A lua bruxuleava nas ondas. Alfonso não parava de fumar, e a luz do cigarro às vezes semelhava outra lua. Figuras de contornos vagos surgiam e desapareciam nas águas. Sereias ou iemanjás. Quando apareceu Maria. Pediu cigarro e propôs beberem. “Besando al marinero que te quiere mármol amante nadador y puro, que por ti rasga el mar y en ti se muere.” Ela riu e gargalhou. Ora, não esperava conhecer naquela noite um estrangeiro.
Há muito tempo Alfonso Ordóñez se dedicava aos irmãos Pinzón. Acreditava em suas descobertas. Sobretudo no descobrimento do Brasil por seus compatriotas.
No bar pediu para sentar-se voltado para o mar, o cais. Ali, no Mucuripe, há 458 anos, Vicente Yáñez Pinzón plantou uma cruz. Maria riu de novo. Ora, tinha um irmão também chamado Vicente. Coitado, havia morrido. Plantaram-lhe uma cruz no lugar onde o mataram. A lua beijava o mar. A melodia das águas embalava os olhos de Alfonso. “!Rómpete, luna! En diez espejos rota...”
Chegado de Madri há poucos dias, Ordóñez planejava conhecer todo o litoral cearense, Aracati, o cabo Santa Maria de la Consolación e, sobretudo, pisar e fotografar a ponta do Mucuripe, o Rostro Hermoso, exatamente onde estiveram Vicente Pinzón e Diogo de Lope. No rádio um locutor driblava a língua com Garrincha, rolava bolas com Mazola, em delírio com Didi, êxtase nos pés de Pelé. No entanto, Maria bebia muito e anunciava o fim da noite. Junto ao bar havia uns quartos, e cama, sossego e banho. Pois, logo mais, José, seu homem, ressurgiria.
Alfonso bebia e falava, o tempo todo, de navegadores de antigamente. Escrevia um livro monumental — O Descobrimento do Brasil pelos Espanhóis.
Bêbados gritavam “Brasil, Brasil”. Mulheres pediam bebidas e se enroscavam nas pernas dos homens. Uma delas se pôs a dançar. Queria música. O jogo havia acabado. O dono do bar pôs um disco na vitrola: “Dolores Sierra vive em Barcelona à beira do cais”. Maria falava de dinheiro. Quanto o gringo lhe daria? Pois José não se conformava com ninharias. Chegava a surrá-la, quando ela não conseguia bom dinheiro.
Nas ondas do mar a lua bruxuleava ainda. Alfonso bebia e fumava e falava da cruz plantada por Pinzón. Ali, no Mucuripe, há 458 anos. No entanto, a seleção brasileira de futebol caminhava para a conquista da Copa do Mundo. “Viva o Brasil!”.
Maria não queria mais saber de antiguidades nem de futebol. Precisava ir logo para o quarto. José não gostava de muita conversa. Gostava dela, sim, porém do seu dinheiro também. Dolores Sierra um dia partiu para conhecer Dom Pedrito, que prometeu e não cumpriu. Aqui e ali ainda estouravam artifícios de fogo. Mulheres pediam bebidas aos homens. Os garçons corriam para lá e para cá. “Brasil, Brasil”. Dolores Sierra sorriu para um homem e ganhou a primeira peseta. Alfonso Ordóñez ria, de olho na lua. “Rostro Hermoso. ¿Qué mar hubiera sido capaz de no llorarte?”
E então Maria estremeceu. À porta do bar um vulto se plantou na penumbra, feito uma cruz de horror.
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N.A.: Os versos em espanhol são de Rafael Alberti, extraídos dos poemas “Narciso”, “El arquero y la sirena” e “Platko”, todos de Cal y Canto.
Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
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