TUDO O QUE ACONTECEU e está narrado no presente texto, não foi no tempo em que os animais falavam. De fato, são verídicos e merecem todo o crédito atribuído ao autor. Pedi um uber para me levar (eu e minha neta Ellen) ao aeroporto Santos Dumont. Menos de quinze minutos, pintou na área, um Renault Duster branco da Sandero, quatro portas, novinho em folha. No volante, uma figura estranha para os tempos atuais. Não propriamente uma figura. Na verdade, um bode. Imagine! Ao entrar no veículo, de pronto, constatei ser a criatura um bode justo e perfeito. Achei esquisito um bode trabalhando como motorista de aplicativo. Fizemos as apresentações de praxe, seguindo os protocolos de segurança:
— Seu Linguiça, bom dia. Eu sou o Bode, às suas ordens.
— Bom dia, seu Bode. Prazer em conhecê-lo.
— E a simpática mocinha?
— Ellen, minha neta.
— Bom dia senhorita. Seja bem-vinda.
Ellen respondeu sem desgrudar os olhos do celular:
— Bom dia, obrigada.
Antes de se ater ao caminho, a pergunta que, de antemão, sabia a resposta:
— Aeroporto Santos Dumont?
— Por favor...
— Viagem à negócios, ou a passeio?
— Passeio.
— Posso saber para onde está voando?
— São Paulo.
No trajeto de pouco mais de treze quilômetros, da Borges de Medeiros, na Lagoa Rodrigo de Freitas, até o Santos Dumont, o Bode (intercalando os olhos, ora no transito, ora dialogando comigo, pelo retrovisor) seguiu procurando ser gentil. Explicou que recente perdera o emprego. Como não arranjara nada de carteira assinada dentro de sua profissão e na especialidade que se formara, resolveu, com o dinheiro recebido de quase trinta anos, ser seu próprio patrão:
— Pesquisei daqui, dali e cheguei à conclusão que no momento em que atravessamos tempos difíceis, atrelados aos percalços de um país falido, o melhor seria me virar em algo por conta própria. Decidi ser meu patrão. E me apareceu trabalhar como motorista à semelhança dos táxis. Aqui estou belo e formoso...
— E está dando certo? — Assuntei sem muita animação.
— Até agora sim, graças à Deus. O senhor crê me faltar muito pouco para acabar de pagar o carrinho?
— Carrinho? Que carrinho?
— A lindeza que agora leva o senhor e a sua netinha ao aeroporto...
— Ah, sim. Acredito!
— Coloquei um objetivo. Por dia preciso fazer tantas corridas para alcançar o valor idealizado.
— Legal.
— Ontem, por exemplo, uma vitória inesperada. Antes do meio dia, já havia obtido o limite estabelecido...
— Parabéns. O senhor é um vencedor.
— Obrigado, meu amigo. “O pouco com Deus é muito e o muito, sem Deus é nada”.
Que chato! O Bode não parava de tagarelar:
— Hoje comecei no trampo, como todos os dias, às cinco horas da manhã. Paro ao meio dia, para um rápido almoço. Em seguida caio de novo no mundo. Às dezoito horas, me recolho. Espero ter a mesma sorte benfazeja de ontem. Antes do horário previsto galgar o “Ponto- X”. Então poderei desligar o telefone e partir para o abraço...
— Mora aqui por perto?
— Quem dera! Me escondo no Cocotá, Ilha do Governador.
— Família?
— Mulher e duas filhas. Uma com seis anos e a mais velha com treze...
— A idade da minha neta aqui.
— A Cabra me ajuda. Não estou sozinho na peleja pela sobrevivência.
Quase dei um salto repentino no banco traseiro:
— Quem?
— A Cabra, minha esposa...
— Ah, verdade...
— Esqueceu que sou um bode?
— Olhando assim para o amigo... se a gente não prestar atenção, quase não dá para aceitar o fato de que seja um...
— Entendo. Todavia, no meu humilde modo de encarar a vida, acho que o senhor me reconheceu... como é discreto, não quis inquirir ao menos para tirar a dúvida.
— Em parte o amigo tem razão. Faço vistas grossas. Falo sempre sobre essas coisas à minha neta. Às vezes sou meio antiquado. Ensino a ela que a gente não deve ser abelhudo. A curiosidade costuma matar o gato.
O Bode aquiesceu, mostrando junto com o sorriso franco uma arcada dentária perfeita:
— O senhor tem toda razão.
Completei o que pensava, observando:
— Melhor ser um gato vivo que um bichano a caminho do cemitério...
— Concordo plenamente com suas palavras, meu caro Salaminho...
— Perdão, amigo Bode. Linguiça. De onde foi que tirou o Salaminho?
Bode se desculpou veementemente envergonhado:
— Desculpe-me pelo vacilo, seu Linguiça. Eis nós aqui. Chegamos ao seu destino. Aeroporto Santos Dumont. Façam, o senhor e a sua netinha, uma boa e proveitosa viagem.
Puxei da carteira o dinheiro para o pagamento da corrida.
O Bode se virou e, sem deixar a alegria que inundava suas faces coradas, naquele momento, observou:
— Negativo, seu Linguiça. O senhor não me deve nada.
Franzi o cenho, interrogativamente:
— Como assim não lhe devo nada?
— Estou lhe dizendo que estamos quites.
— Acaso errei o valor visto aqui pelo meu celular?
— De forma alguma...
— Estou, inclusive, acrescentando um pouquinho mais, como gorjeta...
— Como lhe falei, corrida sem pendência alguma. Foi um prazer ter lhe conhecido e transportado o senhor e a sua netinha. Vão em paz. Aqui está o meu cartão e o número. Se quiser me dar o prazer de outras viagens, é só mandar um alô.
Desembarcamos. O sujeito foi embora. Minha neta pediu para olhar o cartão de visitas deixado:
— Vô, o cara se chama “Bodi?!”
— Sim, minha linda. Ele é o marido da Cabra.
Sem mais delongas, entramos e rumamos para o check-in.
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Texto enviado pelo autor.
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