terça-feira, 1 de novembro de 2022

Francisco Pessoa (A Menina e sua máquina)


Vivíamos um maio da década de sessenta. Não sei se 1962 ou 1963. A idade já me embaça a memória.

Carolina, uma taciturna menina-moça, tinha como hobby a arte de fotografar. Um vistoso diploma de curso de fotografia por correspondência — talvez pela importância que ela desse ao mesmo —, era o único enfeite de paredes que tinha em seu quarto. Aluna do curso ginasial, destacava-se entre os colegas por sua aplicação nos estudos. Em toda solenidade de encerramento do ano letivo, abiscoitava uma medalha de ouro. Já se somavam quatro que ela guardava com cuidado extremo, envolvendo-as numa flanela, escondendo-as da ação oxidante da temida maresia que se alastra por todo o Mucuripe.

Dois anos haviam passado que ela iniciara um tratamento clínico para controlar uma enfermidade cardíaca tipo congênita. Talvez o seu jeito reservado de ser se justificasse por isso. Sentia-se em plena felicidade quando nos finais de semana empunhava sua máquina e pegava carona no vento em busca de uma folha morta que flutuasse a esmo ou, quem sabe, de uma borboleta mesmo das não tão belas mas que se mostrasse repousando sobre uma linda flor. A morte e a vida eram fielmente registradas pelas lentes da sua Olympus.

A cada dia, aos menores esforços, um cansaço se fazia mais presente, tomando-lhe as rédeas do seu estado de saúde e de espírito. Ou seria, através da extensão do telefone, uma conversa entre seu médico assistente e sua mãe, Dona Allzira. Fez questão de abaixar o fone quando um ilativo "Só transplante" feriu seu tímpano e ecoou, magoando o âmago do seu ser.

Não frequentava mais a escola, a laureada aluna campeã de notas. Enclausurava-se. Abatida, esperava resposta para os seus insistentes "porquês" endereçados a Deus. Certo domingo, talvez o derradeiro, ombreou sua Olympus e, a passos lentos, tomou o rumo do vasto campo junto à sua casa em busca da foto tirada no momento certo, aquele em que uma folha se desprende do caule e voa e cai, assim como a borboleta que perdeu as asas.

No dia seguinte, partiria no momento certo, sem sua máquina.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

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