviam ficar na garupa do cavalo, e ouviam a história horrível. Tremiam, e choravam, tentavam saltar do cavalo abaixo, mas não o conseguiam, pois pareciam amarrados firmemente, como se houvessem criado raízes ali.

- A Morte é um Velho-do-Sono muito bonito - Disse Hialmar - Eu não tenho medo dela.

- Nem precisas ter! - afirmou o Velho-do-Sono. -  É só tratares de ter uma boa nota para lhe mostrar.

   - Ora aí está uma história muito instrutiva! - disse o retrato do velho tataravô. Então sempre serve para alguma coisa a gente dar a sua opinião...

E soltou um grande suspiro de contentamento.

E esta história do velho-do-Sono. Quem sabe se ele não virá em pessoa, esta noite, contar-te alguma outra?

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