sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Sono pra lá de heteróclito)


ARMÊNIO FOI FLAGRADO enquanto dormia e roncava na sala de aula. A professora, furiosa, em vista daquela falta de atenção de seu aluno, achou por bem mandá-lo para casa. Como fora a primeira cochilada, apesar de muitíssimo chateada com a desatenção do garoto e a gozação dos demais que compunham a maioria dos presentes, daria uma chance. Perdoaria o moleque e não tomaria nenhuma decisão mais drástica junto à diretoria da escola, tampouco mandaria bilhete (via caderno) advertindo os pais para que viessem ter com ela uma conversa de pé de ouvido.

Em face desse ocorrido, dona Ximanga vendo o filho mais cedo em casa ficou com a pulga atrás da orelha, além de muito cabreira. Resolveu tirar a história a limpo. Interpelou o piá sem mais delongas:

— Ar, por que chegou antes do horário previsto em casa?

— Não cheguei mãe!

— Como não? Seu horário é cinco e meia da tarde e ainda não deu três horas. Qual o motivo do seu regresso repentino? Vamos, deixa ver se existe alguma observação enviada por algum de seus professores.

— Estou dentro do meu horário, mãe.

— Não minta.

— Seu relógio é que está errado.

— Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.

— Não estou tirando...

— Como não? Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?

— Não senhora!

— O Caderno. Quero ele aqui em minhas mãos. AGORA...

Armênio procurava de todas as formas ganhar tempo:

— A professora não mandou nenhum recado para a senhora.

— Armênio, sua mãe é loira?

— Até ontem a senhora era... não sei porque pintou o cabelo de vermelho!

— Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima de mim. Vamos, me fale, por que chegou cedo?

— Não cheguei mãe, já disse!

— Ar, não insista em continuar querendo se fazer de idiota. Você não é. Seu nariz vai crescer. Lembra daquele menino do livro, um tal do Timóteo?

Armênio tentou se abrir numa boa e gostosa gargalhada com o nome errado do personagem, mas a mãe se manteve de semblante fechado, mais séria que lagartixa em parede:

— Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.

— O nome não importa. O que conta é a mentira. Vamos, desembucha...

— Eu não tenho nada para desembuchar, mãe. Já disse.

— OK. Se prepare. Vou tirar aquilo que você mais gosta...

Do quase riso, o menino fez cara de quem se abriria num berreiro medonho:

— Não, mãe, isso não. Aí a senhora está jogando sujo.

— Está resolvido. A partir de agora, você está proibido de...

Antes que a mãe completasse o que pretendia dizer, Armênio, de fato, começou a chorar copiosamente:

— Não, mãe, tudo, menos isso...

— Está decidido. Fim de papo. Vou pegar o telefone e ligar para seu amiguinho Pimpolho...

Diante da austeridade incomplacente (*) da genitora, Armênio danou a bater com a cabeça na quina dos móveis:

— Para o Pimpolho não, mãe. Nãooooooo!...

— Pode quebrar tudo... não estou nem aí. Só cuidado com a parede da sala, se resolver se machucar de verdade com alguma coisa mais pesada que a mesa e os armários aqui da cozinha.

— O que tem ela?

— Esqueceu?

— Sim...

— A parede da sala está segurando o resto da casa.

O pranto sentido do moleque se fez mais pontiagudo e contundente:

— Pelo amor de Deus, mãe. Não liga paro o Pimpolho.

— Então conte a verdade. Por que chegou mais cedo em casa?

— Está bem, mãe. Eu conto.

— Sou toda ouvidos em alerta... desembucha.

— Promete que não vai ligar para o Pimpolho.

— Canta logo o motivo, seu cachorro. Se eu não me convencer...

Armênio abriu o jogo:

— Dormi na sala de aula. A professora ficou uma arara.

— Qual matéria?

— A de português.

— Eu sabia. Também pudera! Fica grudado na frente da televisão jogando até tarde da noite com o irresponsável do Pimpolho. Ontem você foi se deitar, passava das quatro da manhã.

— Estamos num campeonato, mãe. Se a gente perder...

— Como é mesmo o nome dessa porcaria de jogo?

— CBLOL, ou “League of legends”, mãe. Hoje acontece a grande final. A gente vai acompanhar pelo canal do YouTube e votar no Craque.

— Tudo bem. Mas fica o aviso: se o senhor voltar a dormir, diga adeus à essa porcaria que não leva você à coisa alguma. Estamos entendidos?

— Sim, mãe.

— Outra coisa: se eu souber que o senhor saiu do ar na sala de aula de novo, não importa de qual professora. Corto a sua amizade com o Pimpolho e pior: vendo a televisão.
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* Incomplacente – Aquele que não tem complacência ou que não é benevolente, flexível ou obsequioso.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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